COVID-19: A CIRCULAR FIFA Nº 1714 E O TRATAMENTO DOS CONTRATOS CUJA EXECUÇÃO SERÁ FRUSTRADA PELA PANDEMIA

Leonardo de Oliveira Maximo¹

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)

A comunidade global, em todos os níveis, trava uma luta inédita em nosso século: a batalha contra o inimigo invisível COVID-19, que subverteu inteiramente o modo de existir erigido ao longo das últimas muitas décadas. Com o futebol não está sendo diferente. À exceção dos esportes eletrônicos, as atividades desportivas estão suspensas em praticamente todo o planeta. Em sua declaração de 17.03.2020 ², a FIFA explicou que, particularmente para o esporte em comento, é imprescindível encontrar soluções adequadas e justas em nível global.

A entidade máxima do futebol proclamou que a situação atual exige unidade, solidariedade e um senso de responsabilidade compartilhado. Está, assim, em momento de constantes discussões com confederações, estados membros e outras partes interessadas globalmente, de forma a garantir a continuação do desenvolvimento futebol e de programas de solidariedade em sede mundial.

Os esforços e tratativas para estabelecer linha gerais de conduta diante da crise corrente culminaram na edição da Circular FIFA nº 1714, de 07.04.2020. O documento foi intitulado COVID-19 Football Regulatory Issues (Aspectos Regulatórios do Futebol no COVID-19)³ e goza de vigência imediata. De se notar que a entidade pede a cooperação das associações e partes interessadas “para atenuar as consequências de interrupções causadas pelo COVID-19 e garantir que qualquer resposta seja harmonizada no interesse comum“.

De início, ressalta-se que a FIFA reconhece que o ecossistema do futebol encontra-se em situação de força maior, conceito jurídico amplamente aceito internacionalmente e, em particular, válido e aplicável sob a lei suíça – aquela que rege a entidade. Curiosamente, porém, não há uma definição específica do que seja força maior nas Regulations on the Status and Transfers of Players (RSTP) da FIFA. O que se tem é simplesmente uma menção a ela no artigo 27 do aludido RSTP, que dispõe o seguinte (em tradução livre):

“Quaisquer questões não previstas nestes regulamentos e casos de força maior serão decididas pelo Conselho da FIFA, cujas decisões são finais.” [fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]

Em verdade, o que se observa no âmbito desportivo é uma abordagem extremamente restritiva à aplicação do conceito de força maior na prática, tanto pelos órgãos internos da FIFA (DRC, PSC) quanto pelo CAS. Não obstante, dada a gravidade do quadro que se enfrenta em escala global, a entidade reguladora optou pela determinação de que a circunstância atual é, inequivocamente, classificável como sendo de força maior. E justamente por este motivo, as decisões tomadas pelo Conselho da FIFA para a condução de diretrizes momentâneas são finais e não admitem recurso.

Uma vez reconhecido o momento extraordinário e a necessidade de estabelecimento de linhas gerais de conduta pela comunidade do futebol, a aludida Circular FIFA nº 1714 debruçou-se sobre 4 pontos:

  1. Contratos a expirar até o fim da temporada corrente e novos contratos a iniciar;
  2. Contratos e acordos que não poderão ser executados da forma originariamente concebida pelas partes;
  3. Períodos de registro (janelas de transferência);
  4. Demais assuntos.

Conquanto todos os tópicos sejam de maciça importância e mereçam, cada um deles, análise detida, focaremos nossa atenção no presente texto sobre o segundo aspecto: o dos contratos firmados em momento anterior à pandemia e que não se cumprirão conforme o esperado. Claro está que uma série de avenças de natureza laboral, por exemplo, encontrará grande dificuldade para ser cumprida em sua inteireza, dado que as fontes de receita dos clubes viram-se sumamente comprometidas. Como, então, proceder diante do incontornável corte de recursos?

O princípio norteador da FIFA é que as legislações específicas de cada estado membro deverão ser observadas na resolução dos conflitos, especialmente os diplomas relativos a direitos trabalhistas e a falência/insolvência. Acordos coletivos, negociações de classe, entendimentos entre clubes e atletas serão, mais que nunca, alçados a posição de enorme relevo. De fato, congregando um mosaico riquíssimo de 211 nações afiliadas, cada uma delas tendo seu próprio sistema jurídico emanado por seu Estado nacional, é realmente impossível que a FIFA monitore individualmente cada país, e muito menos que interfira nas realidades legislativas locais.

