Flávio de Albuquerque Moura¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD
A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a maioria dos pacientes com COVID-19 (cerca de 80%) podem ser assintomáticos e cerca de 20% dos casos podem requerer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória, e, desses casos, aproximadamente 5% podem necessitar de suporte para o tratamento de insuficiência respiratória (suporte ventilatório).²
Esse vírus invadiu o mundo de forma democrática, atingindo pobres e ricos, simples e nobres, monarcas e plebeus, e não bate a porta, entra pelas janelas, chaminés e especialmente pela porta dos fundos, sem ser convidado.
Esse fato externo inimaginável e inevitável abalou todas a relações jurídicas, com efeitos e consequências diversas, ocasionando rupturas contratuais, obrigando suas revisões para manutenção do equilíbrio, encerrando postos de trabalho, lacrando empresas e acima de tudo, restringindo e mitigando garantias e liberdades constitucionais.
Já se tornou uma pandemia multidisciplinar os debates, palestras, webnários e lives para se discutir como resolver os inúmeros reflexos do COVID-19 nas relações jurídicas mais diversas possíveis, e não poderia ser diferente, ao revés, muito marcante nas relações jurídicas de cunho desportivo.
Sob o olhar específico, dentro do próprio Direito Desportivo, considerando o objeto desse “artigo”, que é ter praticidade, objetividade, sem prejuízo da cientificidade, o tema tratado será da intervenção estatal sobre a autonomia constitucional das entidades desportivas para o exercício de sua organização, formação e desenvolvimento de suas atividades.
Para os estudiosos do Direito Desportivo, e até mesmo os curiosos ou noviços ingressos nesse ramo especialíssimo, a notoriedade do Art. 217, inc. I, da Carta da República, tornou-se de leitura obrigatória, como se vê, expressis verbis:
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; (realces fora dos textos originais)
A partir dessa premissa constitucional, e diante da PANDEMIA DO COVID-19, o que se visualizou aos quatro cantos do país foram normas infralegais editadas pelos Governadores e Prefeitos, disciplinando sob a “legítima autorização jurisprudencial”, decorrente da chancela do STF, nos autos da ADI 6343, conforme dá notícia o site oficial, nos seguintes termos:
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão realizada nesta quarta-feira (6), decidiu que estados e municípios, no âmbito de suas competências e em seu território, podem adotar, respectivamente, medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local durante o estado de emergência decorrente da pandemia do novo coronavírus, sem a necessidade de autorização do Ministério da Saúde para a decretação de isolamento, quarentena e outras providências³ (destaques fora do texto original)
Pois bem, considerando a norma de matriz constitucional que garante a plena autonomia de organização e funcionamento das entidades desportivas, mas, diante de uma PANDEMIA, pode-se chegar a conclusão tranquila que normas constitucionais se submetem a restrições de normas inferiores? E mais, a norma constitucional tem limite de seus signos, considerando sua posição de destaque no sistema hierárquico positivo?
Não é passível de qualquer interpretação; por mais elástica ou suavizada que se proceda, de condicionantes redutoras a ampla liberdade concebida no texto magno normativo sobre a constituição, funcionamento e configurações múltiplas e libertas das entidades dirigentes e associativas das entidades desportivas.
Diz-se isso, porque, dentre as facetas de aplicabilidade das normas constitucionais, facilmente se compreende que o comando constitucional do inc. I do Art. 217 é de eficácia plena e imediata, pois de seu corpo não se abstrai qualquer membro infraconstitucional para lhe conceber total movimento ou perfeição.
Foi garantido aos entes diretivos e associações integrantes do Sistema Nacional Desportivo a possibilidade de se exteriorizarem com plena e total autonomia, desvinculados de qualquer amarra legislativa infraconstitucional; e quaisquer uma delas, que porventura se exteriorize, certamente estarão em flagrante inconstitucionalidade.
