O PROJETO DE LEI CLUBE–EMPRESA E A TAL “MODERNIZAÇÃO DO FUTEBOL”. UMA VISÃO CRÍTICA DE QUEM É A FAVOR DE DEBATES; SEM URGÊNCIA!

Cristiano Augusto Rodrigues Possídio¹

              Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)

O futebol brasileiro vive o que se pode chamar de estado de “eterna crise”. Entra ano e sai ano e boa parte dos clubes seguem endividados, sem capacidade de investimento, pagamento da folha, das obrigações trabalhistas, tributárias, previdenciárias e contratuais em geral.

Vira e mexe, o tema volta à carga no Congresso Nacional e, quase sempre, a União sai literalmente em socorro das agremiações, como ocorreu em vários momentos no passado, especialmente por intermédio de diversas leis promulgadas com abertura de refinanciamentos (“Refis”), Lei de Responsabilidade Fiscal no Esporte e afins, sem que o objetivo final fosse alcançado, ou seja, reestruturação e soerguimento das entidades de prática desportiva, ao menos na esmagadora maioria dos casos.

Adotou-se louváveis ações “de fora para dentro” dos clubes e nunca se cobrou, efetivamente, responsabilidade e mudança de atitude e de gestão “de dentro para fora”, atingindo todo o escopo da coletividade. Já dá para se perguntar: será que essa lei garantirá a modernização e combate, definitivo, ao chamado “superendividamento” dos clubes? Ou será o mesmo “samba de uma nota só” visto no passado, onde as entidades de prática desportiva simplesmente aderiam e,

quando muito, cumpriam mínima parte dos programas de refinanciamento para depois se tornarem novamente inadimplentes, numa verdadeira ciranda de endividamento decorrente de más gestões, muito amadorismo e calotes sucessivos? Pior de tudo, continuavam assumindo dívidas e obrigações, sem qualquer tipo de controle, aumentando ainda mais o passivo, com toda condescendência estatal.

Muitos são os fatores preponderantes para que esse fenômeno cíclico ocorresse; o principal, dentre outros é a velha sensação de impunidade e a ausência da adoção de modelos adequados de governança administrativo-financeira e equilíbrio nos gastos e nas contas, o que acaba reverberando nas relações jurídicas e dívidas com o fisco, atletas, treinadores, demais trabalhadores em geral, outros clubes, empresários e intermediários.

Era esperado, portanto, que boa parte dos clubes estivessem novamente com a “corda no pescoço”; eis que, passados pouco mais de quatro anos da promulgação da Lei nº 13.155/15, surge mais um projeto “salva vidas”, sempre amparado em objetivos nobres; o de agora é “promover a profissionalização do futebol brasileiro”– parte inicial, do art. 1º, do Projeto de Lei – como se já não se tratasse de desporto profissional de alto rendimento.

O presente estudo visa conferir uma visão singela, ainda que primária do projeto, obviamente sem nenhuma pretensão de esgotamento e de aprofundamento das múltiplas matérias nele contidas, até porque são tantas e atingem diversas áreas do direito, principalmente nas áreas cível, tributária e trabalhista que simplesmente não cabem numa mera coluna; seria necessário um estudo muito mais aprofundado, inclusive, impactos no mercado e na própria modalidade desportiva como um todo.

O primeiro grande problema que se apresenta não é sequer de conteúdo; reside na urgência da sua tramitação. Aliás, é tão frágil a certeza de que o projeto alcançará seus nobres objetivos que, em pouquíssimo tempo, já contou com diversas redações no que se pode chamar de “tira, bota, altera” institutos, a exemplo de um anacrônico “fundo garantidor” que chegou a ser cogitado e depois, felizmente, extirpado. Isso sem falar nas mudanças e alterações feitas e desfeitas como que se tratasse de algo que pudesse ser conduzido ao sabor dos ventos, como soe ocorrer com a cláusula compensatória desportiva e outras regras afetas ao CETD – CONTRATO ESPECIAL DE TRABALHO DESPORTIVO, tão importante na relação clube x atleta.

Os parlamentares aprovaram o regime de urgência e isso impede maior aprofundamento nos debates das ideias. Na prática, sob o espectro do processo legislativo, deixou de passar por comissões, antes de ser levado à votação em plenário, portanto, sem permitir maior diálogo, não apenas no seio do parlamento brasileiro, porém, também no âmbito da sociedade civil. Em suma, será aprovado – “quer queira, quer não”!

Boa parte dos leitores hão de concordar que mudanças tão profundas e especiais para serem mais duradouras e concretas – efetivas, na prática – necessitariam maior debate, inclusive e se possível, com audiências públicas e participação dos vários segmentos/atores sociais envolvidos, a exemplo dos próprios clubes e atletas, sem falar no interesse público, já que diversos benefícios tributários e legais serão instituídos, impactando na arrecadação de impostos e nas diversas relações jurídicas que se formam em derredor desta parte importante da “indústria” do entretenimento. Dificilmente leis aprovadas assim dão certo, principalmente em se tratando de futebol brasileiro.

