O ÁRBITRO ASSISTENTE DE VÍDEO – A ALTERAÇÃO DA REGRA 5 DO FUTEBOL

Felipe Legrazie Ezabella

Conselheiro e sócio fundador do IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.

 

1) Introdução

A grande novidade tecnológica da Copa do Mundo de 2018, sem sombra de dúvidas, foi a utilização do recurso de vídeo para o auxílio da arbitragem.

O agora popular VAR, sigla em inglês para Video Assistant Referee, foi introduzido após dois anos de estudos e experimentos aprovados previamente pela The IFAB – The International Football Association Board.

Nesse breve artigo vamos tentar explicar um pouco o que é a THE IFAB, como se deu a introdução do VAR com a alteração da Regra 5 do jogo, quais os princípios e protocolos de sua utilização que acabaram por ser muito pouco e incorretamente divulgados durante a Copa do Mundo da Rússia.

2) The IFAB – The International Football Association Board

(http://www.theifab.com)

No final do século XIX o futebol estava se tornando muito popular na Grã Bretanha, porém, as regras do jogo variavam em cada região. Em função disso, os representantes das quatro associações britânicas (Inglaterra, Irlanda, Escócia e País de Gales) reuniram-se em 2 de junho de 1886 e entenderam que precisavam unificar as regras, surgindo assim a The IFAB.

A The IFAB acabou sendo reconhecida como a guardiã das regras do jogo e encarregada de sua preservação, monitoramento, estudo e alteração. Até hoje, como veremos adiante, as “leis do jogo” só podem ser por ela alteradas.

A FIFA – Fédération Internationale de Football Association, por sua vez fundada em 1904, também reconheceu a importância da uniformização das regras para a popularização do esporte, tendo aceitado as “regras do jogo” estabelecidas pela The IFAB, e em 1913 se tornado parte da entidade ganhando um assento em seu corpo diretivo.

A grande alteração na estrutura da entidade ocorreu apenas em 2014 quando efetivamente foi registrada na Suíça como uma associação independente, com novos regimentos, órgãos internos e estatuto, estrutura própria, definição de missão e responsabilidades, reconhecendo a necessidade de ajustar sua imagem ao mundo contemporâneo que exige organizações modernas, transparentes e democráticas.

Ainda em 2014 tivemos uma substancial mudança no sistema de votação. O The IFAB continua composto pelas quatro associações britânicas de futebol (Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte) com um voto cada e pela FIFA, agora com quatro votos, sendo que para qualquer alteração é necessária a maioria qualificada de três quartos.

A missão da entidade continua sendo ser uma guardiã independente das regras do jogo, protegendo e fortalecendo os valores fundamentais e a simplicidade do futebol.

3) A alteração da Regra 5 do Futebol – O Árbitro Assistente de Vídeo

Como visto acima, qualquer mudança nas regras do jogo deve passar pela The IFAB. E em seu site é possível observar e entender que um dos principais propósitos da entidade é assegurar que as regras permaneçam simples, justas e não intrusivas, de acordo com o verdadeiro espírito do jogo, mas também que possam ser adaptadas às novas tecnologias que podem ajudar a melhorá-lo e torná-lo mais justo.

  1. a) Fase de testes

Seguindo seus novos propósitos de adaptar as regras do jogo às novas tecnologias em busca de um futebol mais justo, a The IFAB aprovou em março de 2016, em seu 130º (centésimo trigésimo) Encontro Anual, um período de dois anos de testes para a análise de erros claros em situações que podem alterar o jogo, utilizando-se para tanto árbitros assistentes de vídeo (live experiments with video assistance for clear errors in match-changing situations).

Ao final os testes deveriam responder a seguinte pergunta: os árbitros assistentes de vídeo melhoraram o jogo?

Os testes partiram de cinco premissas fundamentais.

A primeira delas era que não se pretendia alcançar 100% (cem por cento) de acertos em todas as decisões, justamente para manter o fluxo essencial e as emoções do futebol, que resultam da ação quase ininterrupta do jogo e da ausência geral de longas paralisações. A filosofia é: “interferência mínima – benefício máximo”.

