Por Fernanda Chamusca Paes¹
Membro filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Nos últimos tempos, notícias como a aquisição dos Direitos de Transmissão da Ligue 1 (campeonato da primeira divisão francesa de futebol) pela Netflix, as possíveis negociações entre Amazon e Flamengo e o uso da plataforma YouTube para transmissão de jogos no retorno do futebol, chamaram a atenção para um novo mercado que vagarosamente ganhava seu espaço e, em contrapartida, ferozmente dominava cada pequena partícula do mercado da bola.
Muito tem se falado sobre a premissa de que se digitalizar seria talvez a única chance para manter seu negócio vivo; entretanto, ninguém esperava que as efetivas e mais dolorosas adaptações tecnológicas seriam impostas por força dos efeitos de uma pandemia. O distanciamento social e físico abriu as portas para uma aproximação digital esperada, necessária e principalmente global.
É cediço que as grandes Ligas de futebol do mundo já se utilizam da tecnologia como ferramenta de propagação do esporte e de alcance em diferentes culturas e mercados, o que atrai uma espetacular expansão das marcas dos clubes e das próprias Ligas. Através da comercialização e transmissão do seu produto uma via de mão dupla potencializa o retorno financeiro para todos os sujeitos do espetáculo esportivo, porquanto a imagem do atleta se projeta ainda mais, há uma interessantíssima valorização da competição e atração de mais investimentos e patrocínios.
Com o advento da MP 984/20², reavivou-se no Brasil intenso debate sobre os direitos de transmissão, ao dispor que pertencem exclusivamente ao clube mandante os direitos de negociar, autorizar ou proibir a captação, fixação, emissão, transmissão, retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo. Mudou-se o paradigma anterior que impunha a concordância entre os clubes participantes do espetáculo esportivo, cada qual sob a ótica dos seus contratos com a empresa escolhida.
A medida provisória mantém intacta a distribuição dos cinco por cento da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais em partes iguais aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como pagamento de natureza civil, exceto se houver disposição em contrário em Convenção Coletiva de Trabalho, sendo retirada, todavia, a prerrogativa de distribuição do direito de arena aos atletas pelos Sindicatos da categoria, retornando aos clubes o dever de fazê-lo diretamente.
Dentro desse debate frenético no cenário brasileiro, tem-se dois caminhos que merecem grande atenção: o direito de transmitir e explorar o espetáculo esportivo e o dever de distribuição decorrente dessa exploração. Deve ser lembrado, apesar de vozes dissonantes, que o Direito de Arena se reveste como apêndice dos direitos de imagem e, em se tratando de Direito Desportivo é necessário compreender de forma ainda mais específica o instituto.
Pois bem. Por mais complicada que pareça a redação conferida ao artigo 42, da Lei nº 9.615/98³, pela MP 984/20, pode-se dizer que a partir dela pairou-se no ar um espectro de maior liberdade, haja vista que passou a garantir ao clube mandante a autonomia negocial absoluta do seu direito de transmissão e à reboque trouxe consigo grande transformação, porquanto permite a abertura dos novos mercados de transmissão e canais de streaming, amplitude para o conhecido universo dos influenciadores, novas formas de marketing digital e, finalmente, políticas de monetização e anúncios.
Na era digital é permitido explorar e monetizar quase todas as ferramentas disponíveis: desde uma simples curtida que gera engajamento, aos acessos que compreendem os resultados da audiência do evento e, principalmente, os expectadores que passam a ser os usuários das redes sociais e assinantes das novas formas de transmissão do espetáculo esportivo.
O mercado do entretenimento caminha em uma crescente e desgovernada aventura pelo mundo digital e respectivos avanços, consequentemente, alcançaram os mais diversos setores produtivos da sociedade, a ponto de indagarmos quem seriam os sujeitos que sobreviveriam no mercado sem a imersão neste “novo mundo”. Em que pese o engajamento, apelo emocional e vinculação com o mercado do entretenimento é possível afirmar que a presente mudança era uma questão de tempo e foi antecipada “à fórceps” pelas necessidades decorrentes do trágico momento que passa a humanidade por força da propagação do vírus da Covid-19.
Tal como afirmou o francês Georges Ripert – “Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito” – não se pode desprezar a realidade, daí porque esse caminho se revela absolutamente natural, mesmo que o seu surgimento advenha de uma Medida Provisória e sendo deveras questionável o requisito da sua urgência.