Não é demais expor que a matriz constitucional está sistematicamente “harmonizada” com outros dispositivos de seu corpo único, notoriamente o Art. 5º, incs. XIII, XVII e XVIII[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4], além do art. 170, parágrafo único e 174[5].
Mesmo que fixada a ampla liberdade de organização e funcionamento das entidades de prática desportiva no próprio texto constitucional, válido destacar que o ordenamento jurídico infraconstitucional é plenamente consentâneo, detalhista e elucidador.
Não há qualquer espécie de antinomia dentre as normas de igual força normativa, tampouco se visualiza uma incompatibilidade entre o ditame constitucional e normas que nela precisam da razão de seus fundamentos, como bem se verá no texto legislativo a seguir transcrito.
Dispõe o art. 2º, inc. II da Lei Geral do Desporto, apelidada de “Lei Pelé”[6], o seguinte:
Art. 2º. O desporto, como direito individual, tem como base os princípios:
II – da autonomia, definido pela faculdade e liberdade de pessoas físicas e jurídicas organizarem-se para a prática desportiva; (grifos fora do texto original)
Em idêntico sentido, dispõe literalmente o art. 16[7] do mesmo normativo desportivo, in verbis:
Art. 16. As entidades de prática desportiva e as entidades de administração do desporto, bem como as ligas de que trata o art. 20, são pessoas jurídicas de direito privado, com organização e funcionamento autônomo, e terão as competências definidas em seus estatutos ou contratos sociais. (destacou-se mais uma vez) (Redação dada ao caput pela Lei nº 13.155, de 04.08.2015, DOU – Ed. Extra de 05.08.2015)
O que há de se correlacionar entre o texto constitucional citado e a norma infraconstitucional integrativa acerca da natureza jurídica das entidades de prática desportiva, é o fato de que as normas infraconstitucionais, e mais ainda as infralegais, devem ser observadas e interpretadas sobre a nova roupagem constitucional inaugurada, qual seja, sob os auspícios da “liberdade individual”, “desenvolvimento nacional” e a “justiça social”, contextualizando-se assim com a literalidade da CRFB em seus dispositivos: art. 217, incs. I (a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;), IV (a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.) e seu §3º (O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.).
Arrematando o tema da supremacia constitucional na interpretação contextualizada e sobreposição as regras infraconstitucionais, e com foco na garantia da livre iniciativa (autonomia e liberdade das entidades de prática desportiva) preconizada em vários dispositivos do texto constitucional superior, já referidos e transcritos, preciosa é a transcrição parcial da doutrina do Constitucionalista Ives Gandra Da Silva Martins[8].
Os princípios constitucionais, portanto, impõem o absoluto respeito ao direito de se poder exercer qualquer profissão ou atividade, individual ou empresarial, sem limitações e sem necessidade de autorização de órgãos públicos, ressalvando-se aquelas atividades cuja regulamentação está a exigir qualificação técnica(advocacia, medicina, etc.) ou econômica(instituições financeiras), nestes casos, devendo a lei definir as condições para o exercício pessoal – ou através de sociedades – da atividade escolhida. Em outras palavras, não podem, o Estado, o Poder Público, os Governos e a Administração, proibir qualquer atividade ou exercício profissional, na forma que escolhida for pelo cidadão ou residente, desde que tal atividade não esteja vedada pela lei suprema ou, nos casos de qualificação técnica ou econômica, pelas leis explicitadoras da Constituição. Tais disposições da Lei Maior, à nitidez, não estão sujeitas a quaisquer disposições de leis infraconstitucionais, visto que a estas cabe apenas explicitar o que na Lei Maior contido estiver e, jamais, subordinar a Lei Maior aos humores do legislador menor. E, de longe, não podem tais princípios estar subordinados a critérios impositivos de autoridades do Executivo, principalmente para efeitos de afastá-los, estabelecendo elas requisitos próprios e pessoais. (todos os grifos e destaques são por conta do subscritor)
Visualizada a supremacia e imperiosidade das normas constitucionais dentro de um ordenamento jurídico que se baseia no positivismo, poderia até encerrar esse breve ensaio, concluindo que qualquer dispositivo infraconstitucional que visasse reduzir, invadir ou impedir o pleno exercício da autonomia de gestão das entidades de prática desportivas (funcionamento), seria, sumariamente, qualificado como inconstitucional.