A segunda premissa fundamental, ressaltando e garantindo que o árbitro, e não o árbitro assistente de vídeo, é o titular, o responsável pela decisão, é que a decisão do árbitro da partida só pode ser alterada se a análise de vídeo mostrar um erro claro. Não se analisa se a decisão foi correta, mas sim: a decisão foi claramente errada?

A terceira premissa foi a instituição de um protocolo único, com requisitos técnicos e educacionais, que deveria ser utilizado por todos, seguindo sempre a linha de uniformização dos procedimentos e regras.

A quarta premissa foi limitar o uso do vídeo para determinadas situações que pudessem alterar a partida, uma vez que são muitas as decisões tomadas pelos árbitros ao longo dos 90 (noventa) minutos. Assim, limitou-se o uso para quatro categorias de decisões que podem alterar uma partida:

(i) marcações ou não de gols;

(ii) marcações ou não de pênaltis;

(iii) expulsão com cartão vermelho direto (expulsão com segundo cartão amarelo não é revisada);

(iv) erro de identidade na aplicação de sanção.

Em todas estas situações o árbitro assistente de vídeo é usado somente após o árbitro principal tomar uma decisão (incluindo permitir que o jogo continue), ou em caso de um incidente grave não ter sido observado.

A quinta premissa é referente ao processo de treinamento da arbitragem para o uso do sistema de vídeo de forma eficaz, especialmente porque, como visto, será possível utilizá-lo tão somente em situações-chaves e/ou complexas durante a partida. No treinamento o objetivo principal é desenvolver um sistema de revisão eficiente para paralisar o jogo o mínimo possível, sem sacrificar a precisão da análise.

Por fim, foi escolhida a universidade belga de KU Leven, com experiência em arbitragem e futebol, para coletar e analisar os dados que posteriormente seriam avaliados pela The IFAB.

  1. b) A Aprovação do Árbitro Assistente de Vídeo

Em 3 de março de 2018, no 132º (centésimo trigésimo segundo) Encontro Anual da The IFAB, após os dois anos de testes efetuados em diversos países e competições, foi aprovada a alteração da regra 5 do jogo, com validade a partir de 1º de junho, com a inclusão do uso opcional do árbitro assistente de vídeo pelas associações de futebol em suas competições.

Na mesma reunião também foi decidido que, para a entidade organizadora de uma competição receber autorização, que obrigatoriamente deve ser escrita, para a utilização do sistema de árbitro assistente de vídeo, ela deverá não só adotar o protocolo integral e único da regra, como implementar o programa desenvolvido pela própria The IFAB, denominado IAAP – Implementation Assistance & Approval Programme. O primeiro workshop sobre o programa IAAP foi realizado em Londres entre os dias 27 e 29 de março de 2018.

Os árbitros assistentes de vídeo melhoraram o jogo? No Encontro Anual de 3 de março de 2018, por unanimidade de votos, a The IFAB respondeu que sim!

  1. c) Os Princípios

Os princípios adotados para a utilização do sistema de árbitro assistente de vídeo seguem, basicamente, as cinco premissas anteriormente listadas quando do início da fase de testes da nova regra. Vamos listá-los:

I – O objetivo não é alcançar 100% (cem por cento) de precisão para todas as decisões, pois isso destruiria o fluxo essencial e as emoções do futebol. Interferência mínima – Benefício máximo;

II – O árbitro assistente de vídeo é apenas para situações-chave durante uma partida (marcações ou não de gols; marcações ou não de pênaltis; expulsão com cartão vermelho direto; erro de identidade na aplicação de sanção) e para casos graves não observados.

III – O árbitro sempre tomará uma decisão, que só será alterada se a revisão mostrar um erro claro. Não se analisa se a decisão foi correta, mas sim: a decisão foi claramente errada?

IV – Os árbitros assistentes de vídeo são oficiais da partida.

V – Apenas o árbitro pode iniciar uma revisão; o árbitro assistente e outros oficiais podem somente recomendar uma revisão.