Pois bem. O projeto apresenta vários pilares gerais. Permito-me abordar alguns, comentando-os dentro da perspectiva crítica que se pretende fazer nesta coluna, já que não dá para falar de tudo.

De logo, advirto que não sou refratário a mudanças ou avesso a modernização de coisa alguma; porém, combato o açodamento e a velocidade desnecessária para implementação de qualquer ideia que impacte significativamente um mercado extremamente complexo, sem identificação de possíveis problemas que poderão ocorrer mais adiante, até para que a legislação que se pretende aprovar não seja mais uma a naufragar nos mares bravios das melhores intenções – e de boas intenções o inferno está cheio.

A primeira vertente simplória é “facultar e incentivar os clubes a mudar o seu formato de organização” para assumirem “tipos societários já existentes”, a exemplo de Sociedades Anônimas e Limitadas. Apesar de, efetivamente, o art. 2º do Projeto, realmente facultar e não obrigar a “transformação”, tal ocorre no mundo da teoria; convenhamos. Diz-se isso porque para a maioria esmagadora das associações desportivas sem finalidade lucrativa, o projeto impõe a alteração da sua natureza jurídica, por motivos mais do que lógicos, a começar pela própria competitividade do mercado e o grau de benefícios fiscais e de outras ordens que são conferidos, tão-somente, a quem optar pela mudança na sua estrutura jurídica.

Quem não o fizer estará fadado ao fracasso desportivo, com exceção de poucos clubes já conhecidos – um, inclusive, o Flamengo-RJ, que acaba de se sagrar, com méritos, Campeão Brasileiro e da Libertadores, foi até citado como exceção no voto do ilustre deputado relator.

A agremiação que não fizer a “mutação”, perderá vantagens extraordinárias e no projeto não houve nenhuma diferenciação, por exemplo, entre os clubes que aderiram outrora ao “Profut” e nele se mantiveram cumprindo as obrigações assumidas, incluindo evitar o incremento maior de novas dívidas, e os que aderiram e foram excluídos por inadimplência e novo calote perante a União.

Na prática, a lei vem à baila como um verdadeiro prêmio aos irresponsáveis e uma punição aos responsáveis, já que não os distingue e, ao revés, equipara um ao outro, como se a Lei nº 13.155/15 e o calote de algumas agremiações não tivesse existido. Os clubes responsáveis que mantiveram o cinto apertado, cumprindo as obrigações assumidas com indubitável impacto nos investimentos (reduzidos), formação de elencos (mais restritos), diminuição de endividamento etc., durante quatro longos anos, ficam prejudicados, simplesmente porque – pasmem – não deram o calote. Os outros terão nova chance, mesmo sem cumprimento do dever de casa…

Alea jacta est, devem pensar os clubes que aderiram ao “Profut” e optaram pelo calote e irresponsabilidade: se não der de novo com essa lei que está por vir e como certamente algumas importantes e centenárias associações já esperam ansiosas a aprovação para lançarem mão de projetos ambiciosos, basta pedir novo socorro; o ente estatal não deve recusar! Afinal de contas, jamais recusou; não é verdade?

Outro pilar do projeto é o de atacar o “superendividamento”, através de dois mecanismos de “reestruturação”: antecipação do pagamento total da dívida pública, com descontos espetaculares, principalmente juros, multas e encargos; e dívidas cíveis e trabalhistas com admissão de regras especiais, inclusive, recuperação judicial.

Só para se ter uma ideia das chamadas “condições para quitação acelerada dos débitos”, exemplifique-se com a parcela única e o parcelamento em doze meses: quem optar por pagar em parcela única terá redução de 95% da multas; 65% dos juros e 100% dos encargos, inclusive honorários advocatícios; em doze meses, redução de 90% das multas; 60% dos juros e 100% dos encargos e honorários advocatícios.

“Senhor desconto”, vamos combinar!

Interessante é que a vertente da dívida pública é a mesmíssima pela qual foi concebida e, em parte, justificou a Lei nº 13.155/15, carinhosamente chamada de “Lei de Responsabilidade Fiscal no Esporte”. Lembremos que os débitos fiscais e previdenciários são os que maior impactam na dívida dos clubes. Destarte, no final das contas, devemos abordar isso como deve ser: trata-se de um novo “Refis”, apenas com benefícios de outras naturezas, bem mais dadivosos e muito mais ampliados.

No âmbito trabalhista, boa parte dos Tribunais já admite o chamado “Ato Trabalhista” ou “Acordo Global de Conciliação” que tem permitido aos clubes responsáveis a diminuição do passivo trabalhista e que, por conseguinte, nele se mantêm. O que se tem de possibilidade iminente é a recuperação judicial, obviamente, apenas para o clube que “virar” empresa e que, por isso, detenha finalidade lucrativa. O projeto permite, além do que já consta na Lei nº  11.101/05 (com algumas pequenas restrições, como a do art. 69, que seria inaplicável na seara jusdesportiva) certas vantagens específicas, a exemplo do não impedimento de participação nas competições para a entidade que requerer a recuperação judicial.

