Milton Jordão
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
A coluna de hoje é especial. Singular. Porém, plural.
Tenho acompanhado com peculiar atenção o desdobramento da contratação do atleta Robinho pelo Santos Futebol Clube e quis compartir este espaço, para ouvir (diga-se, ler) uma voz além da minha própria…
Trago-vos, nas linhas que seguem, visões e opiniões de vozes femininas, fruto de opiniões que colhi nos últimos dias, junto a diversas colegas advogadas sobre o assunto. Não as identificarei, até porque, me faltará espaço, mas, as reunirei na figura de Maria Felipa[²], vamos ao nosso bate papo!
Teceremos algumas linhas sobre esse caso, vamos dialogando sobre Robinho e a sua luta nos foros judiciais italianos, na tribuna de amor e (mais) ódio que é internet, a repercussão da sua contratação pelo Santos, a posição de patrocinadores.
Tudo isso queremos fazer à luz dos valores mais caros à Constituição Federal, que adotou aqueles admitidos pelo denominado Estado Democrático de Direito, derivados do princípio da secularização[3].
Inicialmente, destaco que, à luz do princípio da autonomia, no âmbito do direito desportivo, será lícito a um clube contratar o profissional, desde que, objetivamente, preencha os requisitos exigidos pela entidade de administração do esporte. Na espécie, poderia o Santos Futebol Clube celebrar contrato especial de trabalho esportivo com o atleta Robson de Souza (“Robinho”). E ninguém contesta isso.
O nó górdio da contratação se deveu a um processo criminal que o referido atleta enfrenta na Justiça Penal Italiana. Acusaram-no da prática de estupro de vulnerável (artigo 609 bis, Código Penal Italiano[4]), sendo, em primeiro grau de jurisdição, no ano de 2017, condenado. O feito se encontra, atualmente, em grau de recurso, perante o Tribunal de Apelação de Milão[5].
Mas os tempos estão mudando e, após o Santos F.C. fechar a contratação do seu craque de outrora, se iniciou uma grande campanha em desfavor do negócio jurídico celebrado, na mais cruel tribuna: a da internet. Deste marco até hoje, o tema ganhou ampla notoriedade, sendo tema de programas esportivos, de manifestações das mais diversas nas redes sociais.
Cediço que um clube de futebol deve observar, antes de realizar qualquer ação que se torne conhecida, uma análise do risco, ou seja, compreender o que implicará, em abstrato, concretizar a ideia que foi concebida. Afinal, sabe-se, por demais, que nenhum ato passará incólume perante os associados, a torcida, a mídia e os patrocinadores.
Assim sendo, força convir que se o Santos F.C. não fez esse prévio brainstorm, paga agora o preço da ingenuidade (que creio não ser possível se compreender numa instituição antiga e do futebol) ou por se afoito. Creia que fazia um grande negócio, mas não efetivou ou desdenhou das due dillegence que deveriam ter antecedido a contratação.
Recentemente, mas razões diversas, deveras, o Clube Atlético Mineiro padeceu do tribunal da mídia social e força da torcida ao tentar contratar um atleta, cujo histórico foi ligado ao seu maior rival e fazer chacotas como se um torcedor fosse. Resultado disso: refluiu com o atleta praticamente anunciado pelo clube; e, com isso, adveio mais um dilema para o competente Departamento Jurídico do CAM enfrentar sobre danos morais que este atleta teria sofrido ou se o pré-contrato existente lhe daria direito a qualquer valor a perceber, como se houvesse uma rescisão unilateral do futuro contrato especial de trabalho desportivo.
No caso santista, quiçá, a punição que lhe impôs a FIFA, impedindo o clube de contratar atletas nas próximas janelas, em face de inadimplência, tenha embotado a razoabilidade na leitura dos efeitos da contratação de Robinho.