É bem de ver que sequer pode se considerar pacífico o benefício da mudança para os atletas com o afastamento dos sindicatos como vetores da distribuição do direito de arena, bem como divergências eloquentes quanto à hipotética obrigatoriedade de pagamento pelo clube mandante aos atletas do clube visitante e que com ele não possuem vínculo trabalhista; afinal, está-se falando de conceitos que compõem a remuneração do atleta, por mais que a natureza jurídica do instituto se revele indenizatória e não salarial.
Outrossim, também existe grande margem para o debate, a autonomia negocial decisória concedida apenas ao clube mandante, especialmente quanto aos prejuízos que a negociação individual pode causar a longo prazo. Acontece que o debate e o aperfeiçoamento das regras não impedem que seja reconhecida a atualidade e a necessidade de se fazer esta mudança no futebol brasileiro.
O tema é interessantíssimo e, na prática, abre as portas para um ramo de estudo e atuação dentro do direito desportivo, qual seja o direito desportivo digital. Por maiores que sejam as similaridades entre o entretenimento e o esporte, resta evidente a necessidade de se visitar novos conceitos e entendimentos do mundo digital que parecem comuns para alguns, porém serão objeto de longos debates e possíveis litígios, caso não sejam harmonizados os institutos dentro das especificidades do Direito Desportivo.
O aperfeiçoamento da nova redação trazida pela medida provisória é necessário, além de ser a oportunidade perfeita para nos debruçarmos diante desse “direito digital”; pois abrem-se as portas para que os clubes desenvolvam os seus métodos e ferramentas próprias ou terceirizadas para melhor exploração da sua marca e eventos esportivos.
É importante lembrar a facilidade com que se desenvolve um produto digital, especialmente ao proporcionar aos clubes um planejamento financeiro compacto se comparado aos gastos com os arcaicos meios de publicidade e propaganda que foram – e ainda são – muito utilizados com expectativas de resultados mais compensatórios e infinitamente mais engajados.
Os efeitos da MP 984/20 foram, de logo, sentidos no primeiro jogo transmitido via canal próprio do Clube de Regatas Flamengo no YouTube – partida realizada pelo Campeonato Carioca de 2020. A partir da transmissão pela FLA TV, os números de audiência do espetáculo esportivo foram redefinidos e um novo método executado. Por óbvio, tratou-se de um apelo mais tímido, se comparado ao monopólio das emissoras da rede aberta de televisão, entretanto, o resultado foi extremamente positivo. A quantidade de acessos simultâneos e a interação do torcedor com a plataforma deixou clarividente que clube mandante pode ser responsável em disseminar o espetáculo da melhor forma possível, inclusive por meios mais rentáveis, quer seja por uma empresa já consolidada como o YouTube, quer seja por possíveis formatos inovadores que venham a ser utilizados no futuro, em que pese a estrutura principal que compreende a transmissão, desde a equipe, câmeras, narração e demais detalhes próprios da captação das imagens e sons, terem sido executados até aqui com maestria.
Como nem tudo são flores, infelizmente o Brasil não é formado apenas por “Flamengos”. Por maior que seja a quantidade de clubes existentes no Brasil, sabe-se que uma porcentagem mínima corresponde a expressão e potência do seleto grupo que compõe os times da Série A do Campeonato Brasileiro; no qual ainda a grande maioria dos clubes sequer alcança números que correspondam a um retorno satisfatório se comparada aos grandes clubes. Portanto, terão que inovar; ser criativos!
Os clubes que se mantêm na elite do futebol brasileiro buscarão os melhores acordos e negócios com as plataformas e canais de streaming. Haverá diálogo e conformidade com as regras desportivas, sob a perspectiva da velha lei da oferta e da procura com diversas propostas e possibilidades, diferentes opções e mercados para melhor explorar.
A preocupação maior consiste nos clubes que caminham no sentido oposto a ascensão e valorização. A falta de expressividade e resultados desportivos negativos podem ser armadilhas para termos fechados e restritos de canais virtuais de transmissão e redes sociais, onde o despreparo para a nova era desportiva digital e a mera concordância com uma política de transmissão que não venha a observar as especificidades do futebol, poderá resultar em temerárias relações com patrocinadores, interação desenfreada entre público e canal de transmissão, desmandos das plataformas digitais e – o principal – a possível queda de audiência, por conta do difícil acesso as plataformas digitais e despolarização do acesso aos jogos de futebol.
