O novo Código Brasileiro Antidopagem e o novo capítulo da luta pela integridade no esporte

Tatiana Mesquita Nunes¹

Na quase totalidade das sociedades modernas, o esporte é entendido como um modelo social de referência, na medida em que se supõe exprimir “umaconcepção igualitária de justiça”. Assim concebido, o esporte propõe uma organização social ideal na qual as chances de todos são iguais e na qual o resultado não depende de outra coisa que não dos méritos individuais dos protagonistas. Contudo, para garantir esse ideal social que conduz à elaboração de uma hierarquia esportiva temporária e renovável, o esporte se apoia em três princípios fundamentais: uma liberdade de acesso à prática, regras escritas e comuns a todos e uma instituição que valide os resultados obtidos através da intermediação de um agente mandatário para zelar pelo respeito às regras editadas. (ATTALI, 2004, p. 71)²

            Huizinga³ nos legou a lição de que jogo e esporte guardam entre si uma íntima relação, esse se mostrando como expressão daquele, mas não se mimetizando de todo, especialmente no campo do esporte de alto rendimento. Sem me deter na evolução entre as práticas da atividade física e suas finalidades próximas e distantes, certo é que, diferentemente da criança que se diverte jogando, o esportista de alto rendimento busca algo além da diversão. Almeja a glória, a fama, a distinção.

Tanto o jogo quanto o esporte usualmente, mas não essencialmente, lançam o indivíduo numa competição, medindo-se consigo mesmo e com o outro, ou os outros, com o passado visando à marca indelével do recorde que o inscreverá no Panteão, casa dos incomuns. Superar a si e ao outro, num contínuo progredir. 

Superação é a força motriz do progresso. Do tear manual, o homem passou às máquinas à vapor, dessas às movidas pela eletricidade, primeiro gerada pela força das águas até desaguar na exploração energética da fissão nuclear. E a prática esportiva é, justamente, isso: superação. O progredir e o superar, duas faces de uma mesma moeda, só têm sentido, contudo, num sistema que permita comparações. Por isso, talvez em nenhum outro campo do agir humano isso seja tão evidente quanto no esportivo, ainda mais na sua expressão de altíssimo rendimento.

É essa inalienável necessidade de comparação que clama por regras uniformes, legitima estruturas com poder semelhante ao dos Estados-nação – legislando, reconhecendo direitos e impondo deveres – e exige comportamentos distintos daqueles que se espera dos indivíduos em geral, ou do mesmo indivíduo, em outras searas da convivência social.

Assim, diferentemente do mero jogar, o esporte tem efeitos ao mesmo tempo constitutivo e declaratório. Só o feito esportivo realizado dentro das regras é que será reconhecido por essas entidades, principais responsáveis por essa certificação: superados os demais, ultrapassados os limites, declarando-se a conformidade com as regras, objetivas, subjetivas e, principalmente, deontológicas, tem-se o campeão declarado, constituído em lenda.

Eis aí o espaço do agente certificador desse resultado que, nos últimos tempos – e os diversos debates dos quais participei deixam isso claro –, tem no controle de dopagem um papel fundante. Se outrora bastava superar a marca, correr mais rápido ou saltar mais alto, agora o esportista de altíssimo nível deve ainda comprovar que o fez sem qualquer substância ou método vedados pela legislação antidopagem, o que dá eco às palavras de Pierre de Coubertin (2005, p. 383): “no ideal olímpico, o atleta é um cavalheiro, já que o vigor do corpo não pode se desatrelar da retidão de caráter”.     

 A integridade, como ideal deontológico, passa a conformar o esporte, de tal modo a configurar-se como seu “(…) atributo fundacional e fundamental, não se constituindo real competição sob premissas falsas, como a manipulação, a dopagem ou o privilégio” (NUNES, 2020, p. 49). A prevenção e controle da dopagem, um dos matizes de tal ideal, ganha maior institucionalidade com o surgimento da Agência Mundial Antidopagem[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4], sem distinguir público e privado, alcançando Estados-nação e estruturas esportivas, formando uma plêiade de certificadores cujas regras fundantes são uniformes e aptas a permitir a tão propalada isonomia das competições esportivas.

Tais regras fundantes universais – a permitir que a certificação da competição seja e permaneça isonômica – são apresentadas à comunidade esportiva pelo Código Mundial Antidopagem, cuja internalização obrigatória em regras esportivas estatais e institucionais permite que todo atleta saiba, de antemão, não apenas quais são as regras a serem seguidas para que o resultado alcançado seja validado, mas também que seus adversários deverão seguir as mesmas regras.

A dinâmica do enfrentamento à dopagem no esporte, no entanto, deve seguir, necessariamente, a dinâmica das técnicas utilizadas por aqueles que, indiferentes ou refratários às regras deontológicas, buscam otimizar sua performance pela utilização de métodos ou substâncias proibidas. O sistema de controle se vê constantemente desafiado por novos métodos e práticas que visam burlar suas regras e seus censores, exigindo-lhe constante aperfeiçoamento, reproduzido na renovação anual da Lista de Métodos e Substâncias Proibidas, como também nas atualizações do Código Mundial, a última ocorrida recentemente – com previsão para entrada em vigor em janeiro de 2021.

Aqui e alhures, a nova formatação das regras mundiais implica a atualização das regras vigentes, passando os Estados e organizações esportivas por processos de discussão das normas antidopagem que vigorarão em 1º de janeiro de 2021, como é o caso do novo Código Brasileiro Antidopagem (o qual, na data da publicação desta coluna terá recém ultrapassado a fase de consulta pública).

A presente atualização das diretrizes orientadoras – bem como das regras propriamente ditas – de prevenção e combate à dopagem no esporte não vem, contudo, apenas direcionada aos atletas. Os atores que participam do processo de certificação – quer para prevenir a ocorrência das violações às regras do jogo, quer para coibi-las – passam a também ter regras deontológicas a si dirigidas. Se somente o feito esportivo realizado dentro das regras é que será reconhecido pelas autoridades certificadoras, a certificação só será também reconhecida na medida em que observe regras de integridade que lhe legitimem.

Relacionando-se o termo integridade, justamente, com aquilo que é íntegro (i.e., que é inteiro; completo), a sua efetivação não pode alcançar apenas parcela do sistema – como ocorria ao apenas observar as atitudes dos atletas e seu pessoal de apoio –, mas deve se estender a todo o círculo no qual as relações esportivas se mantêm – e nisso inclui-se, como sublinhado, as ações dos certificadores, a saber, as entidades de administração e prática do esporte e com o próprio Sistema Brasileiro Antidopagem[5]. A integridade deve ser, ela também – com o perdão da redundância –, íntegra, inteira, e, pois, guiar os comportamentos de todos aqueles que desempenham papéis no meio esportivo. E quais seriam as principais novidades do novo Código para esse fim?

            Sob o prisma do atleta e seu pessoal de apoio, têm sido objeto de relevantes debates o novo tratamento outorgado às chamadas substâncias de abuso[6], a inclusão das figuras do atleta recreativo e da pessoa protegida[7] – e suas consequências –, as novas formas de sanção às equipes[8] e a tipificação de novas infrações[9], exemplos de inovações que se somam ao esforço de proteção à integridade que vem sendo construído nos últimos anos no enfrentamento da dopagem no esporte.

            Sob o prisma dos certificadores, o novo Código Brasileiro Antidopagem inova ao prever dois tipos de infração à legislação antidopagem especialmente voltados às entidades de administração e prática do esporte[10], além de regras deontológicas dirigidas aos membros da Justiça Desportiva Antidopagem[11].

No tocante aos dois tipos infracionais, o primeiro deles tipifica uma espécie de omissão, legalmente punível, relacionada à ocorrência de quatro ou mais violações de regras antidopagem por atletas ou outras pessoas a elas vinculados por qualquer forma. O segundo prevê a omissão típica de não adoção de esforços diligentes para manter a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem informada da localização de atleta vinculado[12].

Se  omissão passa a ser juridicamente punível em âmbito esportivo quando haja um dever de ação, a primeira das hipóteses vem justamente reforçar o instrumental voltado à prevenção da dopagem no campo esportivo corporificado nesse novo Código[13]. Isso porque as entidades de administração e prática do esporte às quais seja o atleta ou outra pessoa vinculado serão puníveis na medida em que compreenda-se que, atingido o patamar de quatro violações no período de doze meses, omitiram-se no seu dever de prevenir, assim consideradas as ações de informação e educação antidopagem[14], configurando-se espécie de “culpa in vigilando” quanto às ações dos atletas pelos quais, conforme a organização do sistema esportivo, deveriam zelar.

No tocante às regras deontológicas voltadas à Justiça Desportiva Antidopagem, cujo ideal orientador é a independência e imparcialidade deste órgão certificador da lisura do jogo sob o prisma da dopagem, merece especial atenção a nova formatação das situações de conflitos de interesse. As novas disposições, inspiradas no modelo francês, inaugurado pela Alta Autoridade pela Transparência da Vida Pública[15], preveem não somente hipóteses mais claras de conflitos de interesse e reserva de informação privilegiada, como também a necessidade de que os integrantes da Justiça Desportiva Antidopagem apresentem declarações de conflito de interesses.

O desafio de conceituação foi endereçado pela redação proposta ao inciso I do art. 85 da minuta, que define o conflito de interesses como “situação gerada pelo confronto entre interesses decorrentes do exercício da função no sistema antidopagem e interesses privados, que possa comprometer ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função”[16]. Definido o conflito de interesses, qualquer do povo pode exercer o controle social para apontá-lo, demandando a adoção das ações necessárias à sua erradicação.

Os encarregados de exercer tal mister estão a serviço de uma missão social de altíssima relevância – na França considerada missão de serviço público –,  o que legitima que lhes seja imposto um estatuto deontológico condizente com a exigência de retidão comportamental tal qual se exige do atleta na prática esportiva. Nada mais justo do que àqueles a quem é outorgada a capacidade de reconhecer que um feito esportivo merece ser assim validado e seu executor constituído em campeão seja demandada a conformação de suas próprias ações à retidão comportamental que impõem. A integridade, para ser íntegra, deve ser por todos observada.

Bibliografia consultada

ATTALI, Michäel (dir). Le sport et ses valeurs. Paris: La Dispute, 2004.

COUBERTIN, Pierre de. Rapport du secrétaire général de l’UFSA. Publicado na Revue française d’histoire des idées politiques, n. 22, 2005.

GARDINER, Simon; et alli. Integrity and the Corruption Debate in Sport – Where is the Integrity? Disponível em <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/ 16184742.2016.1259246>. Acesso em 3 de agosto de 2020.

GOUGUET, Jean-Jacques. Le príncipe d’intégrité au défi de la finance mondiale. In DUDOGNON, Charles; FOUCHER, Bernard; et alli. Intégrité des Compétitions Sportives. Lyon: Dalloz, 2014

NUNES, Tatiana Mesquita. Olímpia e o Leviatã: A participação do Estado para garantia da integridade no esporte. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de São Paulo – USP, São Paulo.

SAUVÉ, Jean-Marc. Propos introductifs. In DUDOGNON, Charles; FOUCHER, Bernard; et alli. Intégrité des Compétitions Sportives. Lyon: Dalloz, 2014.


¹É Advogada da União (2009-atual), com atuação no Núcleo Especializado em Arbitragem da Advocacia-Geral da União (2019-atual), Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem – TJD-AD (2018-atual) e Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP. É membro filiada ao IBDD desde 2018.

² Todos os textos em língua estrangeira (francês e inglês) citados nesta Coluna foram livremente traduzidos.

³ HUIZINGA, Johan. Homo LudensA Study of the Play-Element in Culture. London, Boston and Henley: Routledge & Kegan Paul, 1949.

[4] A Agência Mundial Antidopagem é uma das maiores organizações internacionais do mundo, configurando-se com dúplice formatação, parte correspondente aos membros de natureza estatal, parte correspondente aos membros do movimento esportivo.

[5] O novo Código Brasileiro Antidopagem considera como integrantes do Sistema Brasileiro Antidopagem as entidades responsáveis pela investigação, processos e julgamento de violações às regras antidopagem ou infrações conexas.

[6] As violações envolvendo substâncias de abuso, assim consideradas aquelas de abuso constante na sociedade e previstas na Lista Proibida de 2021 com essa denominação, terão as sanções de suspensão reduzidas, desde que demonstrada a ingestão/uso fora de competição e sem relação com o desempenho esportivo.

[7] O atleta recreativo, conceituado por exclusão em relação aos demais conceitos de atleta previstos no Código, terá tratamento específico, como a não exigência de comprovação de como a substância proibida entrou em seu organismo e a aplicação de hipóteses especiais de redução da sanção. Mesmo tratamento especial receberá a pessoa protegida, conceituada como aquela que: (i) não tiver completado dezesseis anos de idade; (ii) não tiver completado dezoito anos de idade e não estiver incluído em qualquer grupo alvo de testes e jamais tiver competido em qualquer evento internacional em uma categoria aberta; ou (iii) for absoluta ou relativamente incapaz, nos termos dos arts. 3º e 4º do Código Civil.

[8] Se mais de dois membros de uma equipe cometerem violação de regra antidopagem durante o evento esportivo – assim consideradas as competições individuais realizadas em conjunto sob a coordenação de um mesmo órgão dirigente – poderá ser imposta a sanção de perda de pontos ou desqualificação.

[9] Tais como a nova violação de atos de desincentivo ou retaliação ou as violações antes apenas previstas no Código Brasileiro de Justiça Desportiva e que passarão a ser tipificadas no Código Brasileiro Antidopagem.

[10] Tais são os artigos 131 e 132 da minuta de Código submetida à consulta pública.

[11] Vide arts. 77 a 90 da minuta de Código submetida a consulta pública.

[12] A sanção, em qualquer destes casos, é a pena de multa, que poderá ser estipulada entre R$ 1.000,00 (mil reais) e R$ 100.000,00 (cem mil reais), observadas a gravidade da conduta, o poder econômico do infrator e outras circunstâncias do caso.

[13] Não à toa o novo Código Brasileiro Antidopagem inaugura-se com a prevenção (inclusa no Livro I) para só depois tratar das violações (inclusas no Livro III). Trata-se de clara demonstração da necessária priorização do sistema antidopagem, o qual deve buscar, inicialmente, prevenir para, apenas quando tal não seja suficiente para impedir a ocorrência do ato típico, reprimi-lo.

[14] E a tais ações encontram-se obrigadas segundo o Código, ao dispor ser de responsabilidade das entidades de administração e prática do desporto “implantar programas de prevenção à dopagem no esporte de acordo com seus meios e competências e em cooperação com a ABCD”.

[15] Vide artigo 11, III, da Lei n. 2013-907, de 11 de outubro de 2013 (redação dada pela Lei n. 2017-261, de 2 de março de 2017).

[16] A noção teve inspiração na Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013, assim como na citada lei francesa de transparência na vida pública e à Autoridade por ela criada.

[/fusion_builder_column][/fusion_builder_row][/fusion_builder_container]