Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD
1- Introdução
O Direito Desportivo é uma disciplina autônoma com característica multidisciplinar tendo em vista as peculiaridades e nuances da própria prática desportiva, razão pela qual esse complexo ramo do direito dialoga com o Direito Constitucional, Civil, Tributário, Empresarial, Administrativo, Previdenciário, Penal e, claro, o Direito do Trabalho.
A relação do direito desportivo com o direito do trabalho é íntima, porém respeitosa, tendo em vista que a aplicação das regras da legislação trabalhista e da legislação previdenciária serão aplicadas ao contrato de trabalho do atleta apenas de forma subsidiária e mesmo assim, desde que não haja incompatibilidade. Essa foi a vontade manifestada pelo legislador no parágrafo 4º do art. 28 da Lei Pelé e que deve sempre ser observada por todos os profissionais do direito².
O poder disciplinar do empregador está relacionado ao próprio cumprimento do contrato de trabalho, que é sinalagmático, na medida em que gera obrigações e deveres para ambas as partes. Com efeito, a relação existente entre atleta profissional de futebol e clube é a de emprego, devendo ser ressaltado que qualquer demanda relacionada ao contrato de trabalho celebrado entre as partes será dirimida pela Justiça do Trabalho³.
Desta forma, muitos são os princípios de direito do trabalho que se harmonizam com as especificidades do direito desportivo.
A boa fé na execução do contrato de trabalho é princípio a ser observado pelas partes contratantes, independentemente da modalidade, ou seja, pouco importa se for um contrato de trabalho típico ou um contrato especial de trabalho, sendo esta última a denominação aplicada para o contrato de trabalho desportivo.
2 . Poder Disciplinar do Empregador
O contrato gera direitos, deveres e obrigações recíprocas para empregado e empregador (MAGANO: 1980) e quando houver omissão nas cláusulas, aplicam-se as disposições legais
A obrigação principal do empregado é a de prestar o trabalho para o qual ele foi contratado, de forma pessoal. No âmbito desportivo, não há como o empregado fazer-se substituir na prestação do serviço.
No Brasil, o poder disciplinar do empregador gravita em torno das sanções disciplinares inseridas nos artigos 474 e 482 da CLT.
O empregador goza da faculdade de punir disciplinarmente o empregado, em razão do dever de obediência a que está sujeito este último.
Na célebre obra Instituições de Direito do Trabalho, Délio Maranhão afirma que “a obrigação de fazer, a que se obriga o empregado, deve ser cumprida com a diligência de um bom trabalhador”. Todos os esforços, portanto, devem ser envidados para a busca da excelência na execução dos serviços. Entretanto, conforme observa o festejado doutrinador, “a diligência do empregado deve ser considerada tendo em vista a natureza da obrigação, às condições pessoais do trabalhador e as circunstâncias de tempo e lugar.”²
No âmbito desportivo a referida “diligência” do empregado deve ser avaliada de acordo com as peculiaridades que a atividade impõe. Logo, haverá diferenciação entre as obrigações do empregado comum e a do atleta profissional.
O poder disciplinar decorrente do contrato especial de trabalho desportivo deverá observar as disposições contidas na lei n.º 9.615/1998. O artigo 35 da referida lei enumera os deveres do atleta profissional, cabendo ao clube empregador adotar todos os meios legais para o seu cumprimento.
Na lição mais do que autorizada de Américo Plá Rodrigues e Amália de la Riva López, os atletas denominados “de alto rendimento” são instruídos na estratégia a adotar no campo, e além dele, o lugar para realizar a tarefa até mesmo no exterior, como as roupas para usar ao sair em turnê, a preparação física a ser realizada e mesmo quando não estão em concentração ou mesmo jogando, devem observar determinadas diretrizes. Muitas das vezes é proibida a utilização de motocicletas ou veículos náuticos, a ingestão de álcool, o excesso de ingestão de alimentos e as saídas noturnas³.
Tais regras seriam inimagináveis para um trabalhador comum, tendo em vista que poderia significar uma intromissão indevida na vida privada e particular do indivíduo, porém, quando se trata de atleta profissional, tal conduta é plenamente condizente, razão pela qual nos filiamos à corrente defendida pelo doutrinador uruguaio.
Em Portugal, o poder disciplinar decorre da relação de emprego, do instrumento contratual de trabalho, conforme disposto no artigo 10º do Código do Trabalho, bem como nos dispositivos previstos nos artigos 365 e seguintes do referido diploma.
3 .O “Caso Afonsinho”
O futebol profissional foi instituído de forma oficial no Brasil somente em 1933, conforme afirma Valed Perry¹, ao lembrar que tal fato ocorreu da cisão dos clubes, federações e confederações, pois vigia à época o amadorismo “marrom”. Somente em 1941, com a edição do Decreto 3.199 é que o profissionalismo no futebol passa a ser contemplado nas disposições legais. Contudo, nessa época, não era reconhecida a atividade do atleta como profissão, o que veio a ocorrer somente em 1964, com a edição do Decreto n.º 53.820, que dispôs acerca da profissão de atleta de futebol, regulamentando a cessão, a participação do atleta no preço do passe, requisitos para contratação, prazo de vigência do contrato, dentre outros.
Mesmo após o reconhecimento da atividade do jogador de futebol como profissão, esse “empregado diferenciado” ainda era visto com desconfiança em relação aos demais trabalhadores, devendo ser salientado que a figura do passe mantinha o jogador atrelado ao clube mesmo após o término do contrato de trabalho³. Com efeito, o passe do jogador mantinha o atleta profissional ligado ao seu clube empregador e criava empecilho para a ampla liberdade de trabalho.
