A Justiça Desportiva encarou uma grande prova e conseguiu ser aprovada com ótima nota para a próxima fase. Essa é a avaliação de Milton Jordão, procurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, em relação ao caso do meia Héverton, da Portuguesa, no qual ele atuou.
Para o advogado, do ponto de vista jusdesportivo, o episódio é muito simples e não permitiria qualquer dúvida em relação ao acerto da decisão do STJD. Mas havia um terceiro personagem no caso que promoveu todo o imbróglio: trata-se do Fluminense.
“Não havia e creio que nunca houve real interesse de tratar a questão como deveria ser, dentro do racionalismo, observando-se as regras, que, inclusive, a própria Lusa aceitou ao participar do certame. Tratou-se a sanção imposta como indevida, desproporcional, quando o CBJD prescrevia aquilo”, argumenta Jordão, que questiona:
“O que se deveria fazer? Rasgar o Código? Aceitar as teses mirabolantes que foram concebidas para salvar a Lusa, lhe dar um lastro jurídico? Não. Isso não poderia ser feito”, continua.
Presidente do IDDBA e autor da obra “Comentários ao Estatuto do Torcedor”, pela Ed. Lumen Juris, Milton Jordão entende que foi lamentável ver como o caso foi tratado – segundo ele, sob uma falsa bandeira de ética e justiça.
“Infelizmente, o móvel deste processo não era necessariamente salvar a Portuguesa, pois se ao invés do Fluminense fosse qualquer outro time, pouco se falaria, sobrariam apenas lamentos. É inconcebível que uma equipe profissional, que lida com contratos envolvendo milhões de reais, padeça um descenso por um erro tão primário. Isso é algo que deveria ser objeto da nossa reflexão”, complementa.
Nesta entrevista à Universidade do Futebol, além da “vitória” da Justiça Desportiva brasileira, o advogado fala sobre o que fazer para se evitar novos episódios semelhantes, qual é a responsabilidade da CBF nisso e o que as grandes ligas europeias podem contribuir para o nosso entendimento sobre gestão esportiva.
Universidade do Futebol – Como o senhor observou o caso Héverton, da Portuguesa, que rendeu a queda da equipe paulista à segunda divisão do futebol brasileiro e beneficiou, por consequência, o Fluminense?
Milton Jordão – O episódio que a Justiça Desportiva viveu foi uma grande prova, para mim, foi bastante significativo ter participado deste processo como procurador que atuou no feito (e também do caso Flamengo). Não obstante, saliento que o “Caso Lusa”, do ponto de vista jusdesportivo é de uma simplicidade ululante, que não permitiria qualquer dúvida em relação ao acerto da decisão do STJD. Porém, havia uma condicionante que promoveu este processo desportivo disciplinar às manchetes de jornais escritos, televisados e ser objeto de um sem número de artigos, post e comentários em todo o mundo real e virtual. A mencionada condicionante está na sua indagação: o Fluminense.
Este episódio me entristeceu sobremaneira, pois vimos ataques, no mínimo, irracionais a profissionais que militam na Justiça Desportiva, criações de teses e mais teses, unicamente com um objetivo: rebaixar o Fluminense. Cunhou-se um princípio e se quis impô-lo a “fórceps”, que jocosamente poderíamos nominá-lo de ” princípio pague a Série B”. Mesmo que para isso fosse necessário esquecer que a Lusa escalou um atleta irregular, muito menos se os outros 18 clubes respeitaram esta regra – violada pelo time paulista – e arcaram com o ônus de não poder ter seus melhores jogadores em campo. Esqueceu-se o tão decantado profissionalismo que se reclama. Atacou-se o STJD, digo e redigo, sem qualquer lastro minimamente justificável. Defenestrou-se o nome de um advogado, até sugerindo que teria sido contratado pela CBF para prejudicar a Lusa, como vi em alguns lugares, quando, em verdade, o mesmo prestava serviços jurídicos perante a Justiça Desportiva há 09 (nove) anos.