VI – O árbitro deve estar “visível” durante o processo de revisão para garantir a transparência do processo.

VII – A decisão final será sempre tomada pelo árbitro.

VIII – Não há prazo para a tomada de decisão durante a revisão. A precisão é mais importante que a velocidade.

IX – Uma partida não pode ser invalidada por conta do mal funcionamento do sistema de vídeo, de uma decisão incorreta envolvendo o árbitro assistente de vídeo ou de uma decisão de não revisar um incidente.

X – As competições devem usar o protocolo completo do árbitro assistente de vídeo – protocolo único universal.

  1. d) A Aplicação Prática

A The IFAB também emitiu algumas orientações práticas sobre o funcionamento do sistema, orientações essas ainda muito pouco difundidas e explicadas pelos profissionais que atuam na área, mesmo com a ampla cobertura jornalística durante a realização da Copa do Mundo de Futebol entre os dias 14 de junho e 15 de julho de 2018.

I – O árbitro assistente de vídeo verificará automaticamente todos os incidentes usando as imagens da emissora, não havendo a necessidade de treinadores ou jogadores solicitarem uma revisão.

II – O árbitro pode parar o jogo para fazer uma revisão quando as equipes não estiverem numa boa posição de ataque.

III – O árbitro indicará uma revisão sinalizando com as mãos o contorno de uma tela de televisão; uma decisão apenas poderá ser alterada se o sinal tiver sido feito.

IV – Para gols, penalidades e alguns cartões vermelhos, a revisão pode incluir a jogada de ataque que levou ao incidente (incluindo ganhar a posse da bola), mas não um reinício que iniciou o ataque.

V – O árbitro pode tomar uma decisão de revisão com base apenas nas informações do árbitro assistente de vídeo ou depois de rever as imagens em campo.

VI – A revisão das imagens em campo geralmente será para decisões “subjetivas” e não para decisões de fato.

VII – Quando da revisão das imagens, na transmissão deverá ser utilizada a velocidade em “tempo real” nos casos de faltas, para verificar a intensidade, e nos casos de bola na mão, para verificar a intenção. A revisão com a velocidade das imagens em “câmera lenta” só será utilizada para identificar o ponto de contato nos casos de agressões físicas e de bola na mão.

VIII – O árbitro deverá indicar claramente o resultado de uma revisão e garantir o reinício correto do jogo.

  1. e) A Regra

Por fim, a alteração da Regra 5 do jogo com a inclusão do item 4 que trata especificamente do árbitro assistente de vídeo. Em tradução livre, uma vez que as regras oficiais são publicadas tão somente nas línguas inglesa, francesa, alemã e espanhola, temos:

REGRA 5 – O ÁRBITRO

  1. ÁRBITRO ASSISTENTE DE VÍDEO (VAR – sigla em inglês)

O uso de árbitros assistentes de vídeo só é permitido quando o organizador do jogo/competição tiver cumprido todos os requisitos do protocolo VAR e da implementação (conforme estabelecido no VAR Handbook) e tenha recebido permissão por escrito do IFAB e da FIFA.

O árbitro pode ser assistido por um árbitro assistente de vídeo (VAR) apenas no caso de um “erro claro e óbvio” ou “grave incidente perdido” em relação a:

marcação ou não de gol;

marcação ou não de pênalti;

expulsão com cartão vermelho direto (não pela segunda advertência);

erro de identidade na aplicação de sanção.

A assistência do árbitro assistente de vídeo (VAR) estará relacionada ao uso do(s) replay(s) do incidente. O árbitro tomará a decisão final que pode basear-se unicamente nas informações do VAR e/ou no próprio árbitro revendo as imagens do replay diretamente (revisão das imagens em campo).

Exceto na hipótese de um “incidente grave que não foi visto”, o árbitro (e, quando for relevante, os outros oficiais “em campo”) deve sempre tomar uma decisão (incluindo a decisão de não penalizar um possível delito); essa decisão não deve ser alterada ao menos que exista um “erro claro e óbvio”.

