Por Matheus Laupman¹
Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo IBDD
As recentes manifestações antirracistas desencadeadas pela morte de George Floyd, bem como o caso de falecimento do menino João Pedro, têm demonstrado que a luta contra o racismo e a discriminação se tornou cada vez mais intensa e, no esporte mais popular de todos os tempos, não tem sido diferente.
Clubes, atletas e marcas fabricantes de materiais esportivos tais como Liverpool, Chelsea, São Paulo, Corinthians, Palmeiras, Santos, Jadon Sancho, Achraf Hakimi, Weston Mckennie, Everton Ribeiro, Adidas, Nike e muitos outros, também se posicionaram a favor da causa e demonstraram apoio às manifestações contra o racismo².
Nesta mesma toada, o mundo jurídico, mais especificamente no futebol, já vem se movimentando com a finalidade de erradicar condutas consideradas racistas e discriminatórias, com o intuito de torná-lo um esporte cada vez mais, inclusivo, justo e respeitoso.
Neste sentido, a Fédération Internationale de Football Association (FIFA), entidade máxima do futebol, trabalha no sentido de modernizar seus principais textos normativos, especialmente o Código Disciplinar³.
Referido Códex tem por escopo tipificar condutas infratoras e suas sanções, que podem ser aplicadas aos membros integrantes do denominado “futebol organizado”, estabelecendo ainda quais são os órgãos judicantes competentes para a apreciação e julgamento dos casos endereçados aos seus cuidados.
No que diz respeito à sua aplicabilidade, o documento normativo em questão possui uma aplicação material, e outra individual. A aplicação material se refere às normativas deste código em todas as partidas e competições organizadas pela FIFA, bem como a totalidade das partidas e competições organizadas pelas Entidades de Administração do Desporto vinculadas à FIFA, também conhecidas como entidades membro.
Por sua vez, a aplicação individual será aperfeiçoada diante dos players, também conhecidos como stakeholders do mundo do futebol, tais como confederações, clubes, jogadores, intermediários, dentre outros.
Na linha da modernização sustentada, em 11 de julho de 2019, a FIFA disponibilizou a última edição publicada do Código Disciplinar até o momento, que contou com relevantes alterações:
Destaca-se a tolerância zero com atos racistas e discriminatórios. Com o escopo de erradicar tais condutas do mundo do futebol, a FIFA realizou um acordo com a Football Against Racism in Europe (“FARE”) para tornar seus dispositivos mais rigorosos.
A FARE é uma organização internacional que agrupa todos os interessados em combater a desigualdade racial no futebol. Atualmente, conta com mais de 130 membros e está ativa em 40 países.
No âmbito de sua competência de atuação, todas as definições e sanções impostas com relação às condutas racistas e discriminatórias serão submetidas às diretrizes internacionais mais rigorosas, embasando-se na abordagem da FARE sobre tema, conforme preconiza o artigo 13, do anexo I do Código Disciplinar 4 .
Ademais, a FIFA adotou como norma geral a possibilidade de uma partida ser automaticamente declarada perdida se o árbitro decidir suspendê-la permanentemente após a aplicação das três etapas dispostas no artigo 13, parágrafo 2º.
O mencionado artigo apresenta, ainda, as possíveis sanções para os casos de manifestações racistas e/ou discriminatórias, tais como: a) multa de aproximadamente CHF 20,000 (Vinte mil libras); b) partidas sem torcida; c) proibição em jogar em certo estádio; d) perda da partida ; e) eliminação de competições; e) rebaixamento a divisões inferiores.
Além disso, determinou-se pela Comissão Disciplinar a possível participação da vítima de atos discriminatórios ou racistas no procedimento disciplinar. Esta participação será realizada por meio de uma declaração de impacto (impact statement), que contará com seu depoimento e versão dos fatos, bem como, as consequências e sensações sofridas em seu particular.
Evidente que estas novas diretrizes contra o racismo e a discriminação são muito interessantes, e possuem a rigidez correta em suas sanções com medidas drásticas em caráter disciplinar e educativo, chegando ao extremo de portões fechados e até rebaixamento.