Não obstante, a fim de garantir alguma forma de pagamento de salário aos jogadores e treinadores, evitar litígios, proteger a estabilidade contratual e garantir que os clubes não entrem em falência em função do impacto financeiro do COVID-19, a entidade incentiva veementemente que clubes e funcionários trabalhem juntos para encontrar arranjos apropriados pelos períodos em que as competições encontrarem-se suspensas. Referidos acordos devem abordar aspectos relativos a: remuneração e outros benefícios, programas de ajuda governamental e condições relativas a prorrogações de contratos, dentre outros. Faz-se ainda, na Circular nº 1714, referência a que os ajustes propostos se realizem na esfera do Direito Coletivo, com avenças que englobem uma pluralidade de jogadores, por exemplo. Lado outro, decisões unilaterais somente serão reconhecidas/validadas quando assim permitidas pelas legislações nacionais específicas ou sob a égide de acordos coletivos de trabalho.

Nas circunstâncias em que clubes e funcionários não logrem chegar a denominadores comuns e os sistemas jurídicos nacionais sejam silentes, eventuais decisões unilaterais somente serão reconhecidas pelos órgãos internos da FIFA (Dispute Resolution ChamberDRC ou Players’ Status Committee – PSC) quando tenham sido tomadas patentemente orientadas pela boa fé, razoabilidade e proporcionalidade. Ao avaliar se determinada decisão é razoável, a DRC ou o PSC analisarão:

– se o clube efetivamente tentou chegar a um acordo com seus funcionários;

– a situação econômica do clube;

– a proporcionalidade da eventual alteração contratual;

– a remuneração líquida do funcionário após a eventual alteração contratual;

– se a decisão foi aplicada a toda a equipe ou apenas a funcionários específicos.

Alternativamente, a FIFA propõe que contratos entre clubes e funcionários possam ser suspensos durante o período da pandemia, desde que haja algum seguro ou garantia paralela adequada para prover remuneração ao trabalhador durante o período de força maior. Imagina-se o caso em que algum clube haja eventualmente contratado seguro tendo como objeto a continuidade do pagamento de salários de funcionários na superveniência de eventual circunstância limitadora – o que não nos parece ser prática corrente no futebol.

Obviamente as diretrizes da entidade máxima do futebol precisam buscar o máximo de abrangência e generalidade, posto que visam regular desde clubes e ligas absurdamente poderosos a realidades flagrantemente pouco privilegiadas. De fato, e a título de exemplo,  jogadores do inglês Leeds United[5] e do italiano Juventus[6] concordaram voluntariamente em reduzir os salários, ao passo que o clube suíço FC Sion rescindiu os contratos de nove jogadores após estes se negarem a aceitar uma redução salarial na casa dos 80%[7]. Já na Austrália, os clubes invocaram a chamada Lei do Trabalho Justo de 2009 (Fair Work Act 2009)[8], segundo a qual um empregador pode demitir um funcionário por determinado período de tempo devido a alguma interrupção pela qual o empregador não possa ser razoavelmente responsabilizado.

Seja qual for a realidade do clube ou da liga, cumpre destacar que a atual pandemia não será admitida como causa para que se tentem novar débitos e inadimplências anteriores ao estado de força maior, ou apta a justificar inadimplências contumazes praticadas já há anos por determinadas entidades de prática desportiva. O Brasil é farto em exemplos de tais condutas, que, lamentavelmente, verificam-se da série A à série D.

Parece-nos que será outrossim inadmissível, no entendimento da FIFA, que clubes (ou mesmo atletas) criem situações que façam, para a parte contrária, com que a manutenção do contrato de trabalho torne-se impossível. Isto porque a própria entidade prevê, em seu artigo 14.2 do RSTP, que a conduta abusiva de uma parte forçando a outra a pedir pela rescisão do contrato em vigor será considerada justa causa para o término de tal contrato (e acarretará, e.g, o pagamento de indenizações correspondentes). Destarte, clubes e atletas precisarão modular as negociações no terreno do factível, sob pena de se verem subsumidos à aludida hipótese prevista no RSTP.