REVISÕES APÓS O JOGO TER REINICIADO

Se o jogo foi interrompido e reiniciado, o árbitro só poderá realizar uma ‘revisão’ para aplicar a devida sanção disciplinar em casos de erro de identidade ou por uma ofensa relacionada a uma conduta violenta como cusparadas, mordidas ou extremamente ofensivas, insultos e/ou gesto(s) abusivo(s).

4) Conclusões

Nas palavras do Presidente da FIFA Gianni Infantino, em artigo publicado ainda durante a Copa do Mundo, “o gesto do VAR ganhou o mundo” e “simboliza bem concretamente o alcance desta revolução”. Essas simples palavras deixam evidentes a relevância desse passo da FIFA e da The IFAB, essa quebra de preconceito contra o uso da tecnologia no esporte mais popular do planeta. São também palavras de alegria e de alívio pelo sucesso da nova regra que, obviamente, ainda deverá ser objeto de muitos questionamentos e de aperfeiçoamento.

Ao gestual do futebolista (e de todos que acompanham o esporte) já foi incorporado o sinal de desenhar com as mãos um retângulo. Vimos isso ao longo da Copa do Mundo e veremos sempre de agora em diante.

Temos que nos adaptar e entender as regras, os princípios, para não nos confundirmos com as dos demais esportes (no tênis é o atleta quem pede a revisão e todos acompanham pelo telão; no vôlei e nos esportes americanos, em sua grande maioria, é o treinador). Mas também podemos começar a pensar nos bons exemplos dos demais esportes para aperfeiçoarmos no futebol.

Um dos principais desejos dos futebolistas é que os treinadores ou capitães das equipes possam pedir (com um limite) a revisão de determinado lance. Vejam que tal desejo não se coaduna com os princípios básicos do sistema, uma vez que o protocolo determina que o árbitro assistente de vídeo revise automaticamente todos os lances, avisando o árbitro apenas se entender ter ocorrido um erro óbvio e claro.

E para finalizar, se a Copa do Mundo não seria a mesma (menos justa e com resultados diferentes) sem o auxílio da tecnologia, temos certeza que as competições que adotarem o árbitro assistente de vídeo também passarão a ter mais credibilidade e justiça dentro de campo, sem evitarem a subjetividade nas decisões e a polêmica que nos move dia a dia.

Referencias:

[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][1] LAW 5 – THE REFEREE

  1. VIDEO ASSISTANT REFEREE (VAR)

The use of video assistant referees (VARs) is only permitted where the match/ competition organiser has fulfilled all the VAR protocol and implementation requirements (as set out in the VAR Handbook) and has received written permission from The IFAB and FIFA.

The referee may be assisted by a video assistant referee (VAR) only in the event of a ‘clear and obvious error’ or ‘serious missed incident’ in relation to:

goal/no goal

penalty/no penalty

direct red card (not second caution)

mistaken identity when the referee cautions or sends off the wrong player of the offending team

The assistance from the video assistant referee (VAR) will relate to using replay(s) of the incident. The referee will make the final decision which may be based solely on the information from the VAR and/or the referee reviewing the replay footage directly (‘on-field review’).

Except for a ‘serious missed incident’, the referee (and where relevant other ‘on-field’, match officials) must always make a decision (including a decision not to penalise a potential offence); this decision does not change unless it is a ‘clear and obvious error’.

REVIEWS AFTER PLAY HAS RESTARTED

If play has stopped and restarted, the referee may only undertake a ‘review’, and take the appropriate disciplinary sanction, for mistaken identity or for a potential sending-off offence relating to violent conduct, spitting, biting or extremely offensive, insulting and/or abusive gesture(s).

2https://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,o-gesto-do-var-ganhou-o-mundo,70002397819

Felipe Legrazie Ezabella

Advogado; Bacharel, Mestre e Doutor pela Universidade de São Paulo – FADUSP; cursos de especialização em Administração Esportiva pela FGV/SP, em Arbitragem pela FGV/EDESP e em Gestão do Futebol pela Universidade do Futebol; sócio fundador do IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.[/fusion_builder_column][/fusion_builder_row][/fusion_builder_container]