RICARDO JORGE RUSSO JUNIOR¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)
Muito se discutiu sobre a suposta intervenção da FIFA (Federation Intercionale de Football Association), ou mesmo sua atuação dita como autoritária no Brasil na época da Copa do Mundo de 2014, inclusive havendo questionamentos sobre a soberania do País.
Também muito se discute sobre o sistema de funcionamento e as regras das competições organizadas pela FIFA ou pelas Federações e Confederações a ela filiadas.
Questionamentos como: “Porque na copa pode ter cerveja comercializada no interior dos estádios, se no Brasil há lei proibindo tal pratica?”. Ou ainda, “porque os nossos estádios foram entregues para a FIFA durante o período da Copa do Mundo?”. “Porque foi necessária a elaboração de uma Lei Geral da Copa, se o Brasil é o País do Futebol?” E a soberania nacional?”
De pronto a resposta para todos os questionamentos que foram feitos em torno dessa discussão seria uma só: “Porque é a FIFA quem organiza a Copa do Mundo, é ela quem elabora as Regras e quem quiser participar do evento deve obedecê-las. E mais, o País que quiser ser sede do evento, deverá cumprir todas as exigências para tanto”
Muito bem, ainda que aparentemente autoritária a resposta, ela resolveria as questões, mesmo sem qualquer maior fundamentação. Mas o que buscaremos nesse trabalho é esclarecer e fundamentar ou ainda demonstrar o caminho que é necessário percorrer até se chegar nessa resposta. E temos plena ciência que não esgotaremos o tema e nem de longe temos essa pretensão, ainda mais quando se fala de Direito Desportivo e seus Regramentos, porém esperamos que possamos no mínimo organizar as ideias sobre o tema.
Palavras chave: Soberania – Regras e Normas – FIFA
É quase como um ditado popular a expressão “todo Estado tem soberania e autonomia”. Seguindo essa linha, trazemos o conceito de Estado do Ilustre Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Filho, 2002), “Estado é uma associação humana (povo), radicada em base espacial (território), que vive sob o comando de uma autoridade (poder) não sujeita a qualquer outra (soberania).” (Grifos nossos)
Soberania Estatal nos leva ao conceito de que ninguém poderá exercer qualquer poder sobre o Estado Soberano, ou ainda, que nenhum outro Estado, seja nacional ou mesmo Estado Membro poderá concorrer com o Poder Soberano. Ou seja, o Poder do Estado Nacional é único e inatingível por quem quer que seja.
Contudo, seguindo o exposto acima há também no conceito de Estado a expressão “autonomia”. Essa, um degrau abaixo da soberania, regulamenta e tangencia as determinações que o Estado pode exercer de forma independente, mas dentro de um limite, via de regra imposto por uma Lei Superior do próprio Estado. Ou seja, a autonomia terá liberdade de exercício dentro os limites impostos pela soberania. A soberania nunca será atingível, já a autonomia, poderá sim ser objeto de questionamentos rupturas.
O que precisamos ter claro é que o Estado possui esses dois elementos de composição e existência, que lhe proporcionam a articulação necessária para o seu desenvolvimento e relacionamentos externos. Sendo que a soberania lhe garante ausência de subordinação frente aos outros Estados Nacionais, portanto é algo inatingível e a autonomia, que é algo palpável e passível de flexibilização, pois regulamenta e organiza todas as formas que o Estado expressa suas vontades, vontades essas que decorrem de seu poder soberano.
Marcelo Caetano (Caetano, 1987) define soberania da seguinte forma:
“um poder político supremo e independente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por enhum outro na ordem interna e por poder independente aquele que, na sociedade internacional, não tem e acatar regras que não sejam voluntariamente aceites e está em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos.”
Muito bem, então o Estado que é soberano não é obrigado a aceitar imposições exigidas de outros Estados. Sabe-se que moralmente pode ocorrer ajustes, mas o Estado soberano aceita ou não aceita algo vindo de uma relação interestatal apenas se quiser. Tomem-se como exemplo, Convenções Internacionais, tais como as provenientes da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O Brasil, no caso, as aceita e ratifica se quiser. Mas arca com as consequências políticas internacionais se não as aceitar.
Então, por essa breve e rasa explicação sobre soberania já é possível se questionar, por qual razão o Brasil aceitou tantas imposições emanadas pela FIFA para a realização da Copa do Mundo, por exemplo, ou também na aceitação das regras dos campeonatos organizados por tal associação.