Os membros do STJD foram achincalhados desnecessariamente, postos sob suspeita, como se ali fosse uma casa onde se impera estratagemas escusas. Ao revés, há publicidade e transparência dos atos, como se evidenciou nas sessões transmitidas, onde os auditores, membros da procuradoria e advogados militantes demonstraram enfrentar a matéria tecnicamente, sem paixões ou interesses vis, apenas se pretendeu o cumprimento fiel das leis desportivas, em especial o CBJD.
Digo isso, pois toda balbúrdia que tomou conta de blogs, sites, jornais e telejornais se centrou na injustiça de se ver a Lusa rebaixada e o Fluminense, como dito por você na pergunta, beneficiado.
Não havia e creio que nunca houve real interesse de tratar a questão como deveria ser, dentro do racionalismo, observando-se as regras, que, inclusive, a própria Lusa aceitou ao participar do certame. Tratou-se a sanção imposta como indevida, desproporcional, quando o CBJD prescrevia aquilo. O que se deveria fazer? Rasgar o Código? Aceitar as teses mirabolantes que foram concebidas para salvar a Lusa, lhe dar um lastro jurídico? Não. Isso não poderia ser feito.
É importante recordar que o Grêmio Prudente, alguns anos atrás, enfrentou fato similar, diria que quase o mesmo, e nem por isso se viu uma campanha nacional contra o STJD que puniu com perda de pontos e, como consequência, foi rebaixado para a Série C. Então, surge uma questão: a queixa se deu em relação ao sistema desportivo e suas leis ou a foi a coincidência de haver sido o favorecido o Fluminense com a perda dos pontos?
Foi lamentável ver como este caso foi tratado, sob uma falsa bandeira de ética e justiça. Clama-se tanto por respeito à legalidade, cumprimento de regramentos, mas se quis ver triunfar a ode à violação das normas vigentes, para “saldar uma dívida histórica”. Seria a melhor forma de resgatar o bom nome ou a honra do futebol brasileiro? Ou estar-se-ia adotando a mesma conduta que se recriminou no passado, a tal virada de mesa?
Infelizmente, o móvel deste processo não era necessariamente salvar a Portuguesa, pois se ao invés do Fluminense fosse qualquer outro time, pouco se falaria, sobrariam apenas lamentos.
No entanto, voltando olhares para este caso, creio que se comprovou que ainda se peca no que concerne à gestão no futebol nacional. É inconcebível que uma equipe profissional, que lida com contratos envolvendo milhões de reais, padeça um descenso por um erro tão primário. Isso é algo que deveria ser objeto da nossa reflexão.
Naturalmente, outras questões que foram trazidas a lume, como a própria existência do modelo de Justiça Desportiva brasileiro, mereceriam um debate mais amplo e longe das torrentes emocionais afloradas em favor da Lusa ou contra o Fluminense. Apenas cito um dado interessante, foi alardeado que o melhor seria um Tribunal de Penas, ou seja, os tribunais desportivos como conhecemos deveriam ser extintos. Afirma-se que este modelo seria o melhor.
Porém, durante o V Seminário Nacional Esporte e Justiça Desportiva, organizado pelo Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA), ocorrido em Salvador, o Dr. Ignácio Duran, membro Tribunal de Penas da Associação Uruguaia de Futebol (AUF) reclamava em sua palestra a influência de Nacional e Peñarol na composição deste órgão judicante, pois sempre indicavam nomes dos seus interesses. Ou seja, falou-se tanto sem sequer conhecer.
Claro que as críticas feitas por quem foi ao front adotando um caminho contrário ao que decidiu o STJD persistirão, dirão que os argumentos trazidos no julgamento têm pouca serventia, que aquilo foi encenação, a corte de nada vale, isso é natural e esperado, pois não se sentiram contemplados com o quanto ali exposto.