Entretanto, o assunto não se encerra aqui, pelo menos agora. Nenhuma liberdade ou garantia constitucional é absoluta, seja porque o direito individual cede lugar ao coletivo, como possibilidade e viabilidade da garantia da paz social, sob os auspícios da máxima de que o seu direito se inicia e se interrompe no limite do direito do seu próximo, seja principalmente porque não há exercício pleno de direito, sob pena de constituir uma sociedade inconvivível.
Sobre esse olhar específico, já se manifestou a Suprema Corte Constitucional, sob a batuta da Ministra Rosa Weber, com base em precedente da lavra do ex-Ministro Cezar Peluso, cujo resumo é esse, no que importa ao presente estudo:
Ao julgamento da ADI 2.937, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 28.5.2012, o Plenário do Supremo Tribunal Federal assentou o entendimento de que a autonomia das entidades desportivas não é absoluta, devendo estas obediência às normas de caráter geral, que impõem limitações válidas à sua autonomia relativa, sem que importe lesão a direitos e garantias individuais. O acórdão foi assim ementado: (negrito fora do texto original)
Pois bem, desenhado o arcabouço jurídico, com as premissas do raciocínio desenvolvido, importante contextualizar a supremacia constitucional diante de suas relativizações, e os limites que seriam admissíveis de interferência estatal, já que justificada a natureza plenamente privada do Sistema Nacional do Desporto.
A própria ordem constitucional(Art. 5o, inc. XIII e 170, parágrafo único) estabelece que a livre iniciativa e o pleno exercício do trabalho, ofício ou profissão devem obediência (norma de eficácia contida) as leis que os regem, e no caso das entidades desportivas, a lei geral do desporto(Lei 9.615/98) seria o balizador da efetividade e plenitude da garantia da autonomia de organização e funcionamento, além de leis esparsas de todas as órbitas (federais, estaduais e municipais), no que tange as licenças de funcionamento, como p.ex., do meio ambiente, localização, vigilância sanitária, corpo de bombeiros, “Habite-se”, dentre outras a se variar de acordo com o porte e especificidades do estabelecimento.
No caso específico da PANDEMIA do COVID-19, a Lei 13.979, de 06-02-2020, foi editada com a finalidade de disciplinar as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública causada pelo referido vírus, e assim dispõe, in verbis:[9]
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
§ 1º As medidas estabelecidas nesta Lei objetivam a proteção da coletividade. (grifos fora do texto transcrito original)
Considerando a extensa área geográfica, diversidade cultural, climática, econômica e social do Brasil-Continente, a tentativa do governo federal foi de estabelecer uma diretriz para atos coordenados de medidas protetivas a coletividade (integridade física), e sem dúvida, minimizar a já certa pós PANDEMIA SOCIAL-ECONÔMICA, mas como já reportado acima, o STF entendeu diversamente, e suspendeu os efeitos do §7º, inc. II do Art. 3º., cuja redação é a seguinte: “§ 7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas: II – pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, nas hipóteses dos incisos I, II, V e VI do caput deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020) (Vide ADI 6343)[10]
Com esse comando da Corte Constitucional, cada Estado e Município ficou praticamente livre para dispor sobre as medidas de proteção a coletividade, que seriam aquelas descritas no Art. 3º da Lei 13.979/2020, dentre elas as mais conhecidas (Isolamento e Quarentena), e mais recentemente, de cidade para cidade, o famoso Lock Down.
Não há dúvidas que se vive momento de exceção, com relativização das garantias intangíveis da constituição, especialmente liberdade individual e coletiva, livre locomoção e exercício do trabalho, ofício, profissão e atividades econômicas em geral.
