Fabrício Trindade de Sousa
Membro Filiado ao IBDD
O artigo 94 da Lei n.º 9.615/98 (Lei Pelé), em sua redação original, disciplinava, exclusivamente, prazo bienal para que as entidades desportivas praticantes ou participantes de competições de atletas profissionais promovessem as adaptações necessárias em sua estrutura jurídica para tornarem-se sociedades civis de fins econômicos ou sociedades comerciais admitidas na legislação então em vigor. Por força da Lei n.º 9.940/99, o prazo foi dilatado para três anos.
A Lei n.º 9.981/00 trouxe substancial inovação ao alterar a redação do artigo 94 fixando que a disciplina dos 27, 27-A, 28, 29, 30, 39, 43, 45 e o § 1o do art. 41 desta Lei serão obrigatórios exclusivamente para atletas e entidades de prática profissional da modalidade de futebol. A mesma lei tornou faculdade a outrora obrigação das entidades desportivas praticantes ou participantes de competições de atletas profissionais promovessem as adaptações necessárias em sua estrutura jurídica para tornarem-se sociedades civis de fins econômicos, sociedades comerciais admitidas na legislação então em vigor ou contratar sociedade comercial para administrar suas atividades profissionais.
Pedindo escusas pela ausência de citação do titular da frase, “cuidado com as proposições legais, você sabe como começa, nunca como termina…”. Uma discussão inerente ao regime jurídico das entidades de prática desportivas permitiu a supressão, inconstitucional, de obrigações trabalhistas inerentes aos atletas profissionais.
Em 2011, nova alteração legislativa (Lei n.º 12.395) incluiu o artigo 29-A entre os dispositivos relacionados no caput. O presente artigo analisará apenas a não incidência do artigo 28 para os atletas profissionais não praticantes do futebol.
Denota-se, portanto, que em sua redação original a Lei Pelé não distinguia atletas profissionais de futebol dos praticantes das demais modalidades. Nem poderia, uma vez que não há justificativa legal ou material que permita tal distinção.
Neste particular, preliminarmente, sendo profissional, o regime jurídico aplicável ao atleta de futebol ou de qualquer outra modalidade deve ser o mesmo, salvo, obviamente, no que tange às particularidades de cada modalidade, que demandem disciplina própria, exclusiva, mas que não impactam, salvo raríssimas exceções, robustamente fundamentadas, nos aspectos da relação de trabalho.
Por particularidades de cada modalidade não se pode atribuir a capacidade financeira dos empregadores, seja porque a lei não faz tal distinção, seja em face da relatividade argumento, não se podendo presumir que clubes de futebol possuam capacidade financeira superior às das entidades de prática desportiva de basquete e vôlei, por exemplo. Considerando a adesão dos clubes de futebol ao PROFUT, a presunção inversa é mais razoável. Ainda que assim não se entenda, o argumento financeiro apenas reforça a necessidade de profissionalização de determinada modalidade, não se cogitando de uma competição profissional “parcial”, com atletas profissionais tutelados de forma amadora.
Ainda que assim o fosse, é certo que tal realidade deveria impactar, exclusivamente, nos valores inerentes aos contratos de trabalho firmados, e não, em absoluto, nos direitos e/ou obrigações trabalhistas dos atletas profissionais não praticantes de futebol.
Não há na Lei Pelé distinção que também amparem a segregação perpetrada no artigo 94. Quando a Lei Pelé fala em diferenciação, o faz apenas em face do desporto profissional do desporto não-profissional (art. 2º, VI e parágrafo único, IV ). Corolário lógico do que disciplina o inciso III do art. 217 da CF.
O artigo 3º ratifica a impossibilidade de distinção entre os atletas profissionais, esclarecendo que só se cogita da ausência de contrato de trabalho especial desportivo para os atletas não profissionais, identificados pela liberdade de prática, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio.
Valendo-se apenas dos exemplos de modalidades de prática desportiva coletivas, não há como se cogitar da configuração do pressuposto legal da liberdade de prática, sendo inerente ao modelo de competição a existência de subordinação do atleta para com a entidade de prática empregadora. Exigível, portanto, a formalização de contrato de trabalho.
Pois bem, confirmada a exigência de um contrato de trabalho, poder-se-ia cogitar de dúvida quanto à sua natureza. Considerando o teor do artigo 94 da Lei 9.615/98, não seria um contrato de trabalho especial desportivo, mas um contrato “comum”, assim entendido como regido pela Consolidação das Leis do Trabalho.
Sem qualquer menosprezo aos que defendem que os atletas não praticantes do futebol formalizam contratos regidos pela CLT, A dificuldade de tal entendimento, além dos fundamentos já expostos, reside no fato de que apenas a Lei Pelé autoriza a contratação por prazo determinado nos moldes praticados nas mais diversas modalidades desportivas.