A FIFA, como amplamente conhecida por ser o órgão máximo do Futebol Mundial, é quem regulamenta tudo no âmbito das normas e regras dessa modalidade esportiva. Ainda que não de forma direta, como ocorre com as regras do jogo futebol, que são elaboradas pela IFAB (International Football Association Board). Mas a FIFA ao dizer que adota as regras criadas pela IFAB, as traz para dentro do seu sistema que passam então, a serem de observação obrigatória por todos os seus filiados.
Porém o nosso objeto de estudo é um pouco mais restrito, limitando-se às regras criadas pela própria FIFA, regras essas a serem observadas no âmbito dos Campeonatos que organiza. E falaremos diretamente da copa do Mundo.
Vale dizer que a copa do Mundo é um campeonato organizado e administrado pela FIFA, ou seja, nenhuma outra entidade pode organizar uma Copa do Mundo sem que a FIFA eventualmente autorize. Podem ser organizadas competições similares por outras entidades de administração do desporto, mas nunca uma Copa do Mundo.
Como diz o brocardo popular; “para tudo na vida se tem regras”. E é isso mesmo, temos que observar regras para tudo que fazemos na vida, da hora que nascemos até a hora que morremos. Temos regra na escola, nos lugares destinados ao lazer, regras de vizinhança, regras no casamento, de convívio, etc. E aqui as regras que nos referimos, está classificada no âmbito latu sensu, ou seja, Leis, Decretos, Atos Normativos, etc. O importante é saber que são pouquíssimas coisas e situações na vida que não são regulamentadas por Leis, Decretos, Normas Regulamentadores, etc.
E com a Copa do Mundo não é diferente, além das regras do jogo em si, como já dito alhures, como por exemplo, que o lateral sempre será cobrado com as mãos, há, ainda, as regras de organização da referida competição. Por exemplo, quantos times (países) participarão, qual o tempo de duração, qual será a premiação, onde será realizada, Ops … onde será realizada? Chegamos onde queríamos.
As regras que são criadas pela FIFA e que devem ser observadas pelos Países que pretendem receber a competição em seu território. Vimos muitos “desmandos” da FIFA no Brasil na época da Copa de 2014, sem de fato entender direito o que estava acontecendo, apenas sendo levados pelo que a mídia (ah a mídia …) veiculava a todo momento.
Ocorre que, na verdade nunca houve qualquer exagero da FIFA quanto às imposições feitas ao Brasil para que a Copa do Mundo fosse realizada em nosso território. O que houve de fato foi simplesmente o Brasil cumprindo as regras e exigências impostas pela FIFA, para que o evento pudesse ser realizado no famoso jargão “padrão FIFA”. Regras essas exigidas de qualquer País que se candidate a ser País sede da Copa do Mundo. Traduzindo, nas palavras do Ilustre Professor Luiz Fernando Aleixo Marcondes em aula ministrada no curso de Pós Graduação em Direito Desportivo 2017:
“A FIFA diz assim: O evento é meu, eu quero que seja realizado assim e se você quiser participar e principalmente ser um País sede tem que cumprir essas regrinhas aqui.”
E o exagero que dissemos acima não está vinculado à pertinência ou não das exigências e regras impostas pela FIFA, pois isso com certeza seria uma boa temática para uma tese de mestrado. O que importa por ora é, que tudo que o Brasil teve de fazer para poder ser País sede nada mais foi que seguir as regras exigidas para tanto. Importante dizer que, se o Brasil não quisesse ou não concordasse com tudo que lhe foi imposto, bastava não se candidatar a ser sede do evento.
Nesse espeque, o Ilustre Professor Luiz Fernando Aleixo Marcondes, (Marcondes, 2016), em curtas linhas esclarece bem sobre o Princípio da Autonomia Desportiva Internacional, que facilmente aplicável ao objeto do nosso estudo: “… A independência e autodeterminação desportiva dos organismos desportivos são explicitadas pelo princípio da autonomia desportiva internacional, como uma espécie de soberania desportiva.”
E mais adiante define muito bem a comparação que pretendemos fazer. Veja-se:
“O futebol organizado mundial está sob os auspícios da fédération Internacionale de Football Association – FIFA, adiante FIFA, uma associação civil suíça de direito privado, pautada no direito suíço e detentora dos direitos do sistema federativo deste esporte. Tendo poderes não só para governar, mas para julgar e legislar no ambiente associativo, a entidade é constituinte do ordenamento jurídico-desportivo privado internacional (transnacional / supraestatal) do futebol.” (Grifamos)
Essa explicação deixa muito clara a autonomia da FIFA quanto ao seu poder legislativo, no âmbito do direito privado, criando regras para regulamentar o futebol como um todo. Vale dizer que a escolha pela Suíça feita pela FIFA teve como foco principal sua legislação civil que oferece grande liberdade, por meio de seu código civil, para atuação das Associações de Direito Privado. Além disso, também há que se considerarem os benefícios fiscais.