Ocorre que nesse período de 1 (hum) ano desde a publicação do novo Código Disciplinar inúmeros casos de racismo ocorreram no futebol, e a aplicação e eficácia que se esperava, não foi satisfatória.
Três casos emblemáticos que assistimos no futebol foram:
(i) do atacante Taison, do Shakhtar Donestk, que sofreu ofensas racistas durante a partida contra o Dínamo Kiev e, ainda, terminou expulso e punido com um jogo de suspensão por reagir;
(ii) do zagueiro Marcelo, do Lyon, sofreu o ataque de um torcedor que invadiu o campo com um cartaz, pela Champions League, mostrando a imagem de um burro pedindo que o brasileiro deixasse o clube. Na ocasião, o capitão, Memphis Depay, arrancou o cartaz das mãos do invasor, e;
(iii) o atacante do Brescia, Mario Balotelli. Em novembro, o presidente do clube italiano, se valeu de uma frase racista ao se referir ao jogador, após Balotelli ter sofrido injúrias da torcida do Hellas Verona e reagir ameaçando sair de campo. Na ocasião, o dirigente teria dito a seguinte frase: “é negro, está trabalhando para clarear”.
Os casos exemplificados deveriam, indubitavelmente, ser submetidos aos órgãos judicantes da FIFA mediante processo disciplinar, para apreciação e aplicação de severas punições aos infratores. Entretanto, não foi o que aconteceu, e até onde se sabe, não houve sequer a abertura de processo para investigação dos atos.
A título de comparação, em maio de 2020, a FIFA puniu o Esporte Clube Cruzeiro, com a perda de 6 pontos, devido a inadimplência do Clube em relação a transferência temporária do volante Denílson ao clube árabe Al-Wahda. Esta sanção, sem dúvida, irá mudar o mundo jurídico do futebol e sua importância não merece ser ignorada.
Contudo, indago: se vamos penalizar o inadimplente contratual, por que não iremos punir os responsáveis pelos atos racistas e discriminatórios?
A FIFA tem se direcionado em coibir e atuar intensamente na fiscalização de aspectos contratuais envolvendo os stakeholders do mundo de futebol, tanto é assim, que a maioria dos litígios presentes nos órgãos disciplinares da entidade tratam de tais questões. Entretanto, atualmente não encontramos processos disciplinares instaurados pela entidade com o intuito de identificar, julgar e punir as condutas racistas e discriminatórias.
Retornando ao caso envolvendo o Cruzeiro Esporte Clube, podemos constatar que a mídia em geral, acompanha o caso até hoje, demonstrando não só a origem da punição, mas também as suas repercussões e consequências financeiras, jurídicas e desportivas. Em contrapartida, o caso envolvendo os atos racistas contra o atacante brasileiro Tayson, apenas foram noticiados, sem qualquer indagação, e discussão mais profunda sobre o ocorrido e o tema do racismo e da discriminação. Será que estamos dando a relevância correta para este tema? Deixo este questionamento para reflexão.
Traçando um paralelo, importante mencionar que a luta contra o racismo e a discriminação também está presente no universo jus-desportivo brasileiro. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) possui em sua redação, a seguinte diretriz:
“Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).” 5
Além disso, uma nova Recomendação do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD) formalizada em 2019 6 a qual orienta que, casos de manifestações preconceituosas e de injúria a respeito de orientação sexual, feitas por torcedores ou partícipes das competições, ensejarão a paralisação da partida, bem como deverão ser relatados na súmula.
Tais Recomendações, felizmente, foram aplicadas em alguns jogos do Campeonato Brasileiro de 2019, sendo o maior exemplo a partida envolvendo as equipes do Clube de Regatas Vasco da Gama e do São Paulo Futebol Clube. No caso trazido à baila, o árbitro Anderson Daronco, paralisou a partida após gritos homofóbicos vindos das arquibancadas do Estádio São Januário, no Rio de Janeiro.
