Fabrício Trindade de Sousa¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD.
Embora não tenha gerado a mesma repercussão midiática das alterações inerentes aos direitos de transmissão das competições profissionais de futebol, a Medida Provisória n.º 984² também acarretou substancial impacto no direito de arena, que por certo passou desapercebido pelo Poder Executivo quando da sua edição. Omissão que pode e deve ser reparada na tramitação do Projeto de Lei de Conversão no Congresso Nacional, salvo, obviamente, na hipótese de caducidade, possibilidade que não pode ser descartada, mormente sob o apelo da necessidade de um debate mais denso sobre os pontos controvertidos.
Cito, inicialmente, a manutenção de duas obscuridades geradas na redação do §1º do artigo 42 da Lei n.º 9.615/98 (Lei Pelé)³, abrangendo os limites da negociação coletiva e o universo de atletas contemplados no repasse do percentual do Direito de Arena, quando assim dispõe: § 1º Serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo de que trata o caput, cinco por cento da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais, como pagamento de natureza civil, exceto se houver disposição em contrário constante de convenção coletiva de trabalho.(grifamos).
A jurisprudência trabalhista, em 2016, consolidou entendimento no sentido de que a previsão em negociação coletiva, objeto do dispositivo em destaque, só teria alcance para aumentar o percentual fixado em lei, sendo vedado, portanto, eventual redução 4 . Não obstante tal entendimento, o tema afeto à eficácia da norma coletiva, mesmo na hipótese de redução ou supressão de direito previsto em lei, teve repercussão geral declarada pelo STF (Tema n.º 1.046 5 ), bem como as alterações trazidas pela denominada Reforma Trabalhista (Lei n.º 13.467/17 6 ) redundaram em incentivo a negociação ampla, resultando em possível alteração do entendimento jurisprudencial, de modo que não seria exagero constar da Medida Provisória a possibilidade ou vedação de negociação coletiva em percentual inferior a 5%.
A segunda obscuridade envolve o universo de atletas elegíveis ao recebimento do Direito de Arena, subsistindo controvérsia sobre a exigibilidade do pagamento da parcela pelo atleta que não entrou em campo, permanecendo no banco de reservas durante toda a partida. A jurisprudência trabalhista, nos anos de 2017/2018 firmou entendimento no sentido da concessão da parcela aos atletas titulares e reservas 7 (não obstante não tenha sido editada Súmula ou Orientação Jurisprudencial), de modo que salvo intenção em contrário por parte da Presidência da República, caberia expressa previsão em tal sentido, sepultando controvérsias no particular.
A MP trouxe uma série de possibilidades, entretanto, não as disciplinou. A alteração da titularidade dos direitos de transmissão redundou em diversas modalidades de negociação de tal ativo pelos clubes mandantes, e, por conseguinte, em variadas formas de captação de receitas, cuja vinculação com a transmissão em si pode ser questionada e afetar a base de cálculo do Direito de Arena.
Há um exemplo recente, envolvendo jogo do Campeonato Carioca de Futebol entre Flamengo x Boa Vista. Na ocasião, o jogo foi transmitido pela FLA TV, sem cobrança de valores dos expectadores, embora tenha captado valores a título de doação 8 . A ausência de cobrança dos expectadores não inibe formalização de contratos com patrocinadores pontuais ou eventuais termos aditivos aos patrocinadores permanentes, com acréscimo de valores para os fins de veiculação de campanhas publicitárias ao longo do jogo.
Não houve captação de receita pela transmissão em si, mas o clube recebeu valores a título de doações e patrocínios. As doações devem computar para base de cálculo? Os custos inerentes à transmissão devem ser deduzidos, tendo como critério apenas a receita líquida obtida? Caso os contratos com os patrocinadores prevejam a divulgação no uniforme e campanhas publicitárias durantes os jogos, sem, contudo, discriminar os valores respectivos, como definir os valores que seriam objeto do cômputo do Direito de Arena?
Há, outrossim, a hipótese de venda do mando de campo pelo clube visitante. O direito de arena incidiria, exclusivamente, sobre os valores recebidos pelo clube comprador ou também abrangeria o valor da venda do mando de campo? Caso positivo, considerando que houve receita para o clube vendedor e despesa para o clube comprador, a base de cálculo do direito de arena seria distinta para atletas dos clubes mandante e visitante?