(Moraes, 2016) defende que as regras e normas jurídicas transnacionais formam princípios sui generis que refletem a autonomia do Direito Desportivo e trazendo para nosso estudo, da FIFA:
“Um conjunto de princípios sui generis criados a partir de normas jurídicas transnacionais geradas por regras e interpretações originárias das federações internacionais e, mais recentemente, dos padrões interpretativos do CAS. Uma ordem jurídica global, de natureza autonoma. Isso implicaria na total autonomia frente aos tribunais e governos nacionais, podendo ser apenas autorregulada por seus organismos internos ou validados por essas.” (grifamos)
Mas há que se ressaltar que toda essa autonomia frente até mesmo à soberania nacional deve sim observar limites legais ordinários em âmbito internacional e nacional, sem redundância, mas dentro de cada País. Isso devido ao crescimento exponencial do esporte no mundo, inclusive curvando-se consideravelmente ao viés dos negócios e não só da pratica em si.
Dessa forma o Estado transnacional e nacional se viu obrigado a regulamentar situações oriundas do esporte, mas com transcedências na vida comum. Tome-se como exemplo, o Estatuto do Torcedor. Ou seja, problemas sociais decorrentes do desporto necessitaram ser regulamentados pelo Estado. Até mesmo pelo fato de que os organismos desportivos, como a FIFA, não tem competência para criar regras a serem seguidas por quem não está sob seu âmbito de atuação, como por exemplo os torcedores. A competência dessa entidade de administração do futebol restringe-se a atletas, técnicos e comissão técnica, arbitros, clubes, confederações nacionais e continentais, tais como a CBF (Confederação Brasileira de Futebol).
Portanto, encontraremos autores que defenderão que as entidades de administração do desporto e aqui nos referimos à FIFA por ser o objeto do nosso estudo, possuem sim autonomia como discorrido acima, porém a exercerá de forma pluríma ou em conjunto com leis ordinárias e constitucionais, vindas do Estado.
Nesse sentido (Fachada, 2017) defende o seguinte:
“Nesse sentido, entendemos que, ao falarmos da autonomia legislativa, devemos basear-nos no Pluralismo Jurídico e lançar sobre os ordenamentos que estudaremos uma dupla análise. De um lado, parece-nos razoável buscarmos, dentro do ordenamento estatal, normas que tenham sido promulgadas visando a atenderem exlusivamente aos anseios da comunidade esportiva. … De outro lado, propormo-nos a verificar se esse sistema jusdesportivo possui capacidade autônoma de dar ensejo à criação de normas próprias, voltadas para sua organização.”
Seguindo essa mesma linha (Moraes, 2016) explica:
O desenvolvimento do fenômeno desportivo, principalmente com a profissionalização e o Sportbusiness, agregou a ele inúmeras áreas conexas que, por arrastamento, as autoridades desportivas foram chamando para o âmbito do seu poder. Entretanto se tornou necessária a intervenção estatal, visto que a produção normativa sobre a qual legislava as federações desportivas passou a colidir não só com temas de regulação estatal, mas também com alguns direitos e liberdades fundamentais.”
No Brasil, a própria Constituição Federal, em seu artigo 217, consagra o Princípio da Autonomia Desportiva deixando ao cargo das entidades associativas a competência para regular e normatizar suas atividades, competições, etc.
De fato não há como se negar essa convivência plurima, porém, em nossa opinião não há que se falar em intervenção ou mesmo dependência de uma sobre a outra no aspecto em que nos propusemos a escrever, ou seja, quanto às exigências e regras impostas pela FIFA para organização da copa do Mundo.
Assim acreditamos que no âmbito da organização de competições e eventos desportivos e dentro do nosso objeto de estudo da Copa do Mundo, a entidade de administração, nesse caso a FIFA, tem total autonomia para criar as regras e demais exigências, pois se trata de uma associação de direito privado, que possui inúmeras especificidades, autonomia e amplos poderes para isso. Se essas regras e exigências vão de encontro com a Legislação (latu sensu) de algum País, basta que esse Estado não se filie, não participe das competições e não se candidate a receber o evento promovido pela FIFA.