Além deste, em março de 2020, o São Paulo Futebol Clube foi multado pelo TJD – SP no valor de R$ 30.000 (Trinta mil Reais) 7 devido a gritos homofóbicos da torcida durante o clássico contra o Sport Club Corinthians. No caso em questão, durante a partida a torcida do São Paulo proferiu gritos homofóbicos durante tiros de meta cobrados pelo goleiro Cássio. O árbitro da partida parou o confronto e chamou os capitães das duas equipes para alertar sobre o fato. Importante ressaltar, que a referida conduta é tão repudiável quanto o Racismo, e tal sancionamento poderá ser utilizado como “modelo de sanção”.
Ante todo o exposto, podemos verificar que tanto o Código Disciplinar da FIFA, bem como os demais documentos jurídicos inerentes ao tema aqui tratado, possuem uma excelente redação para combater condutas racistas e discriminatórias, prever sanções rígidas que, se efetivamente aplicadas na prática, podem resultar em uma redução significativa de atos racistas e discriminatórios.
Todavia, conforme temos visto, esta não é a realidade atual, considerando que diversos casos de racismo ocorreram durante a vigência do novo Código, e, infelizmente, não tiveram as suas diretrizes, processos e sanções aplicadas.
Sendo assim, nós, como operadores do direito, e principalmente como seres humanos, devemos cobrar destas entidades uma maior rigidez nestes casos, bem como lutar dia a dia contra as injustiças, a discriminação e o Racismo!
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹ MATHEUS LAUPMAN
Estudante de Direito da PUC-SP, Coordenador do Grupo de Estudo de Direito Desportivo da PUC-SP, Membro Colaborador da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP, Membro Filiado ao IBDD e Estagiário da Federação Paulista de Futebol- FPF.
² https://www.google.com.br/amp/s/www.dn.pt/desportos/amp/jogadores-do-liverpool-ajoelharam-se-contra-o-racismo–12263877.html; https://m.blogs.ne10.uol.com.br/torcedor/2020/06/02/clubes-da-inglaterra-unem-forcas-no-combate-ao-racismo-vidas-negras-importam/?utm_source=undefined&utm_medium=referral&utm_campaign=mobile-redirect; https://www.instagram.com/p/CA5d7Xlg310/?igshid=8j4r6vp0kcc; https://www.instagram.com/tv/CA5EW1nJF5p/?igshid=1tosqg7xcmo8r; https://www.instagram.com/p/CA6CWI1JUbL/?igshid=1ay8tusdkbkrt; https://www.instagram.com/p/CA6dnUhA_XT/?igshid=1bywmqpu0n3i7; https://www.instagram.com/p/CA3V8Mrnr-1/?igshid=yuy9ryegfu8d; https://www.instagram.com/p/CA3QCQBDNUS/?igshid=2yb7kwn1qau7; https://www.instagram.com/p/CA0c4cgoofT/?igshid=1uibgib81r1ey; https://www.instagram.com/p/CA6FJpPjTHB/?igshid=1a1fv5jx45ufw; https://www.instagram.com/p/CAygJoHABcX/?igshid=1vkxyyvg0jqq4; https://www.instagram.com/p/CAzhEIDg36o/?igshid=1fgs220i7ewbr;
4 https://resources.fifa.com/image/upload/fifa-disciplinary-code-2019-edition.pdf?cloudid=i8zsik8xws0pyl8uay9i
13 Discrimination 1. Any person who offends the dignity or integrity of a country, a person or group of people through contemptuous, discriminatory or derogatory words or actions (by any means whatsoever) on account of race, skin colour, ethnic, national or social origin, gender, disability, sexual orientation, language, religion, political opinion, wealth, birth or any other status or any other reason, shall be sanctioned with a suspension lasting at least ten matches or a specific period, or any other appropriate disciplinary measure.
5 https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201507/20150709151256_0.pdf
6 https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201507/20150709151256_0.pdf; http://www.ccla.com.br/post/aplica%C3%A7%C3%A3o-do-novo-c%C3%B3digo-disciplinar-da-fifa-e-do-c%C3%B3digo-brasileiro-de-justi%C3%A7a-desportiva
7 http://www.fpf.org.br/TJD/Atas-Detalhe.aspx?IdPublicacaoTJD=1719