JUSTIÇA DESPORTIVA E TECNOLOGIA: UM NOVO FUTURO?

Por Milton Jordão¹

Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.

O Brasil mudou muito desde que a pandemia de covid-19 aportou. Inquestionavelmente, é um momento de adaptação a novas realidades, ao que se tem costumeiramente sido denominado de “novo normal”.

O descortinar deste novo tempo é um ressignificar de valores e a construção de novos caminhos. A jornada ainda é marcada por uma densa neblina que nos impede de ver com clareza o destino final da parada. Todavia, sabe-se que é impossível se quedar inerte esperando que ela se dissipe. É preciso prosseguir dentro de uma novel realidade se reinventado e adaptando constantemente.

No meio do mês de março de 2020, as competições coordenadas pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), os certames interestaduais (como a Copa Nordeste) e os campeonatos organizados pelas Federações Estaduais de Futebol foram paralisadas devido às determinações de Governos Estaduais e Municipais, que visaram combater o aumento do contágio da covid-19. Inclusive, neste mesmo período o Congresso Nacional reconheceu a existência do estado de calamidade (conforme Decreto Legislativo n° 06/20²).

Um sucedâneo lógico destas decisões emanadas das presidências dos referidos órgãos de governo do futebol (nacional e estadual) seria, de imediato, a paralisação dos diversos tribunais desportivos do futebol. Inicialmente, as sessões foram pontualmente adiadas até que se erigisse a certeza de que a pandemia demandaria maiores cautelas em proteção de membros da justiça desportiva, advogados e seus clientes.

Nessa toada, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD), quase que imediatamente ao avanço da covido-19 no Brasil, em 16 de março de 2020, editou a Resolução n° 02/2020, que determinou a suspensão das sessões e prazos³. Inicialmente, assinalou-se prazo até o dia 20 de março, mas em comunicado feito nesta data, determinou-se que a suspensão fosse por tempo indeterminado[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4].

Com efeito, após a medida adotada pela Corte Maior do Futebol, os Tribunais de Justiça Regionais, também, passaram a determinar a suspensão das suas atividades – a exemplo do TJD/RJ, que, no mesmo dia 16 março, emitiu a Comunicação 044/2020[5]; o TJD/BA, que, no dia 17 de março, publicou o Ato Oficial n° 02/2020[6]; ou o TJD/PR, que em 20 de março, fez publicar o Ato 03/2020[7].

Muito embora, frise-se, cada órgão judicante referido tenha independência entre si, a cada ano, se constrói um sistema de justiça desportiva no futebol mais harmônico, desempenhando o STJD papel de seu organizador e gestor, sem incidir em qualquer mácula ou ofensa à legalidade.

Decorridos os primeiros instantes da pandemia, o Tribunal Maior entendeu que seria preciso retomar as atividades judicantes, para tanto, em 20 de maio, publicou-se a Resolução n° 05/2020, que revogava édito anterior que suspendeu os prazos e traçou linhas gerais para a retomadas das atividades, definindo o regime de plantão extraordinário e a instituição das sessões de julgamentos por meio eletrônico.

Destacam-se dois artigos da Resolução ora em estudo como relevantes para análise sobre as chamadas sessões virtuais, sendo de elevada valia a reprodução literal:

“Art. 2º Fica mantida a suspensão de sessões de julgamento presenciais, sendo autorizadas, tão somente, suas realizações por meio eletrônico/virtual.

(…)

Art.4º cada tribunal deve regulamentar sua forma de funcionamento e a realização de sessões de julgamentos virtuais por sistema telepresencial, observada as condições excepcionais em que cada estado se encontra em razão do atual cenário de pandemia de covid-19, devendo garantir aos advogados o pleno exercício de sua atividade, com a possibilidade de realizar sustentação oral, a juntada de documentos, e vista dos autos.”

Antes de se perquirir sobre a efetividade desta novel modalidade de ato processual no âmbito da Justiça Desportiva, mister se ressalvar que o E. Presidente do STJD à época, Dr. Paulo Salomão Filho, na citada normativa, utilizou como um dos fundamentos a Consulta n° 0002337-88.2020.2.00.0000[8], que tramitou no Conselho Nacional de Justiça.

O mencionado órgão do Poder Judiciário, instado a se manifestar pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre a viabilidade de se implementar modalidade totalmente virtual de julgamento durante a pandemia, entendeu como possível, por não haver afronta à Resolução n° 313/2020[9], do próprio CNJ.

Convém, ainda, trazer a lume o que serviu de lastro para se alcançar tal posicionamento. Desde que o Judiciário restou atingindo pelos efeitos da pandemia, o CNJ vem buscando uniformizar o funcionamento dos serviços prestados. O reconhecimento do momento singular vivido foi imprescindível para poder se adequar às exigências de isolamento social e às diretrizes sanitárias advindas dos órgãos competentes, sem que, com isso, implicasse na interrupção perene da prestação jurisdicional até o desfecho do cenário vivido.