Enfim, creio que este foi um episódio em que a Justiça Desportiva brasileira saiu vitoriosa, não por ser tema de grande destaque ou chamar a atenção de tantos, mas, principalmente, por não se curvar a pressões externas ou clamor público e destruir por um casuísmo as normas que regem o sistema esportivo nacional. Certamente, isso é inegável, muitas chagas haverão ainda de serem curadas com o passar do tempo. Diria que foi uma grande prova de fogo, acompanhada de perto e em tempo real por todo o Brasil. Concorde ou não com a decisão de mérito, ninguém poderá deixar de reconhecer que houve amplitude de defesa, contraditório, transparência e seriedade em ambos os julgamentos (perante a Comissão Disciplinar e Tribunal Pleno).
“O que se deveria fazer? Rasgar o Código? Aceitar as teses mirabolantes que foram concebidas para salvar a Lusa, lhe dar um lastro jurídico?”, questiona
Universidade do Futebol – O que fazer para se evitar novos episódios semelhantes? E qual é a responsabilidade da CBF?
Milton Jordão – Creio que os clubes precisam de uma vez por todas entender que o futebol profissional, que lida com salários altos, patrocínio de milhões de reais, não contempla espaço para amadorismo. É preciso buscar profissionais e tecnologias que sirvam a este caminho que o Brasil se encontra. Hoje, na América do Sul, por exemplo, o nosso país é o centro que mais atrai! Observe quantos jogadores têm preferido jogar aqui, são argentinos, uruguaios, paraguaios, chilenos, etc.
Então, penso, um clube deve investir em profissionais gabaritados para cuidar do setor de futebol, do jurídico (trabalhista, civil, desportivo, etc.), da parte de Tecnologia para investir em software, e, principalmente, contar com gestores/administradores que cuidem de tais detalhes bem de perto; enfim, a preocupação é de repensar do clube na perspectiva moderna e vigente. Quem não se enquadrar poderá sofrer prejuízos e ficar para trás.
Centrando um pouco olhares no setor jurídico, embora não advogue para clubes, percebo que sempre há uma cultura de se buscar um caminho que passa distante do profissionalismo ao se admitir advogados que são fervorosos torcedores, apenas isso. Não se cultiva ter aquele que se especializa, conhece, milita ou trabalha com o direito desportivo. Geralmente, opta-se por uma solução mais barata. É preciso ter a consciência que não é um gasto, um dispêndio sem razão, é um investimento que pode gerar ao clube dividendos ou, pelo menos, evitar prejuízos.
No que concerne à CBF, a princípio, acho que é muito cômodo o clube exigir e dela cobrar que apresente quem está ou não apto a jogar. Penso ser este, primeiramente, um dever do clube. Claro que se for possível que a Confederação desenvolva meios de fornecer esta informação, será melhor para todos. Mas, repito, o maior responsável é o clube, este precisa procurar agir com maior profissionalismo, pois, senão, trará prejuízos para si.
Universidade do Futebol – De maneira geral, como você analisa os departamentos jurídicos dos clubes brasileiros? Eles estão realmente preparados para as responsabilidades para as quais são designados?
Milton Jordão – Esta é uma pergunta muito interessante. Se mirarmos na perspectiva dos times grandes, a resposta até poderia ser positiva. Diria que estes já se preocupam com isso, têm, geralmente, um advogado especialista em direito desportivo disciplinar e outros para atuar em outros ramos, como o trabalhista desportivo e cível. Já se nota profissionais contratados para funcionar internamente nos clubes. Sei que ainda persiste aquela idéia do abnegado. Ou, diga-se, do advogado que por ser torcedor dos mais apaixonados ou um renomado profissional que conta com tempo livre de sobra para contribuir gratuitamente, sem qualquer ônus.
Creio que estas figuras deveriam ser meros consultores, repito, o ritmo profissional exige dos clubes cada vez mais. É mais justo com o advogado e com o próprio clube que, nesta senda, também se busque rever conceitos pretéritos.
Mas, ao se analisar o futebol brasileiro como um todo, sou forçado a reconhecer que estamos distante, muito distante de se responder à indagação positivamente. Muitos clubes no país sequer têm um advogado, ou quando tem é apenas para exercer um “favor”, não têm, nem procuram um aprofundamento técnico, falta ainda muito para que tenhamos departamentos jurídicos competentes em todo o Brasil!