Mas em se tratando de Copa do Mundo, ainda que de fato algumas regras e exigências vão de encontro à legislação de algum País, ou mesmo, usos, costumes, etc., vale à pena se adaptar e até fazer “vistas grossas” para determinadas regras e exigências, pois o retorno econômico e a projeção que um evento dessa magnitude proporcionam pode servir de amparo e justificativa para sua aceitação. Citemos como exemplo a polêmica sobre a comercialização de cerveja (alcoólica) dentro dos estádios durante a Copa do Mundo.
E essas adaptações, como o exemplo acima, devem ser regulamentadas dentro do País que recebe o evento, ai sim para que haja um equilíbrio legislativo e jurídico, evitando-se, então, conflito de normas. Traduzindo, seguindo a linha didática: “A FIFA diz ao Brasil – Você quer receber a Copa do Mundo? Então cumpra essas exigências e no que conflitar com o que já foi positivado no Brasil, edite uma Lei Geral da copa do Mundo, para regulamentar tais adaptações.”
Então acreditamos que com o que foi exposto acima, já é possível visualizar que tudo que o Brasil fez para receber a Copa do Mundo em 2014 não foi por uma espécie de coação da FIFA e sim porque ele quis de livre e espontânea vontade e aqui consideraremos que a decisão do Governo em participar do evento contou com o apoio de toda a população brasileira.
Porém a análise do quanto foi certo ou errado ter aceitado as exigências da FIFA, das adaptações que o País fez, para conseguir chegar ao “Padrão FIFA” não faremos nesse trabalho e nem é nossa pretensão, pois é um tema de extrema dificuldade. Também deixaremos de analisar e comentar sobre o legado, se houve, quais suas proporções, etc.
O breve caminho aqui exposto se justifica, pois, o foco aqui não foi analisar ou mesmo criticar se o que ocorreu durante a Copa do Mundo de 2014 foi bom ou ruim, certo ou errado, eis que nosso objetivo foi apenas tentar demonstrar o porquê o Brasil fez o que fez e aceitou o que aceitou.
Frente a isso, fizemos uma breve demonstração do conceito de Soberania e apontamos a autonomia das entidades de administração do desporto, em especial da FIFA. E aí sim, colocados esses conceitos frente à frente para demonstrarmos de onde veio todas as exigências e regras impostas para que o Brasil fosse sede da Copa do Mundo de 2014.
Diante disso, verificamos que não houve qualquer espécie de afronta à soberania nacional quanto às exigências que a FIFA fez ao Brasil para a realização da Copa do Mundo de 2014. Facilmente pudemos verificar e entender que tudo que foi feito, foi nada mais que cumprir as regras.
Portanto, ainda que com breves considerações, esperamos ter conseguido esclarecer um pouco sobre o tema e fazer com que a opinião de alguns leitores mude frente ao que é ou ao que foi veiculado pela mídia de forma equivocada. Aliás, observo no que tange ao esporte e em especial ao futebol, ser bastante comum veiculações sem condão informativo, apenas com o viés provocativo e voltado à polêmica.
Bibliografia
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Ceneviva, W. Lei de Registros Públicos Comentada. São Paulo: Saraiva. 2009
Diniz, M. H. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva. 2004
Fachada, R. T. Direito Desportivo – Uma disciplina Autonoma. R.J. 2017
Filho, M. G. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. 2002
Gandra, C. R. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva. 2000
Marcondes, L. F. Direitos Econômicos de Jogadores de Futebol – Lex Sportivs e Lex Pública. Curitba. Juruá. 2016
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Venosa, S. d. Direito Civil – Direito Civil. São Paulo: Atlas. 2007
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¹ Coordenador Regional do IBDD – SP; Advogado, Mestrando pela Faculdade de Educação da Unicamp, Pós Graduado em Direito Desportivo, Pós Graduado em Direito e Processo Civil, Pós Graduado em Direito e Processo do Trabalho, Especialista em Direito do Trabalho Coletivo (Sindical), Especialista em Cálculos Trabalhistas, MBA em Direito Empresarial, Auditor do STJD da Confederação Brasileira de Atletismo, da Confederação Brasileira de Esportes para Deficientes Visuais, da Federação Paulista de Vôlei, Defensor Dativo do Tribunal de Justiça Desportiva Antidoping, Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/São Paulo e OAB/Campinas, Diretor da Associação dos Advogados Trabalhistas de Campinas (AATC), Diretor do Instituto Nacional de Pesquisa e Promoção de Direitos Humanos – INPPDH, Professor Universitário, de Cursos Preparatórios para Concursos e Palestrante.