Desta forma, suspensos os atendimentos e atos presenciais, se passou a investir e avançar no mundo virtual, para que os serviços judiciários não restassem paralisados. O CNJ, respeitando a autonomia dos diversos Tribunais, autorizou-os que por estas vias caminhassem.

Art. 6º Os tribunais poderão disciplinar o trabalho remoto de magistrados, servidores e colaboradores para realização de expedientes internos, como elaboração de decisões e sentenças, minutas, sessões virtuais e atividades administrativas.” [gizei]

Naturalmente, houve incerteza, que foi dissipada na Consulta, quanto à natureza da matéria a ser objeto das sessões totalmente virtuais, se poderia se dar em relação às questões de maior emergência ou se estenderia também aos feitos ordinários que tramitam nos tribunais.

A resposta, rediga-se, foi no sentido de se permitir que as Cortes Judiciais pudessem avançar no mundo virtual, desde que preservadas as garantias às partes e aos seus advogados dos direitos que lhes são inerentes. Inclusive, permitindo a estas a oposição (até mesmo imotivada) ao julgamento virtual.

Isto posto, voltando olhares para normativa criada no âmbito da Justiça Desportiva do Futebol, tem-se que as sessões virtuais passarão a ser a regra enquanto durar o regime de plantão extraordinário. A princípio, dir-se-ia esta seria uma inferência que se pode extrair do texto.

Ao revés da decisão do emanada do CNJ e do caso concreto que serviu de lastro, o STJD do Futebol não permitiu à parte o direito de se manifestar a respeito ou não do interesse em que o seu processo seja julgado virtual e não mais presencialmente.

É bem verdade que não há previsão concreta – ou sequer aproximada- de quando a vida cotidiana “voltará ao normal”. Em outros termos, quando será possível que os Tribunais Desportivos possam permitir o atendimento e atos processuais de forma presencial.

Seria, então, adequado aventar uma ofensa a direito das partes? Um cerceamento à defesa? Uma burla à legalidade existente no CBJD quando disciplina a sessão de instrução e julgamento?

A questão pode, para os mais afoitos, indicar resposta positiva. Todavia, a militância no âmbito da Justiça Desportiva e a sua compreensão à luz da Constituição Federal e dos princípios que a regem, nos conduzem a responder tais questões como negativas.

Malgrado o Código Repressivo Desportivo não preveja que a produção de elementos probatórios, que podem integrar a sessão de instrução e julgamento, seja possível de se realizar por via virtual, na práxis, isso é uma realidade. Geralmente, é habitual, como uma forma de maximizar a ampla defesa e o contraditório, que testemunhas sejam ouvidas mesmo fora dos limites territoriais do Tribunal, valendo-se sempre da tecnologia.

Portanto, tal qual no âmbito do Poder Judiciário, na Justiça Desportiva, o emprego de avanços do mundo cibernético não era desconhecido, somente, a prática de determinados atos se restringia à realização presencial.

Ademais disso, ainda assim é lídimo o questionamento da motivação para esta regra de exceção à sessão virtual não constar na resolução. A resposta, ao meu sentir, encontra lastro na própria inspiração constitucional destes órgãos judicantes: a celeridade processual.

O processo desportivo difere-se dos demais inerentes à Justiça Pública por primar por celeridade e efetividade. Ao se considerar a impossibilidade de se poder realizar atos presenciais, afasta-se a oportunidade de se optar ou não pela sessão virtual. Apesar disso, não se podará, com isso, a ampla defesa ou o exercício do contraditório, vide a própria inquirição de testemunhas por meio virtual que já é uma realidade.

A regra para todo o sistema de justiça desportiva do futebol será a realização das sessões virtual, conforme se colhe do art. 4° da Resolução, acima colacionado. Não se quis impor a cada um dos Tribunais de Justiça Desportiva (TJD) detalhamentos comuns, posto que se compreendeu e respeitou as peculiaridades de cada órgão judicante. Mas, se deixou bem evidente que as sessões presenciais somente poderão ser designadas com anuência do STJD. A regra é clara: sessões somente virtuais até ulterior deliberação.

A partir dai se ingressa num campo interessante: as sessões virtuais serão perenes ou meramente transitórias?

Depreende-se do espírito da normativa ora comentada que a sua natureza é transitória. Tem-se nesta modalidade uma forma de se garantir às partes a devida prestação judicantes de forma ininterrupta, minorando-lhes prejuízos e garantindo segurança jurídica ao mundo do futebol. Contudo, não se colhe um maior interesse na sua efetivação.

Força convir, porém, que se está diante de cenário inusitado e desconhecido que poderá demonstrar que a realização de sessões virtuais poderá significar à Justiça Desportiva do Futebol um maior alcance e para as partes mais vulneráveis se proporcionar uma chance maior de acesso à justiça.