Exemplifico na própria Justiça Desportiva, fui procurador do TJD/BA por longos 8 anos, dois mandatos, e vi muito poucos advogados defendendo clubes da primeira e segunda divisões do campeonato baiano, dos certames de divisões de base ou campeonatos não profissionais. Agora, embora novo ainda no âmbito do STJD, como procurador também, vejo poucos advogados, especialmente aqueles fora do Rio de Janeiro ou São Paulo – naturalmente, que muitos clubes de outros estados optam por contratar advogados na capital fluminense.
Por fim, parece-me necessário que os clubes de futebol pensem em ter entre as partes essenciais do clube um departamento jurídico formado por profissionais especializados em direito desportivo e não mais abnegados ou aventureiros.
Para Milton Jordão, muitos clubes no Brasil sequer têm um advogado, ou apenas contam com alguém para exercer um “favor”
Universidade do Futebol – Em relação à briga entre torcedores de Vasco e Atlético Paranaense na última rodada do Brasileirão, foi creditado o episódio totalmente à falta de Policiais Militares na arquibancada do estádio para separar as torcidas após uma deliberação do Ministério Público de Santa Catarina. Quem deve ser responsabilizado neste caso? Por que não há um amplo debate sobre a organização de eventos deste tipo e novos caminhos a se seguir – inclusive punitivos?
Milton Jordão – Excelente pergunta! A segurança nos estádios é um problema de todos os atores do espetáculo, todos mesmo. Desde 2009, tenho me manifestado publicamente pugnando que não se trate disso apenas com ótima criminal. Deveria ser envolvida a Justiça Desportiva, as Federações, os clubes, etc.
Necessariamente, digo, que a solução não seja de fazer toda a segurança com policiais militares. Temos no mundo exemplos de que a segurança pode ser feita de outra forma. Apenas, ataca-se a consequência e não a causa. Indagaria, porque os clubes dão azo e guarida a torcedores que são reconhecidamente pessoas violentas? Porque conceder estas benesses? Ou, diria ainda, porque as Polícias e o Ministério Público não levam a efeito investigações sobre atividades ilegais mantidas por algum deles? E, também, porque o Judiciário levou tanto tempo para ver sua importância neste cenário?
Sem dúvida, temos avançado muito nesta área. Mas, ainda estamos distante de uma tranquilidade como a do passado. Para tanto, é preciso pensar o espetáculo desportivo de maneira integrada! Ora, a violência nas praças desportivas deve ter um fim. O maior problema do Brasil é o costume de demonizar certas coisas. Na década de noventa foram as torcidas organizadas. Muitas foram extintas e os problemas não desapareceram. Na década passada foi a bebida. Banida dos estádios e a crescente de brigas aumentou exponencialmente.
Os debates sobre violência eles têm ocorrido sempre, é costumeiro vermos ações do Ministério do Esporte e Ministério Público junto às torcidas organizadas, seminários acadêmicos e técnicos discutindo o tema e tratando de cases de sucesso. Falta, a bem da verdade, é atitude. Temos uma legislação que permite que se faça muito. Porém, nem sempre se conferiu a atenção devida, basta que se perceba porque foi preciso o Conselho Nacional de Justiça editar resolução instando os tribunais de justiça a instalar seus Juizados do Torcedor, quando o Estatuto já dizia isso com clareza solar.
Além disso, repito, de nada adiantará ações isoladas, neste momento e para o sucesso do que se pretende, será necessário contar com a atuação dos entes do setor público e privado para que se possa voltar a ir a um estádio com tranquilidade.
É preciso, rediga-se, conceber uma grande articulação que reúna clubes, federações, Justiça Desportiva, torcedores, Ministério Público, Polícias, etc. Todos, digo, todos os atores do espetáculo, cada um com sua contribuição. Não adiantará impor penas severas, encher o estádio de polícia. Será preciso compreender o fenômeno por outra perspectiva, uma transdisciplinar!