Ao se pensar de forma macro junto ao sistema do futebol, as políticas de monetização, todavia, podem se tornar uma dor de cabeça, caso não sejam alinhadas com todos os interesses que envolvem o clube e os indivíduos participantes do evento esportivo. As diferentes e individualizadas opções podem desvalorizar o campeonato como um todo.
Em conformidade com conceitos de gestão eficiente, o Direito Desportivo assume um papel de protagonismo junto aos conceitos digitais e métodos que se tornarão comuns e de fácil acesso a todo e qualquer clube. Será necessário compreender para qualificar; explorar para adaptar e testar para entender. Para que se cobre diligência e responsabilidade de todos frente ao dialogo entre futebol e os novos conceitos digitais, cabe aos atores que reverberam os princípios do Direito Desportivo compreender os obstáculos que poderão ser enfrentados. O futebol brasileiro não se resume aos clubes da série A e o seu alcance mercadológico, portanto é preciso trabalhar o sistema pensando nos clubes de maior e menor expressão no cenário nacional.
A mudança deve ser pensada para todos, coletivamente e a longo prazo. Como? Como uma forma de analisar resultados futuros e compreender o atual sistema, observando as metodologias e políticas adotadas pelos atuantes canais de streaming dedicados a transmissão esportiva. Internacionalmente é importante observar que as ligas possuem um papel importante nesse projeto digital, em que pese o pensamento coletivo gerar centralização e profissionalização, como o exemplo do uso da plataforma DAZN. Identificou-se um apelo para a digitalização dos canais esportivos e o seu formato de streaming “play”, tal como para a ideia de poder estar conectado em qualquer lugar e não apenas por intermédios de fixos aparelhos de televisão. Através da globalização e da conectividade, clamou-se pela liberdade digital.
A oferta e a procura se equilibram no novo formato trazido pela MP 984/20, porém urge trabalhar essa estrutura dentro de uma mínima unicidade e coletividade para que os clubes de maior expressão não ofusquem os menores e a tal disparidade não se torne um abismo irreversível, a ponto de apagar o brilho das competições. Trata-se de um equilíbrio entre a liberdade de ser detentor dos seus direitos de transmissão e credibilidade do campeonato como um produto importante para todos os participantes.
Ademais, todo o debate também recai sob uma nova perspectiva que vem sendo bastante discutida e planejada: a Lei Geral de Proteção de Dados[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]. Na medida em que todos os setores do futebol caminham para a digitalização é importante e urgente compreender as responsabilidades que decorrem desse uso. Os dados de terceiros e as informações necessárias para armazenamento precisam ter a garantia do clube gerenciador quanto a proteção e responsabilidade com os materiais, sob pena de graves consequências e sanções vultosas.
A imagem é a protagonista desse debate e a digitalização dos meios de exploração, a maquina transformadora do futuro do futebol. Portanto, não há o que questionar: o mercado do futebol não poderia estar fora da curva natural evolutiva. Isso não significa que será fácil, pacífico ou efetivo.
Assim como será desafiador, também haverá de ser momento de redefinir conceitos e métodos; de contar com a expertise do direito digital para construir um novo conceito junto as especificidades do mercado, e compreender de que forma podemos adaptar as políticas de monetização, publicidade, patrocínios e marketing digital para propor uma legítima competitividade entre os clubes, qual seja o seu alcance mercadológico.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
¹ Mestre em Direito Internacional Desportivo pela ISDE Law & Business School – Madrid/ESP; Advogada no escritório Jordão & Possidio; Membro filiada a associação WISLaw (Suíça); Membro Filiada ao IBDD; Membro filiada ao IDDBA; Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA; Membro da Comissão de Esportes da OAB/BA; Graduada em Direito pela UNIFACS.
³ “Art. 42. Pertence à entidade de prática desportiva mandante o direito de arena sobre o espetáculo desportivo, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo”. BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 984, de 18 de Junho de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, 18 de Junho de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv984.htm> Acesso em: 07 de Agosto de 2018.
[4] BRASIL. LEI Nº 13.853, de 8 de Julho de 2019. Altera a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, para dispor sobre a proteção de dados pessoais e para criar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 08 de Julho de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13853.htm#art1> Acesso em: 07 de Agosto de 2018.
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