No regime jurídico brasileiro, com exceção da Lei Pelé, só se autoriza contratação por prazo determinado em três hipóteses principais, são elas: a) contrato de experiência (máximo 90 dias); b) o contrato inerente ao trabalho temporário (para atender a necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou acréscimo extraordinário de serviço – Lei 6.019/74); e c) Contrato por prazo determinado (Lei 9.601/98 + art. 443 da CLT). O atleta profissional não se enquadra em nenhuma das hipóteses. Ademais, como reforço do que a aqui se coloca, as regras dos artigos 445 e 451 da CLT conflitam com a realidade dos atletas profissionais, tornando insubsistentes os argumentos em sentido contrário, com todo o respeito.
Não há no artigo 28, da mesma forma, nenhuma obrigação que justifique a distinção imposta pelo artigo 94. As cláusulas indenizatória e compensatória desportivas são plenamente aplicáveis aos atletas profissionais não praticantes de futebol. Os valores são de livre pactuação, de modo que podem e devem observar a realidade das partes contratantes, fragilizando o argumento da discrepância financeira entre entidades de prática desportiva do futebol e das demais modalidades.
As circunstâncias de concentração, repouso semanal remunerado, férias e jornada de trabalho também encontram guarida nas demais modalidades desportivas, além do futebol. É possível que a concentração seja uma particularidade do futebol, ao menos nos moldes praticados em tal modalidade, mas é óbvio que se trata de uma garantia adicional/particular, não conflitando com outras práticas desportivas.
O vínculo desportivo, acessório ao contrato de trabalho, também não conflita ou encontra óbice para sua aplicação nas demais modalidades desportivas. No mesmo diapasão, a suspensão decorrente de ato ou evento de exclusiva responsabilidade do atleta, com inserção de cláusula de prorrogação automática.
Forçoso presumir que o critério exclusivo para a segregação inserida no artigo 94 da Lei Pelé foi o clamor das entidades de prática desportiva para retardar a profissionalização das suas respectivas modalidades desportivas, sempre amparadas no pretexto das dificuldades financeiras para arcar com os custos inerentes às obrigações trabalhistas.
Tal argumentação conflita com uma análise detalhada da legislação. De forma bastante objetiva, em termos de ônus para o empregador, o artigo 28 da Lei Pelé só acresce a cláusula compensatória. Todavia, partindo da premissa de que o contrato firmado será regularmente cumprido até o seu término, a referida obrigação fica exaurida.
Portanto, o verdadeiro debate não está na impossibilidade ou possibilidade de observância do artigo 28 pelas entidades de prática desportiva das mais diversas modalidades praticadas de forma profissional, mas sim na observância de direitos e obrigações trabalhistas inerentes aos contratos de trabalho dos atletas profissionais, que independente da modalidade que pratiquem, devem ser rigorosamente respeitados.
Há quem diga que os atletas de outras modalidades também contribuem para a manutenção da restrição do artigo 94 em razão da inobservância do artigo 28 permitir contratos com rendimentos imediatos mais vultuosos, uma vez que a possibilidade de rescisão antecipada pelo empregador, sem a obrigação do pagamento da cláusula compensatória, permite maior flexibilidade na negociação dos contratos, resultando em ganhos maiores.
O argumento, além de moralmente inaceitável (o atleta negocia o contrato e depois recorre a Justiça do Trabalho alegando vício de vontade e/ou hipossuficiência) é precário, seja em razão do risco embutido para o empregador, seja em face da ausência de justificativa para que as contratações sejam realizadas de acordo com orçamento de cada clube, sem prejuízo de uma efetiva e rigorosa fiscalização da entidade de administração do desporto, não se permitindo a propagação de um ambiente nocivo às boas práticas, tampouco permitindo que as entidades de prática desportiva, que respeitam as normas trabalhistas, sejam prejudicadas na formação de equipe menos competitivas em detrimento de outras equipes que só conseguem formar elencos mais fortes tendo como base o inadimplemento das obrigações trabalhistas (dumping social).
Não há, em absoluto, fundamentação material e/ou jurídica que autorize o tratamento diferenciado entre atletas profissionais de futebol e das demais modalidades. A segregação do artigo 94 da Lei Pelé é insustentável e inconstitucional.
Digno de nota que o anteprojeto de Lei Geral do Esporte Brasileiro, em seu artigo 95, integra todo e qualquer atleta profissional nas normas inerentes às relações de trabalho, excetuando o futebol apenas no que tange às concentrações, repousos semanais remunerados, férias anuais e jornada de trabalho. Em que pese desnecessária a distinção, tal como já exposto nestas linhas, merece aplauso a iniciativa de revogação do artigo 94 da Lei n.º 9.615/98.
Fabrício Trindade de Sousa é advogado e administrador de empresas, sócio do escritório Amorim Trindade & Kanitz Advogados, Pós-Graduado em Processo Civil, Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, membro fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo – ANDD, membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho, Vice-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF, Professor da Pós-graduação em Direito Desportivo da Universidade Cândido Mendes – UCAM/RJ, Professor da Pós-graduação em Direito Desportivo do Instituto Ibero Americano de Direito Desportivo, foi Professor Convidado da Universidade de Brasília e coautor do livro “A Evolução do Futebol e das Normas que o Regulamentam: Aspectos Trabalhistas Desportivos”.