Universidade do Futebol – Para cumprir as diretrizes da Fifa, a Conmebol criou uma Comissão de Ética para cuidar de assuntos internos e temas relacionados às competições que organiza. Para formar o grupo, o presidente Eugênio Figueiredo convidou cinco pessoas, entre elas o deputado estadual Fernando Capez. O comitê conta ainda com um equatoriano, um colombiano, um paraguaio e um argentino. Como o senhor observa um movimento como este?
Milton Jordão – Espero que as nomeações não sirvam apenas para figurar nos currículo de cada um deles. Temos um mercado grande, um povo apaixonado por futebol na América do Sul, mas uma entidade que ainda parece não ter despertado para esta realidade, que ainda busca uma legitimidade. Basta ver que a Uefa, entidade congênere, goza desta legitimidade ante seus filiados. Naturalmente, seria injusto comparar, afinal, os europeus têm este senso de pertencimento continental que nós, sul-americanos não temos. Muita coisa precisa ser rompida, a começar pela simples barreira idiomática. Podemos muito mais.
Prefiro dar um crédito à Conmebol, veja o exemplo do Tribunal de Disciplina, que era tão reclamado e hoje é realidade. Sei que ainda há muito por fazer, ao invés de apenas criticar, será preciso lutar por reformas e melhorias em prol do que sonhamos para o futebol da América do Sul. Embora, veja que comissões deste jaez poderão pouco influir ou mudar o destino para o qual rumamos.
“Espero que as nomeações não sirvam apenas para figurar nos currículo de cada um deles”, diz Jordão sobre Comissão de Ética criada pela Conmebol
Universidade do Futebol – Quais as principais medidas de caráter estrutural que você julga fundamentais para o avanço da legislação desportiva brasileira? Pela importância e tradição, não deveríamos ter uma legislação que contemplasse unicamente o futebol?
Milton Jordão – Sinceramente, acho que a legislação nacional tem evoluído bastante. Naturalmente, nem sempre da forma que se espera, mas esta dialética é própria deste processo de evolução. Por exemplo, as mudanças que foram feitas no Estatuto do Torcedor foram fundamentais, as recentes alterações no CBJD também revelam melhorias. Creio que a despeito de criação de leis, precisamos pô-las em prática!
No que tange ao futebol, não acho que precisamos de algo específico. O futebol é base, quase uma “monocultura”, veja a Lei Pelé ou o Estatuto do Torcedor, ambas feitas pensadas nele e com alcance para qualquer modalidade desportiva. Adoto posicionamento diverso do querido amigo João Zanforlin e do ilustre Professor Álvaro Melo Filho. Reconheço que o futebol é grande, imenso. Vejo ainda como importante tê-lo junto com outros esportes, especialmente no que concerne ao Código.
Universidade do Futebol – Suspeita de ligações de partidas amistosas organizadas pela família Messi com a lavagem de dinheiro de narcotraficantes, investigação da Comissão Europeia sobre negócios entre governos e clubes, presidente de equipe renunciando após ser condenado à prisão e a acusação de que o mandatário do Barcelona, Sandro Rosell, se apropriou de maneira indevida de parte do dinheiro da venda de Neymar do Santos para o clube espanhol. Como a justiça desportiva de um país como a Espanha atua?
Milton Jordão – A Justiça Desportiva na Espanha é bem diferente da Brasileira. O modelo espanhol é publicista, enquanto aqui haja legislação federal para reger o esporte, pode-se dizer que o negócio esporte é ramo da atividade privada. Por exemplo, as federações esportivas espanholas, apesar de serem pessoas jurídicas de direito privado, desempenham função pública e tem uma submissão maior ao Conselho Superior de Desporto (CSD, o equivalente ao Ministério do Esporte). Por seu turno, a justiça desportiva é igualmente publicizada, inclusive, algumas questões são apreciadas por instâncias do Poder Judiciário.