A operacionalização do pagamento também resulta em omissão relevante, mormente considerando que o Decreto que regulamentou a Lei Pelé não ser parâmetro para eventual aplicação à nova realidade, uma vez que apenas fixou o prazo de 60 (sessenta) dias para que os sindicatos façam o pagamento aos atletas[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][9]. Isso porque, além do prazo de pagamento, outros aspetos passam a ter relevância, tal como os inerentes ao imposto de renda, uma vez que, ao menos em tese, os valores passarão a ser variáveis, conforme o clube mandante, atraindo para esse o ônus de retenção/recolhimento fiscal.
Outra preocupação que ronda o tema é a utilização da obrigação de pagamento do direito de arena como meio para burlar a competição, podendo o clube mandante reter ou atrasar o pagamento, ameaçar ocultar ou dificultar a apuração dos valores devidos ou ainda prometer valores maiores que o devido, condicionado à perda da partida pelo clube visitante. Seria a denominada “mala preta” formalizada como pagamento de direito de arena. Em que pese discordar de tal entendimento, fica a provocação para, no mínimo, se exigir que os valores informados pelos clubes seja objeto de auditoria independente. Ficam as perguntas: quem assumiria tal custo? O valor a receber compensaria a contratação da auditoria? Os clubes seriam responsáveis e o repasse de tais custos seriam objeto de dedução para os fins de apuração da base de cálculo?
Ainda na seara especulativa, poder-se-ia cogitar de eventual recusa dos atletas do clube visitante em participar de jogo contra adversário inadimplente no pagamento do direito de arena de jogo anterior. Supondo que os clubes se enfrentem no campeonato estadual e no campeonato brasileiro, com a também possibilidade de se enfrentarem na Copa do Brasil, tal hipótese poderia ser concretizada ao longo do mesmo ano.
A exclusão dos sindicatos como “gestores” dos valores a título de direito de arena, em primeira análise, poderia resultar em quase unanimidade do acerto da Medida Provisória, uma vez que não se justificaria mera intermediação para captação e repasse de valores aos atletas, inexistindo justificativa para o não pagamento direto. Por outro lado, os sindicatos são constitucionalmente legitimados para garantir não apenas o pagamento do direito em si, mas também fiscalizar a efetiva base de cálculo e eventuais outras controvérsias inerentes ao cumprimento da obrigação pelos clubes, blindando os atletas dos dissabores de uma iniciativa pessoal. É certo que os sindicatos não precisam funcionar como “gestores” ou “intermediários” do pagamento do direito de arena para a defesa dos atletas, entretanto, tal previsão legal os confere posição diferenciada, com acesso direto às informações relevantes, sem necessidade de eventual procedimento judicial, aspecto que também deve ser sopesado. A Medida Provisória já recebeu 91 emendas, sendo a maioria, no tema de interesse da presente análise, voltada para a manutenção dos sindicatos como responsáveis pelo recebimento dos valores e repasse aos atletas, sob a justificativa de que apenas a entidade sindical tem condições de realizar efetiva fiscalização dos clubes.
Forçoso concluir que o tema é complexo e o debate necessário. Em análise superficial e preliminar, considerando as inúmeras variáveis envolvidas, independente da manutenção dos sindicatos como “gestores” dos valores a título de direito de arena, a negociação coletiva será o instrumento capaz de gerenciar todos os interesses em conflito, inclusive pelo seu aspecto temporal (prazo máximo de dois anos), permitindo ajustes conforme as novas regras inerentes aos direitos de transmissão sejam implementadas.
Os árbitros também foram lembrados por um de seus pares, hoje Deputado Evandro Rogério Roman, que sugere a inserção do §3º do artigo 42, nos seguintes termos: § 3º Parcela equivalente a 1% (um por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais será repassada aos árbitros participantes do espetáculo desportivo, como pagamento de natureza civil.
Sem adentrar na pertinência da remuneração dos árbitros pela veiculação da respectiva imagem nas partidas de futebol, penso que não poderia se cogitar de percentual a título de direito de arena, conforme a emenda proposta, uma vez que o titular do direito é o clube mandante, sendo que o atleta, implicitamente, ao assinar contrato especial de trabalho desportivo, autoriza a cessão de uso da sua imagem enquanto integrante da equipe contratante, conforme leciona Domingos Zainaghi, ao destacar que, em que pese gerar estranheza que o atleta não detenha a titularidade de um direito ligado à sua imagem a opção da lei é explicada pelo fato de que seria quase impossível conseguir-se a anuência de todos os atletas, e, ainda, pelo fato de ser o clube quem oferece o espetáculo, as disputas são entre os clubes e não entre os atletas; além do que, o que faz que desperte interesse do público são as cores de uma determinada equipe, independentemente dos atletas que a compõem (ZAINAGHI, 2015: 118/119). Mesmo entendimento de Jorge Miguel Acosta Soares quando afirma que para o jogador, a contratação representa instrumento de cessão de sua imagem profissional para o clube empregador, para todas as atividades ligadas ao exercício da profissão. Esse consentimento é obrigatório, uma vez que a natureza do cumprimento do contrato de trabalho de atleta exige a exibição da imagem do profissional. Assim, sua imagem como profissional, envergando a camisa de seu clube, não lhe pertence. Por essa razão, a imagem do conjunto dos atletas em campo também não lhes pertence, mas sim ao empregador. Essa imagem da atividade coletiva é, na verdade, o Direito de Arena (SOARES, 2008: 107).
Não seria diferente em Portugal, conforme doutrina de João Leal Amado ao distinguir direitos de imagem coletivos dos direitos individuais de imagem, corroborando que os de natureza coletiva são implicitamente cedidos à entidade empregadora desportiva através do correspondente contrato de trabalho (AMADO, 2019: 91).
Daí porque, respeitosamente e, sem prejuízo da relevante discussão abrangendo a pretensão dos árbitros, o debate deve ser suscitado sob outra ótica, não decorrente do direito de arena.
Caminhando para o encerramento da reflexão, também relevante destacar a celeuma inerente à competência jurisdicional para dirimir conflitos oriundos da inadimplência do direito de arena entre o clube mandante e atletas do clube visitante. Conforme doutrina acima citada, considerando que só se poderia cogitar de titularidade do percentual do direito de arena por força da existência de contrato especial de trabalho desportivo, ainda que não formalizado com o clube mandante, a Justiça do Trabalho seria competente para dirimir a controvérsia (artigo 114, inciso I[10] da CF).
Por outro lado, a natureza civil da parcela, associada ao fato da inexistência de relação de trabalho entre o clube mandante e o atleta do clube visitante, legitimaria a competência da Justiça Comum para apreciação da controvérsia. Para evitar possíveis discussões de tal natureza, o projeto de lei de conversão da medida provisória pode e deve abordar o tema, na esteira do que preceitua o inciso IX[11] do artigo 114 da CF.
O excesso de pontos controvertidos pode gerar a conclusão de inadequação da discussão do tema em sede de Medida Provisória, mormente em tempos de pandemia e impossibilidade de um debate presencial no Congresso Nacional, com a participação de representantes dos atletas, clubes, árbitros e entidades de administração do esporte.
Não obstante a sempre salutar cautela, a atratividade do tema (91 emendas à Medida Provisória) confirma a urgência e relevância da discussão posta, sendo que há ferramentas tecnológicas que permitem o debate e oferta de subsídios aos Deputados e Senadores. Portanto, com a bola o Congresso Nacional.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, sendo de total responsabilidade do Autor deste.
Fabrício Trindade de Sousa é advogado e administrador de empresas, sócio do escritório Amorim Trindade, Kanitz & Russomano Advogados, Mestrando em Direito, Pós-Graduado em Processo Civil, Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, membro fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo – ANDD, membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho.
– AMADO, José Leal. Contrato de Trabalho Desportivo. Almedina, Coimbra – 2019.
– SOARES, Jorge Miguel Acosta. Direito de Imagem e Direito de Arena no Contrato de Trabalho do Atleta Profissional. LTr, São Paulo – 2008.
– ZAINAGHI, Domingo Sávio. Os Atletas Profissionais de Futebol no Direito do Trabalho. LTr, São Paulo – 2015.
¹ Fabrício Trindade de Sousa é advogado e administrador de empresas, sócio do escritório Amorim Trindade, Kanitz & Russomano Advogados, Mestrando em Direito, Pós-Graduado em Processo Civil, Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, membro fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo – ANDD, membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho.
² http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv984.htm
³ http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm
4 E-ED-RR – 173200-94.2009.5.03.0108 , Relator Ministro: Márcio Eurico Vitral Amaro, Data de Julgamento: 10/12/2015, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 22/03/2016)
5http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5415427&numeroProcesso=1121633&classeProcesso=ARE&numeroTema=1046
6 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm
7 Vide, ilustrativamente, RR – 2613-88.2010.5.02.0057 Data de Julgamento: 03/10/2018, Relator Ministro: Hugo Carlos Scheuermann, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 05/10/2018.
8 https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/7111846/flamengo-estima-custo-r-250-mil-jogo-contra-boavista-r-80-mil-apenas-transmissao
[9] O artigo 46 do Decreto 7.984/13 que regulamentou a Lei Pelé fixa o prazo de 60 dias para que os Sindicatos repassem aos atletas o montante devido a título de direito de arena.
[10] Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
[11] Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
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