Encerrando esse breve estudo, volto o olhar mais específico para a autonomia de funcionamento das entidades desportivas, sejam os órgãos de direção (federações e confederações), ligas, ou as entidades de prática desportiva.
Mesmo sem qualquer estado de exceção do direito, já se ficou clarificado que a autonomia constitucional não é uma carta branca de exercício irrestrito da constituição, formação e organização dessas entidades do desporto.
O que se muda perante a PANDEMIA do COVID-19 é a adição na já explicitada limitação do exercício das garantias e direitos constitucionais, que são regradas por normas inferiores consentâneas com a fonte maior (constituição), e que merecerão nosso olhar crítico, minudente, e por muitas vezes, certamente de reprovação.
Ora, o bem da vida é inigualável, mas sob esse pretexto não se pode permitir que o “Estado” ultrapasse seus limites de intervenção e restrição, com desvio dos pilares permissionários para o caso concreto, que são exatamente aqueles motivadores da edição da Lei 13.979, de 06-02-2020.[11],
Qualquer restrição de liberdade ou direito sob o argumento de medidas preventivas para proteção da vida das pessoas em território nacional deverão se embasar em fundamentos científicos, com o menor grau de subjetivismo, e em consonância com as recomendações das autoridades médicas e sanitárias, até então, exclusivamente, voltadas para redução de contágios e medidas profiláticas de higiene, pois, infelizmente, as notícias sobre qualquer vacina ainda repousa na seara dos testes.
A vedação do retorno dos campeonatos de futebol, citando-se como exemplo por ser o esporte mais popular do país, não se admite pelo achismo ou histeria social, mas mediante exigência de rigoroso cumprimento de protocolos que prevejam testagem, medição de temperatura, distanciamento, rigorosa e contínua higienização individual e coletiva, utilização de máscaras e EPI´s (equipamentos de proteção individual) pelos profissionais de saúde e de contato com pessoas infectadas ou áreas de maior risco, dentre outras medidas específicas indicadas pelas autoridades sanitárias.
Por tudo exposto, na certeza que não foi possível abordar com a profundidade que o tema exige, pois complexo, dinâmico, interdisciplinar, e ainda bastante suscetível de mudanças, concluo que existe sim uma relativização das garantias constitucionais das entidades desportivas, mas que a intervenção estatal para implementar as medidas restritivas de liberdades e direitos devem ter limites objetivos, baseados em critérios científicos, sob pena de caracterização de atos normativos inconstitucionais.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹ Flávio de Albuquerque Moura. Advogado. Sócio-Fundador da FMSA – FLAVIO MOURA SOCIEDADE DE ADVOGADOS. Presidente da Comissão de Direito Desportivo da Secção OAB/AL(Triênio 2019/2021). Conselheiro no Triênio 2019/2021 da OAB/AL. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Desportivo da Universidade Cândido Mendes(Ipanema). Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Desportivo da Unyleya. Árbitro no Segmento Desportivo do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Membro Associado do IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Membro Efetivo, titular da Cadeira no 38 da ANDD – Academia Nacional de Direito Desportivo.
² https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#o-que-e-covid (Acesso ao site oficial do Ministério da saúde em 04-06-2020)
³ Site do STF. Notícia de 06-05-2020. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442816
[4] XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;
[5] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
[6] Lei 9.615 de 24-03-1998 e suas alterações – www.planalto.gov.br
[8]PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA. Liberdade de Associação e Exercício Profissional. Inaplicabilidade da Norma Anti-Elisão em face dos Princípios da Estrita Legalidade e da Tipicidade Fechada em Matéria Tributária. Supremacia da Constituição, RT, 2ª. ed. Ampliada, vol. I, 2014, p. 1094/1095.
[11] § 1º As medidas estabelecidas nesta Lei objetivam a proteção da coletividade.”.
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