Claro que existem determinadas infrações que são de competência do comitê disciplinar, as mais simples, diga-se, e ali se encerram. Outras, mais complexas e graves, têm estes destinos. A adoção deste modelo publicista é muito contestada pela doutrina jusdesportiva na Espanha, por nomes como Andreu Camps e José Luis Carretero.
Creio que este modelo não é o melhor a ser adotado, penso que a gestão do esporte deve ser feita pelo ente privado, assim como as questões dele oriundas (especialmente as contratuais e disciplinares) tem um “locus” próprio que seriam os órgãos judicantes (tribunais esportivos).
Naturalmente, se se fala de crimes praticados, como as citadas lavagens de dinheiro ou apropriação indébita, caberá ao Estado apurar e ao Poder Judiciário julgar, não sendo atribuição do particular.
Percebo que muitas pessoas estimariam ver questões que se revolvem no âmbito da justiça desportiva que fossem julgadas pelo Poder Judiciário, todavia, o esporte é dinâmico e este poder estatal não. Seria um grande prejuízo se toda a resolução de conflitos no esporte fosse sempre levada às cortes do Poder Judiciário, afinal, quebrantaria a segurança jurídica advinda do princípio “pro competitione” e, seguramente, boa parte dos campeonatos disputados ainda estaria em aberto.
Universidade do Futebol – O que você destacaria da realidade jurídico-desportiva das grandes ligas do mundo que poderiam ser apropriadas por nós?
Milton Jordão – Antes de efetivamente responder a questão formulada, gostaria de registrar o que poderíamos incorporar das grandes ligas: a seriedade como tratam o torcedor, como veem o campeonato e maximizam os ganhos.
Observa-se que ainda no Brasil se opta por um caminho de desigualdade, enquanto as grandes ligas perceberam que não há campeonato melhor do que aquele que seja disputado e todos os seus participantes se encontrem bem, inclusive, financeiramente. O equilíbrio é fundamental.
No futebol se poderia citar o se vem fazendo na Itália, Alemanha e Inglaterra, redimensionando os ganhos, contemplando-se critérios desportivos, de mídia, sempre reservando aos menores porcentagem que lhes permita sobreviver e fazer contratações dignas para enfrentar os mais fortes. Ou, também, um olhar nos modelos ianques onde há um zelo maior pelo “par conditio”, seja no “draft” ou na própria divisão dos valores oriundos de contratos.
Sobre a realidade jurídico-desportiva, ressaltaria o respeito às instâncias de resolução de conflito previstas pelo sistema desportivo. É essencial para se fortalecer o esporte que se evite ao máximo a intromissão do poder público, seja ele executivo ou judiciário.
Digo isso, pois no esporte é preciso sempre se ter em evidência celeridade e segurança jurídica, conjuntamente. Adotar apenas um dos valores implicará em prejuízo a todos os que dele fazem parte. Talvez, rediscutir a arbitragem no Brasil seja algo de grande utilidade para o esporte.
Advogado crê que Brasil poderia apreender dos europeus a seriedade como tratam o torcedor, como veem o campeonato e maximizam os ganhos
Universidade do Futebol – Um dos grandes problemas enfrentados pelo torcedor brasileiro em eventos esportivos diz respeito à comercialização de ingressos. E de acordo com o Estatuto do Torcedor, os bilhetes devem ser numerados e o consumidor tem o direito de ocupar o local correspondente ao número de seu ingresso no estádio. Por que há uma distância tão grande entre teoria e prática?
Milton Jordão – Por que não se quer aplicar a Lei. Só isso. Desde a edição das reformas ao Estatuto do Torcedor eu já sabia que o crime de cambismo seria mais um a engrossar a chamada cifra oculta (aquela parte da criminalidade que não é detectada pelas agências estatais de controle, como a Polícia).
Novamente, aqui, não basta jogar a responsabilidade sobre os ombros da força policial ou do Ministério Públicos, existe desinteresse de clubes e entidades outras que organizam o espetáculo esportivo em evitar ao máximo a existência desta prática. E, também, o próprio torcedor que estimula a existência do cambista ao não denunciá-lo.
