Especificidade e autonomia… "ma non troppo"

Alexandre Miguel Mestre

Durante muitos anos, as organizações desportivas internacionais, em particular FIFA, UEFA e COI, lutarem incansavelmente pelo reconhecimento formal da chamada “especificidade desportiva”, assinalando – a meu ver bem- que o desporto tem certas características distintivas relativamente aos demais sectores de actividade que reclamam que o Direito da UE não seja aplicado de forma “cega”, acriticamente.

Nesse sentido, a inclusão do desporto no artigo 165.º do Tratado de Funcionamento da UE foi tida como uma vitória para o “movimento associativo desportivo”, em particular pela expressa referência à necessidade de a UE promover os “aspectos europeus do desporto” “tendo em conta as suas especificidades” e “as suas estruturas baseadas no voluntariado”.

A verdade é que no mesmo preceito do Tratado se prevê que com o objectivo “desenvolver a dimensão europeia do desporto” a UE pode agir “promovendo a equidade e abertura nas competições desportivas e a cooperação entre organismos responsáveis do desporto”.

Quer isto significar, a meu ver, que ao mesmo tempo que se reconhece um espaço próprio de actuação para as organizações desportivas – o que lhes confere alguma autonomia, independência, liberdade e auto-regulação – se atribui à UE a competência para interferir nas estruturas e actividades desportivas.

Assim o direito de as organizações não-governamentais desportivas decidirem sobre a sua existência, actividade e futuro não está imune a interferências políticas. Quando adoptam, modificam ou interpretam regras, aquelas organizações estão sujeitas ao crivo do Direito, ainda que este deva atentar nas “especificidades do desporto”. Quando escolhem líderes, se o fizerem de forma menos democrática, sujeitam-se a críticas e sugestões. Quando obtêm e utilizam fundos, ou quando negoceiam com autoridades públicas, obedecem a certas restrições e exigências.

A vitória das organizações desportivas foi, pois, relativa. Mas não tenhamos dúvidas: como a lógica de intervenção da UE é subsidiária, de complemento, de valor acrescentado, quanto mais legal, transparente e democrática for a acção das organizações desportivas, menor será a necessidade ou tentação de interferência (ingerência para alguns) da UE.

Exemplos de sucesso de auto-regulação (e auto-regeneração) são a forma como COI, em 2002, reagiu ao escândalo de Salt-Lake City (com o brio propulsor de Juan António Samaranch) ou a forma como a UEFA, em 2006, se empenhou na implementação das medidas preconizadas pelo “Relatório Arnaut”, emergente do “European Independent Sports Review”.

Já os exemplos destas últimas semanas não são de sucesso e explicam a entrada em acção da UE.

Só pela inércia da FIFA em reformar-se atempada e verdadeiramente é que se deu espaço para a porta-voz da Comissão Europeia para o desporto comentar que “a FIFA teve tempo e oportunidades suficientes para se reformar e chegou a altura de mudar”.

Só porque a FIFA não quis ou não soube reformar a sua governance e garantir a sua credibilidade é que o Comissário Europeu para o Desporto comenta agora que “na sua formulação actual a FIFA não encaixa como motor do futebol mundial”. E não se fica pelas palavras: há já um grupo de peritos da Comissão Europeia a elaborar recomendações para que a FIFA assuma “mudanças de fundo”…

Só porque Blatter e seus pares estão envoltos em situação tão calamitosa é que o Parlamento Europeu (PE) insta publicamente Blatter a ceder o seu lugar “imediatamente” e através de um procedimento “transparente”, ao mesmo tempo que reclama por reformas “urgentemente”.

Só porque não existiu até hoje uma definição clara do posicionamento das organizações desportivas face a alegadas violações de direitos humanos é que uma Resolução do PE solicita às organizações desportivas internacionais, em particular ao COI, à FIFA e à UEFA, que “velem para que todos os países que apresentem a sua candidatura para organizar um encontro desportivo de grande magnitude se comprometam a respeitar as normas internacionais em matéria de direitos fundamentais.”

E na mesma linha se explica o apelo do Vice-Presidente do PE aos líderes europeus para boicotarem a cerimónia de abertura dos Jogos Europeus, de Baku, invocando a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e … a Carta Olímpica (aprovada pelo COI..).

Não se queixem, pois, neste caso, as organizações desportivas. Está na sua mão não prescindir do que tanto (e justamente) reivindicaram: especificidade e autonomia.

 

Fonte: Sábado.pt

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *