O Desenvolvimento da Justiça Desportiva

Por Caio Medauar¹

Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

Recorrentemente tratamos a Justiça Desportiva como nossa “jabuticaba”, uma vez que não se vislumbra estruturas semelhantes em outros países, ao mesmo tempo que exaltamos a sua especialidade e possibilidade de aplicação do “Direito Desportivo Puro” ou a Lex Sportiva.

Fortemente criticada em casos polêmicos no futebol, fato é que temos um sistema cujas origens remontam a primeira metade do século XX, com constante evolução.

Dada a importância do tema, o Presidente do IBDD e Presidente do STJD da Modalidade Voleibol, Dr. Leonardo Andreotti, reuniu alguns presidentes de tribunais desportivos para discutir uma possível revisão do CBJD – Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o que aliado à necessária e obrigatória adequação do CBA – Código Brasileiro Antidopagem – aos termos do Código Mundial Antidopagem – 2021, faz com que nós que operamos no dia a dia de inúmeros tribunais façamos uma reflexão sobre qual é a JD que queremos e se o atual modelo atende às necessidades do Sistema Desportivo.

Assim, ousarei trazer algumas reflexões e sugestões para evolução do sistema, sem pretender, por óbvio esgotar o tema.

A primeira questão que se coloca é a diferença monumental entre os Tribunais do Futebol e os das demais modalidades. O STJD do Futebol conta com 11 funcionários exclusivos, sede própria com estrutura adequada e verba para viagem dos auditores, escola de Justiça Desportiva – ENAJD, e a cada ciclo de 4 (quatro) anos há uma intensa disputa política por suas vagas.

Por outro lado, a maior parte das demais modalidades encontram um maior ou menor grau de dificuldade, incluindo ausência de espaço próprio, dificuldade de organização, ausência de recursos e dificuldade de se preencher as vagas com pessoas realmente interessadas e preparadas.

Modalidades de contato como Futebol, Futsal e Handebol, por exemplo, tem um volume maior de processos, ao passo que modalidades como ciclismo e atletismo têm pouca atividade, sobretudo pelo fato de que as questões disciplinares são resolvidas diretamente pelos árbitros e comissários de prova, sem atuação da JD.

Portanto, em que pese o fato de que os autores do CBJD e de sua revisão de 2009 tenham se esforçado em ajudar, é evidente que o sistema atual de organização e funcionamento da JD não atende a todas as realidades da mesma forma.

Neste sentido, o CBJD vigente tentou facilitar tais situações, prevendo, inclusive, o diferimento dos prazos processuais, em caso de competições ininterruptas (§ 3º do artigo 42²), sendo raros os casos que o mesmo é aplicado em competições de alto rendimento.

Mesmo o artigo 286-A do CBJD³ é absolutamente subutilizado, sendo que as entidades de administração de desporto entendem que a mera constituição de um tribunal basta, não se preocupando em estabelecer dispositivos específicos autorizados pela legislação vigente.

Portanto, temos que não só há diferenças significativas entre os tribunais, como também, as entidades pouco se preocupam em se utilizar dos mecanismos previstos para dar maior efetividade ao julgamento de suas questões disciplinares.

Para resolver tal situação, parece clara a necessidade de um sistema que dê maior flexibilidade para as entidades de administração por um lado, mas que haja algum nível de controle por outro, como por exemplo, criando procedimentos específicos e obrigatórios para competições de tiro curto ou ainda criando parâmetros para que códigos disciplinares das modalidades sejam criados.

Mas as diferenças não param por aí. Muito embora devamos respeitar o princípio constitucional do tratamento diferenciado do desporto profissional e não profissional (Inciso III do artigo 217[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4] da CR/88), vivemos em um sistema no qual essa divisão nunca fica clara, sendo que o modelo é replicado para qualquer nível de atleta e de modalidade.

Ora. Jogadores de futebol, com altos salários, por exemplo são julgados por auditores voluntários amadores, muitas vezes sem conhecimento técnico suficiente. A maior ou menor especialização dos julgadores dependerá do grau de comprometimento e preocupação das entidades previstas no artigo 55[5] da Lei Geral sobre o Desporto (Lei Pelé). Ou seja: a especialização defendida por muitos – inclusive este autor – depende de indicações políticas, que não necessariamente terão conhecimento da matéria esportiva. Basta analisar que o TJD do Futebol[6] do Paraná realizou sessão de julgamento sem que houvesse procuradoria constituída, sendo que seus membros consideraram normal.

Inúmeras são as situações em que auditores assumem seus cargos nos tribunais sem nunca terem participado da JD ou ter estudado o CBJD. Ora, cada instituto contido no CBJD é uma evolução continua, e tem uma razão de ser, sendo fundamental o conhecimento do código, dos princípios, das infrações, etc. Portanto, é fundamental que haja um programa de capacitação dos membros da JD, sobretudo para que não se tenha uma ruptura abrupta a cada mudança de composição, em razão de membros novos não conhecerem os funcionamento, os institutos e a jurisprudência dos tribunais (muito embora a maior parte dos tribunais não tenha um repositório de decisões).

De nada adianta discutirmos o Direito Desportivo como ciência ou disciplina autônoma, defendermos que o Judiciário tem que respeitar as decisões da Justiça Desportiva especializada, e não termos uma formação adequada e dirigida dos integrantes da JD. Justiça seja feita pela criação, pelo STJD do Futebol, da Escola Nacional de Justiça Desportiva, assim como Webinários organizados pela Agência Mundial Antidopagem para discutir o novo Código Mundial Antidopagem, além de outras iniciativas, normalmente esparsas.

Da mesma forma, defendemos de forma romântica o respeito à lex sportiva, e aos princípios fundamentais do desporto, mas deixamos que nossas decisões sejam contaminadas pelo direito civil ou pelo direito penal, chegando-se ao absurdo de confundir o banimento ou pena perpétua no direito penal com a eliminação do esporte, ou ainda negar vigência ao artigo 243-F por entender que a JD não pode tutelar a honra da pessoa.

Se não houver obrigatoriedade para que os membros façam tais capacitações anteriormente sugeridas, dificilmente teremos avanços significativos, a menos que as entidades que indicam os membros se preocupem em indicar pessoas preparadas e comprometidas, o que nem sempre ocorre.

Da mesma forma não se poderá exigir a mesma estrutura de capacitação de auditores, procuradores e secretaria de cada modalidade, como se avista no potencial que significa a ENAJD. Fundamental seria a criação de cursos específicos, que certificassem os advogados com a intenção de integrar a JD, não faltando entidades habilitadas para tal encargo, tais como este IBDD, Instituto Olímpico Brasileiro, ANDD, SBDD e ESAs por todo o Brasil.

Nunca foi tão presente a necessidade de se profissionalizar os membros da JD. Evidentemente que não se imagina tal profissionalização para todas as entidades e modalidades, mas para as que tem mais destaque ou maior volume financeiro, seria fundamental.

Depender de pessoas abnegadas e bem intencionadas no desporto que movimenta bilhões de reais todos os anos, é cada vez mais temerário. E exemplos não faltam. Em certo julgamento do STJD dos Desportos Aquáticos, onde se discutia direito de um atleta a ter seletiva para jogos pan-americanos, um compromisso profissional de um dos auditores quase deixou o julgamento sem quórum mínimo. Não raro, há dificuldades de se custear o deslocamento de membros dos Tribunais, atrasos nos julgamentos por indisponibilidade de agendas, atraso no oferecimento de denúncias.

A Justiça Desportiva Antidopagem ficou parada por praticamente um ano, pois dependia do CNE para nomear Procuradores. Uma vez nomeados, houve a saída de dois procuradores, gerando um acúmulo de processos, que somente foi sanado com a indicação de uma nova equipe, com 6 membros a partir do final de 2018.

O mesmo tribunal enfrentou uma certa rotatividade de seus membros, pois muitos deles não conseguiam conciliar seus afazeres profissionais com a atuação na Corte, uma vez que todos os processos, sem exceção, englobam algum grau de complexidade e impactam diretamente na carreira dos denunciados nas pesadas penas previstas na legislação antidopagem.

A complexidade e a especialidade cada vez mais exigidas da JD convencional e da JAD justificam a presença de membros especializados e remunerados que tenham condições de dar toda a atenção aos casos que, não raro, apresentam mais de 100 páginas, incluindo laudos técnicos etc.

A JAD é, igualmente, uma fonte importante de casos e ensinamentos. Apesar da forma inconstitucional como foi imposta às entidades de administração do desporto, é certo que todas as entidades de administração a aceitaram, de modo que hoje é pouco contestada, sobretudo por que, mesmo com todas as dificuldades iniciais tem melhorado seus procedimentos e a condução do processo.

A utilização de um sistema de processo eletrônico através da plataforma SEI desde o início, e a luta incansável de seus membros para manter um quadro suficiente na secretaria, aliada à já citada nomeação de Procuradores experientes e em numero maior, fizeram com que fosse possível não parar as atividades durante a pandemia, e demonstram a importância da tecnologia em garantir o bom andamento dos processos. Portanto a adoção do processo eletrônico pela JD é algo absolutamente necessário e premente.

Ora, as ideias de melhor estruturação; adoção de tecnologia; treinamentos; e o relativo sucesso da JAD apenas reforçaram a ideia de criação de uma corte única, destinada a agregar a JD de várias modalidades. Tal solução não é nova e tem projetos em curso em SC, ES e DF. Porém algo que facilmente poderia ser organizado pelas próprias Federações e Confederações é raro. A própria JAD só foi implementada pois foi imposta a todos. Sendo assim, tal ideia só se efetivará se houver uma determinação no CBJD ou na legislação esportiva de forma clara, ou ainda a iniciativa de entidades como o COB ou o CPB, com um sistema que incentive a adesão das entidades, sem, é claro, afastar as respectivas autonomias.

O próprio CPB tem uma estrutura própria (TDP), mas como não há a obrigatoriedade de seguir o artigo 55 da LGSD, optou por criar uma estrutura mais enxuta e flexível, o que impossibilitou que outras confederações aderissem ao seu Tribunal.

Mas modalidades como ginástica; atletismo; remo; ciclismo e tantas outras, poderiam ter uma mesma estrutura, ou aderir a uma estrutura criada junto ao COB ou outra entidade e criar comissões temáticas.

Por fim, não se pode perder de vista que tramita no Congresso Nacional proposta de nova Lei Geral Sobre Desporto, PLS 68/2017[7], que propõe uma mudança radical no formato da JD. Por ocasião das audiências públicas realizadas no Senado Federal, já defendíamos a profissionalização das cortes. Contudo, referido projeto sugere que cada modalidade possa se estruturar, criando suas instâncias e códigos a partir de uma estrutura mínima de princípios e de regras de representatividade de seus membros.

Uma decisão equivocada e sem técnica pode comprometer a credibilidade de qualquer tribunal, mesmo que ele acerte em todas as demais. Se quisermos que a JD evolua teremos que enfrentar suas contradições, sempre no sentido da profissionalização.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.


¹ Advogado especializado em Direito Desportivo, Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP, Procurador Geral do TJD-AD, ex-Sub-Procurador Geral do STJD do Futebol, Membro de diversos Tribunais Desportivos do país, Especialista em Direito Desportivo pelo CEDIN

² Art. 42. Os atos relacionados ao processo desportivo serão realizados nos prazos previstos por este Código.

§ 1º Quando houver omissão, o Presidente do órgão judicante fixará o prazo, tendo em conta a complexidade da causa e do ato a ser praticado, que não poderá exceder a três dias.

§ 2º Não havendo preceito normativo nem fixação de prazo pelo Presidente do órgão judicante, será de três dias o prazo para a prática de ato processual a cargo da parte.

§ 3º Nas hipóteses de competições que se realizem ininterruptamente e findem em prazo não superior a vinte dias, o Presidente do órgão judicante fixará o prazo, tendo em conta a complexidade da causa e do ato a ser praticado, que não poderá exceder a três dias. (AC).

³ Art. 286-A. Faculta-se às entidades nacionais de administração do desporto propor a adoção de tábua de infrações e penalidades peculiares à respectiva modalidade desportiva em complementação àquelas constantes deste Código. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

Parágrafo único. A proposta referida no caput é limitada às infrações e penalidades peculiares, condicionada à prévia apreciação do Conselho Nacional de Esporte, e, se aprovada, será publicada como Anexo ao Código Brasileiro de Justiça Desportiva, sendo seu campo de incidência restrito à respectiva modalidade desportiva. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

[4] SEÇÃO III – DO DESPORTO

  Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

[5] Art. 55. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva e os Tribunais de Justiça Desportiva serão compostos por nove membros, sendo:          (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

I – dois indicados pela entidade de administração do desporto;       (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

II – dois indicados pelas entidades de prática desportiva que participem de competições oficiais da divisão principal;        (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

III – dois advogados com notório saber jurídico desportivo, indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil;        (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

IV – 1 (um) representante dos árbitros, indicado pela respectiva entidade de classe;       (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

V – 2 (dois) representantes dos atletas, indicados pelas respectivas entidades sindicais.        (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

§ 1o (Revogado).      (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

§ 2o O mandato dos membros dos Tribunais de Justiça Desportiva terá duração máxima de quatro anos, permitida apenas uma recondução.       (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

§ 3o É vedado aos dirigentes desportivos das entidades de administração e das entidades de prática o exercício de cargo ou função na Justiça Desportiva, exceção feita aos membros dos conselhos deliberativos das entidades de prática desportiva.      (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

§ 4o Os membros dos Tribunais de Justiça Desportiva poderão ser bacharéis em Direito ou pessoas de notório saber jurídico, e de conduta ilibada.         (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

[6] https://www.gazetadopovo.com.br/esportes/paranaense-tjd-polemica/amp/?__twitter_impression=true

[7] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5156310&ts=1593906040591&disposition=inline

[/fusion_builder_column][/fusion_builder_row][/fusion_builder_container]