Seriam, portanto, essas sessões garantidoras de mais democracia e efetivação dos princípios processuais que existem no próprio CBJD?

A questão, neste momento, me parece deveras controvertida e merece um exame mais detido.

Inegavelmente, nenhum órgão judicante poderá abrir mão da pessoalidade de alguns atos. Os julgamentos presenciais são importantíssimos e não deixarão de existir. Há consideráveis perdas para a maximização da ampla defesa durante uma sustentação oral por via virtual.

A meta dos Tribunais Desportivos é de se fazer justiça. A matéria avaliada em inúmeros casos que enfrentam reclama dose acentuada de humanidade, o que exige a presença das partes para que se possa alcançar a meta desejada.

D’outro lado, o acesso mais amplo garante que muitos que não podem se defender possam se sentir mais incluídos.

Assim sendo, nota-se que a aferição de tais assertivas deverá ocorrer ao longo do andamento das sessões virtuais, bem como o seu aperfeiçoamento para bem servir aos interesses da Justiça Desportiva. No entanto, algumas sugestões já podem ser pensadas para o futuro próximo.

Sem dúvidas, a sessão virtual é (e será) de grande utilidade para garantir que o Tribunal possa se reunir mais e até mesmo contar com membros de localidades mais distantes, sem que, com isso, os custos de sua manutenção aumentem sobremaneira. Porém, não se admitirá que uma corte funcione inteiramente de forma virtual, pois as chances de se distanciar da realidade é um fator a se considerar.

Não creio que seja possível, após vivenciar uma imersão no mundo virtual, como hoje ocorre, que se descarte por completo a sua inserção na vida da Justiça Desportiva.

Desta forma, quiçá, determinadas competições poderiam ter os seus julgamentos realizados por via virtual, especialmente aquelas que são de natureza não profissional.

Certamente, seria uma forma de permitir aos clubes menores uma chance melhor de exercer a defesa, ao mesmo tempo, garantir ao Tribunal maior grau de celeridade. Sem prejuízo de que as partes poderiam eleger a via presencial como sua para fins do julgamento.

No que tange às competições profissionais, em face da maior repercussão, não se poderia realizar o julgamento senão de forma presencial. A modalidade virtual é uma exceção nessa hipótese.

A verdade é que não se poderá prever os efeitos que a prática dos julgamentos da Justiça Desportiva por via virtual produzirá, senão a certeza de que as Cortes Desportivas deverão contemplar esta nova modalidade em sua realidade a partir de hoje e nos seus regimentos internos. Logicamente, que não será o fim dos atos presenciais, mas se verá o incremento da tecnologia cada vez mais.

O que é uma excepcionalidade atualmente, poderá ser comum no porvir. Reconhecer e compreender este fenômeno é o que se exige, para estar preparado para o futuro e saber extrair da sua utilização o de melhor, sem que se perca a marca indelével da humanidade em se fazer Justiça.

* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, sendo de total responsabilidade do Autor deste.


¹ Advogado. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Nacional. Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Ex-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA. Presidente do STJD do Judô. Ex-Procurador do STJD do Futebol. Autor de artigos e obras jurídicas sobre Direito Desportivo.

² Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm> Acessado em 11 jun 2020.

³ Disponível em: <https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202003/20200316162344_868.pdf> Acessado em 11 jun 2020.

[4] Convém observar uma das justificativas da Resolução n° 05/2020: CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, seguindo as recomendações do Ministério da Saúde com relação à pandemia da Covi19, suspendeu suas atividades e o expediente interno – Resolução 002/2020, além dos prazos por tempo indeterminado comunicado em 23/03. Disponível em: <https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202005/20200522175502_504.pdf> Acessado em 11 jun 2020.

[5] Ver Decisão do Vice-presidente Administrativo do TJD/RJ. Disponível em: <http://fferj.azurewebsites.net/admin/AzureStorage/GetDocument?path=2020/3/16/b910fc0f-bfb3-4246-8513-440ba0c24f13.pdf> Acessado em 11 jun 2020.

[6] Ver Decisão do Vice-Presidente do TJD/BA. Disponível em: <https://www.fbf.org.br/ckfinder/userfiles/files/Ato%20Oficial%2002-2020%20-%20suspensão%20das%20atividades%20-%20Covid-19.pdf> Acessado em 11 jun 2020.

[7] Ver decisão do Presidente do TJD/PR. Disponível em: <http://191.252.64.150/sisgol/TJD/ATO03.2020.PDF> Acessado em 11 jun 2020.

[8] Íntegra do voto da Consulta. Disponível em: < file:///Users/admin/Downloads/documento_0002337-88.2020.2.00.0000_.HTML> Acessado em 11 jun 2020.

[9] Íntegra da Resolução. Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/files/compilado162516202005065eb2e4ec55d06.pdf> Acessado em 11 jun 2020.

[/fusion_builder_column][/fusion_builder_row][/fusion_builder_container]