Espero e não quero crer que essa regra fulmine de morte a tentativa de implantar definitivamente, e na prática, o fair play financeiro no Brasil, já que se trata de clara invasão da autonomia administrativa das entidades, inclusive para fixar regras desportivas ansiosamente esperadas neste sentido – ao menos para quem anda na linha com suas obrigações, especialmente a folha de pagamento.

Sim, porque parece óbvio que o clube-empresa que estiver desonrando o pagamento dos salários de atletas e treinadores, numa situação de desespero ou até mesmo como estratégia processual para tentar escapar de eventuais rebaixamentos, pode simplesmente requerer recuperação judicial (pois não?), deduzindo a seguinte tese: ora, se não há impedimento à participação nas competições que o clube já está classificado, poderá se dizer que a recuperação

judicial o mantém, natural e desportivamente, “ativo”, devendo prevalecer, apenas, o mérito do jogo e das classificações alcançadas em campo, ao menos enquanto perdurar o processo.

Tudo pode acontecer; o que não falta na seara desportiva é a existência de bons e competentes advogados para firmar teses interessantes.

Além da generosa dedução dos débitos fiscais, o projeto traz o “Simples-Fut”, ou seja, os clubes pagarão um adicional de 5% sobre a receita total em substituição a todos os demais impostos. Ou seja, quem não virar clube-empresa, claramente ficará para trás, inclusive, na aposta em torno de novas leis futuras com outras roupagens, caso o projeto não venha a ser a “salvação da lavoura” e se precise de outro, nem que seja somente para atender o desespero de alguns (talvez os mesmos de sempre).

Para finalizar essa singela e perfunctória crítica ao projeto que deve ser votado na Câmara dos Deputados e no Senado em breve, quem disser que o clube que se transformar em empresa corre inexoravelmente risco de falência, sugiro rever conceitos e fazer uma leitura mais apurada, se possível recheada de raciocínio jurídico, aos arts. 32 e 33 do projeto. Talvez não seja bem assim e pode haver controvérsias.

Na prática, os mencionados dispositivos permitem a continuidade da existência das associações, mesmo depois de alterada a estrutura jurídica; e é conveniente que isso seja considerado como essencial nas deliberações em torno das possíveis transformações.

No art. 32 está prevista a possibilidade de cessão “dos direitos de propriedade intelectual de titularidade da associação, neles incluídos sua denominação, símbolos, escudos, siglas e mascotes” e no §2º, do mesmo caput, firmado que, salvo estipulação em contrato, a falência implica na rescisão imediata e automática desta

cessão, os quais “retornarão à propriedade exclusiva da associação, por tempo indeterminado”. Já o art. 33 torna impenhoráveis a denominação e os símbolos mencionados no art. 32 do projeto e que não responderão por qualquer dívida civil, comercial, fiscal, trabalhista, previdenciária ou de outra natureza, contraída pela entidade de prática desportiva profissional de futebol.

Nesse passo, a manutenção, mesmo que precária da entidade sem fins lucrativos, em tese protege o que de mais importante existe para os clubes tradicionais: a propriedade intelectual incidente sobre a sua denominação, símbolos, escudos, siglas e mascotes; e como o seguro morreu de velho e se está calejado em termos de leis com várias denominações e de boas intenções não atingidas, sugere-se preparar o discurso de convencimento para o investidor-sócio sobre a necessidade de manutenção da propriedade intelectual em nome da associação, até como medida preventiva protetiva.

Finalizo, lembrando o jurista francês Georges Ripert que certa vez disse “quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o direito”. As medidas legislativas anteriores fracassaram exatamente por ignorarem a realidade do endividamento dos clubes brasileiros e por se comportarem como tábua de salvação, quando, na prática, as intenções passaram ao largo de alterar a pouca cultura que se tem no Brasil em torno do cumprimento dos compromissos e obrigações assumidas.

Por isso, apesar de ser necessária a criatividade e a busca por melhoramentos na condição administrativo-financeira dos clubes, seu relacionamento com o fisco e atletas, mitigando e atacando o chamado “superendividamento”, não se deveria fazê-lo sem aprofundamento dos debates e com certo descolamento da realidade e da cultura vivida no futebol brasileiro há anos; afinal de contas, mesmo que metaforicamente, sequelas do 1×7 são sentidas para muito além do gramado do Estádio do Mineirão, portanto, para dentro do escopo da organização e do profissionalismo – ou da falta deles.


¹Advogado, Especialista em Direito Desportivo, Vice-Presidente do IDDBA – INSTITUTO DE DIREITO DESPORTIVO DA BAHIA, Vice-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-SE, Membro do IBDT – Instituto Baiano de Direito do Trabalho, Membro da Comissão de Direito Desportivo da ABRAT – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ADVOGADOS TRABALHISTAS.