Questão sensível decorrente do quadro atual concerne a esta zona de aparente fricção entre as legislações nacionais e as diretrizes interpretativas da entidade máxima do futebol. A Circular nº 1714 traz orientações não vinculativas/compulsórias, o que provavelmente decorre do fato de que a FIFA deu-se conta de que não seria possível impor medidas com caráter peremptoriamente obrigatório. Clubes e jogadores podem considerar independentemente se levarão em consideração os novos princípios. Dúvida não há de que a mencionada circular fornece aos Estado membros e às partes interessadas princípios úteis. No entanto, ao mesmo tempo, demonstram-se as demarcações do efetivo poder regulatório da FIFA, considerando as várias leis nacionais e a autonomia contratual das partes, que poderiam ver-se em xeque se as medidas fossem de caráter terminantemente compulsório.

Será de grande interesse para a comunidade jurídica observar o que ocorrerá se houver disputas em que as diretrizes da FIFA não coincidam com as leis nacionais. De forma geral, a jurisprudência dominante da RDC e do PSC é no sentido de que os regulamentos da FIFA prevalecerão sobre qualquer lei nacional invocada por qualquer das partes[9]. Os órgãos internos de julgamento já enfatizaram inúmeras vezes em suas orientações que um dos principais objetivos dos regulamentos da entidade é criar um conjunto padrão de regras às quais todos os atores da comunidade do futebol estão sujeitos, e no qual todos possam confiar. Mas diante da situação absolutamente inédita que se presencia em nível global, somente a observação prática dos próximos episódios poderá indicar o melhor caminho a ser tomado. Até lá, aguardemos.


¹ Advogado. Sócio Fundador da Movement Football Management. Chief Commercial Officer da E-Flix. Coordenador da Pós Graduação em Negócios do Esporte e Direito Desportivo do CEDIN. Membro filiado e Coordenador regional do IBDD em MG. Membro do Conselho da IBA Académie du Sport. Palestrante convidado da Harvard Extension School e da Université Jean Moulin.

² FIFA. Statement from the FIFA president. [S.I] [2020]. Disponível em: <https://www.fifa.com/who-we-are/news/statement-from-the-fifa-president> Acesso em: 19 Abr 2020.

³ FIFA. FIFA guidelines to address legal consequences of COVID-19. [S.I] [2020]. Disponível em: <https://www.fifa.com/who-we-are/news/fifa-guidelines-to-address-legal-consequences-of-covid-19> Acesso em: 08 Abr 2020.

[4] FIFA. Regulations on the status and transfers of players. [S.I] [2020]. Disponível em: < https://resources.fifa.com/image/upload/regulations-on-the-status-and-transfer-of-players-march-2020.pdf?cloudid=pljykaliyao8b1hv3mnp> Acesso em: 10 Abr 2020.

[5] BBC. Leeds United staff volunteer for wage deferral because of coronavirus outbreak. [S.I] [2020]. Disponível em: < https://www.bbc.com/sport/football/52048216> Acesso em: 12 Abr 2020.

[6] FORBES. Juventus players agree to salary cuts as soccer clubs face “existential threat”. [S.I] [2020]. Disponível em: < https://www.forbes.com/sites/giacomogalardini/2020/03/29/juventus-players-agree-to-salary-cuts-as-soccer-clubs-face-existential-threat/#2e6e19345ab5> Acesso em: 12 Abr 2020.

[7] ESPN. Swiss club sacks players who refused coronavirus pay cut. [S.I] [2020]. Disponível em: <https://www.espn.com/soccer/fc-sion/story/4079092/swiss-club-sacks-players-who-refused-coronavirus-pay-cut> Acesso em: 14 Abr 2020

[8] LEBBON, M.  COVID-19: a guide to Australia’s main legal changes for sporting organisations. Law in Sport. [S.I] [2020]. Disponível em: < https://www.lawinsport.com/topics/item/covid-19-a-guide-to-australia-s-main-legal-changes-for-sporting-organisations> Acesso em: 16 abr. 2020

[9] DE WEGER, F.  COVID-19: a legal perspective on FIFA’s guiding principles for national football associations.

Law in Sport. [S.I] [2020]. Disponível em: <.https://www.lawinsport.com/topics/item/covid-19-a-legal-perspective-on-fifa-s-guiding-principles-for-national-football-associations#references> Acesso em: 16 abr. 2020

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