O que passou a ser denominado pela imprensa da época de “Caso Afonsinho” demonstra bem as limitações que afligiam o atleta e o poder disciplinar do clube empregador que era quase ilimitado diante das balizas legais vigentes à época.
O atleta Afonsinho nasceu em Marília (SP), mas foi no Rio de Janeiro que passou a ser conhecido nacionalmente quando defendia o Botafogo. Infelizmente a notoriedade não se deu em razão de suas habilidades, mas sim em razão de sua atitude corajosa de enfrentar todo um sistema então vigente durante o início da década de 1970.
No livro Constituição e Esporte no Brasil, o professor Wladimyr Camargos³ relata que o já campeão mundial Zagallo assediava o moralmente o atleta que o impedia de jogar por conta de uma desobediência em determinada partida, o que culminou na cessão do atleta para o Olaria (RJ). Ao retornar para o clube cedente após período de 6 meses de empréstimo atleta apresentava longos cabelos e barba desgrenhada o que provocou a reação dos dirigentes que exigiram um visual mais “apresentável”, o que não foi aceito por Afonsinho.
Diante de tal situação, invocando o poder disciplinar, o contrato do atleta foi suspenso e ele foi “encostado” pelo clube da Zona Sul carioca, ocasião na qual o empregado deixou o clube e requereu a liberação de seu passe, o que foi negado pelo empregador.
A Justiça Desportiva, então competente para dirimir tais conflitos, foi acionada e o “passe livre” foi concedido pelo STJD.
O atleta profissional de futebol está sujeito ao poder hierárquico do empregador e deverá cumprir o contrato com desvelo e boa-fé. Conforme descrito no decorrer do presente texto, deverá ser diligência do empregado, compatível com a sua atividade, a fidelidade, assiduidade e colaboração.
Entretanto, a postura do clube invadiu de forma desproporcional e injustificada a privacidade do atleta. Nada obstante, a possibilidade de o clube empregador poder interferir em questões íntimas do atleta que possam comprometer o seu desempenho profissional.
Na lição do professor Álvaro Melo Filho¹, o contrato de trabalho desportivo possui característica especial em razão dos seguintes aspectos: a) Aspectos desportivos (treinos, concentração, preparo físico, disciplina tática em campo); b) Aspectos pessoais (alimentação balanceada, peso, horas de sono, limites à ingestão de álcool); c) Aspectos íntimos (uso de medicamentos dopantes; comportamento sexual); d) Aspectos convencionais (uso de brincos, vestimenta apropriada); e) Aspectos disciplinares (ofensas físicas e verbais a árbitros, dirigentes, colegas, adversários e torcedores, ou recusa em participação em entrevistas após o jogo).
Insta ressaltar, contudo, que o poder hierárquico do empregador constitui a capacidade que lhe é atribuída para dirigir a prestação subordinada de serviços (MAGANO: 1980)². Todavia, esta faculdade do empregador não pode ser caracterizada como gênero de poder, na medida em que existem limites a serem observados.
¹ Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL); Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Desportivo na UCAM-RJ; Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD; Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo; Secretário Geral da Comissão de Direito Desportivo do Conselho Federal da OAB; Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/DF.
² Art. 28. [fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][…] § 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes: (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011) […]. Gn
³ É importante destacar que a competência da Justiça do trabalho para dirimir litígio entre atleta e clube se consolidou apenas com a promulgação da Constituição de 1988, pois antes da Constituição Cidadã, a Justiça Desportiva é quem detinha competência originária para solucionar tais demandas, à luz da disposição contida no art. 29 da Lei n.º 6.354/1976. Verbis: Art . 29. Somente serão admitidas reclamações à Justiça do Trabalho depois de esgotadas as instâncias da Justiça Desportiva, a que se refere o item III do artigo 42 da Lei número 6.251, de 8 de outubro de 1975, que proferirá decisão final no prazo máximo de 60 (sessenta) dias contados da instauração do processo. Parágrafo único. O ajuizamento da reclamação trabalhista, após o prazo a que se refere este artigo, tornará preclusa a instância disciplinar desportiva, no que se refere ao litígio trabalhista.
4. MAGANO, Octavio Bueno. Manual de Direito do Trabalho, Vol. II, 2ª edição, LTr – São Paulo, 1980 – p. 163
5. SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho, Vol. I, 9ª edição, Rio de Janeiro, Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 1984 – p. 228/229
6. PLÁ RODRIGUES, Américo. LÓPEZ Amalia de la Riva. Poder Disciplinario Y Futbolistas Profesionales. In Esporte Direito, SOUZA, Ronald Amorim (Coordenador). 1ª edição, Salvador : [sn], 2004 – p. 64
7. PERRY, Valed. Futebol e Legislação Nacional e Internacional. 1ª edição, Rio de Janeiro : [sn] Gráfica Vitória S/A, 1973 – p. 68.
8. O passe somente foi extinto com a edição da Lei n.º 9.615/1998, nacionalmente conhecida como Lei Pelé
9. CAMARGOS, Wladimyr Vinícius. Constituição e Esporte no Brasil. 1ª edição, Goiânia : Ed. Kelps, 2017 – p. 101.
10. FILHO, Álvaro Melo. Balizamentos jus-laboral-desportivos. In Atualidades sobre Direito Esportivo no Brasil e no Mundo, tomo II/ BASTOS, Guilherme Augusto Caputo (coordenador), Brasília – DF – P. 22/23
11. Op. Cit. – p. 165
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