Tenho a certeza de que o cambismo e o cambista nunca desaparecerão, integram a lógica de um modelo capitalista, é um negócio rentável. Apenas existem meios mais simples de evitar que seja algo tão acintoso e frequente, além da mera repressão policial. Diria que os organizadores de eventos esportivos podem e devem se organizar, usar ao máximo ferramentas modernas como a internet para antecipar vendas, os clubes buscar a fidelização dos torcedores. Estes são exemplos de ações que poderão significar considerável redução do cambismo, mas, certamente, nunca a sua extinção.
O Estatuto do Torcedor e a venda de ingressos
Universidade do Futebol – De que maneira a sociedade civil organizada pode atuar na cobrança dos direitos do torcedor e fã do esporte?
Milton Jordão – A sociedade civil é peça chave em qualquer democracia. Sem sua atuação organizada (e também a desorganizada) as mudanças que se reclamam não aconteceriam. Tenho a plena convicção de que os torcedores envidam poucos esforços para ver cumpridos e respeitados os seus direitos. É importante que os torcedores conheçam os seus direitos para poder por eles lutar. E este papel poderá ser feito pela sociedade civil organizada.
Acredito que o primeiro passo é que torcedor passe a exigir da entidade que organiza o evento esportivo isso, levar a conhecimento da ouvidoria a sua insatisfação, poderíamos, igualmente, por exemplo, ver as Comissões de Direito Desportivo da OAB (um das mais valiosas facetas da sociedade civil organizada) atuando em favor dos torcedores, principalmente de forma preventiva e fiscalizadora. Valeria bastante, ao invés de uma postura litigante e beligerante, que se buscasse um relacionamento direto com entidade organizadora, exigindo nada mais, nada menos do que o cumprimento da lei.
Este papel de servir de voz dos torcedores cabe perfeitamente à sociedade civil organizada também. Nem sempre a melhor solução será a judicialização de qualquer questão (um lamentável costume nacional), quando o mais importante é sempre buscar a resolução do conflito.
Universidade do Futebol – Como o senhor vislumbra a participação do IBDD no âmbito do mercado esportivo, em se considerando o período até a Copa de 2014 e os Jogos de 2016, e como meio de capacitação para os interessados em ingressar na área do direito desportivo?
Milton Jordão – Acredito bastantes nos institutos que visam estudar, pesquisar e disseminar o direito desportivo. Não apenas destacaria o IBDD, mas também o Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA), o de Pernambuco (IPDD), o de Minas Gerais (IMDD), o de Sergipe (ISDD) que tem esta finalidade.
Trata-se de um ramo do direito que ganha, a cada dia, mais solidez e destaque, por isso, a especialização se impõe para fazer frente às exigências de mercado. Portanto, a existência de institutos que reúnam profissionais interessados, que possam capacitar novos interessados em atuar no foro jusdesportivo é fundamental para o crescimento e consolidação do direito desportivo!
Certamente, até 2016 assistiremos a inúmeros conclaves motivados, principalmente, por estes grandes eventos esportivos. No entanto, é preciso ir além da Copa de 2014 e dos Jogos de 2016, estes megaeventos devem apenas ser meios de ampliarmos ainda mais o mercado e, quem sabe, aproveitar da sua visibilidade para fazer ver a necessidade de cultivar e intensificar os estudos e preparação no âmbito do direito do desporto.
Nesta perspectiva, o papel dos institutos é de plantar a semente e cuidar para que cresça, floresça e tenha uma longa vida. É ser perene e constante, para tanto, requer-se não apenas o escudo dos citados eventos, mas desprendimento e paixão por parte dos seus membros.
A paixão é o elemento essencial para que o direito desportivo não feneça ou desapareça na sombra da Copa ou dos Jogos. Afinal, se o esporte não vive sem a paixão, o ramo jurídico que dele cuidar não poderia viver, senão de igual maneira.
Fonte: Universidade do Futebol