Hoje, com tantas vozes no mundo virtual, sobretudo em tempos pandêmicos (onde se maximiza mais ainda o uso das redes sociais) parafraseio a expressão do mundo do compliance “know your client”, adaptando-a ao futebol para “know your player”!
E ao Santos F.C. faltou isso. A Robinho, penso, igualmente. Menosprezaram o eco que faria uma sentença condenatória, ainda que em primeiro grau, junto à sociedade brasileira, aos torcedores, sócios do clube, patrocinadores, etc…
Aqui, paro um pouco, e trago recortes jurídico-penais fruto dos diálogos que mantive com Maria Felipa, porquanto, aqui e acolá, vimos teses nascerem sobre a eventual conduta da garota albanesa, a vítima no processo penal movido contra Robinho[6].
Faz bem ouvir e, para vocês, agora lerem o que extai desses diálogos.
Neste ponto, é importante frisar que, a despeito do que se anda afirmando nas rodas de botequim por aí, se verdadeira a narrativa constante dos autos, pouco importaria a embriaguez voluntária da apontada vítima. Se cometida no Brasil conduta semelhante àquela pela qual está condenado o atleta, teria ele respondido pela prática da conduta típica prevista no art. 217-A do Código Penal. E não haveria “actio libera in causa” que excluísse a ilicitude da conduta.
A actio libera in causa é teoria manifestada pelo legislador brasileiro no art. 28, II, do Código Penal, segundo a qual o agente que voluntariamente se embriaga não pode alegar a embriaguez para escusar-se da culpabilidade pela prática delitiva. Há quem tenha pretendido aplicá-la a fim de afastar a ilicitude, a punibilidade ou mesmo para justificar a conduta que se imputa ao atleta.
Retomo aqui a “palavra”, para trazer recorte da maiúscula obra de Narcérlio de Queiroz, Teoria da “actio libera in causa” e outras teses, sobre a sua aplicação no âmbito do Direito Penal Brasileiro, desde as suas origens:
“Assim, três seriam os elementos pelos quais se poderiam identificar as actiones liberae in causa, segundo a síntese de Massari:
1º Uma conduta voluntária antecedente ao processo de produção do crime, a qual, perturbando o ritmo das faculdades psíquicas do agente, determine o evento;
2º Um consequente processo de produção do fato, que seja manifestação de um dinamismo ideo-motor, tornando incoerente por um ato de vontade do mesmo agente;
3º Uma relação finalística que, mesmo através da consciência crepuscular daquele que age, ligue o evento à conduta voluntária inicial.”[7]
Tal excerto é suficiente, somado às considerações aludidas por Maria Felipa, que a teoria aludida se destina aos autores do fato e não às vítimas. Fugir disso é fugir do Direito posto. Há muito tempo, friso.
Trocando em miúdos, criou-se a “actio libera in causa” para sancionar condutas que eram praticadas por pessoa que estavam em estado onde a sua capacidade (elemento essencial da culpabilidade) estivesse, conspurcada, devido ao uso de álcool ou substâncias alucinógenas, por exemplo. Então, procede-se à constatação do momento antecedente à perda da capacidade, para saber a origem da embriaguez[8], visando assim saber se o agente atuou livre na causa: ou seja, quis ou não fazer o uso das substâncias que lhe podaria a culpabilidade.
Ufa! Prossiga, Felipa!
Não há elasticidade hermenêutica suficiente a possibilitar que a teoria seja aplicada de tal forma (destinada à vítima). Isso porque a sua aplicabilidade restringe-se à conduta do autor. Afinal, se assim fosse aplicável, não haveria mais possibilidade de se punirem condutas praticadas contra pessoas embriagadas.
Lamentável perceber que jamais se propôs desvirtuar a aplicação da teoria, por exemplo, para afastar a punibilidade do roubador que subtrai bem de uma pessoa que alcoolizada deixa o bar e é assaltada, mas tergiversa-se para utilizá-la de modo a justificar o suposto estupro de uma mulher. De certa forma, essa é a manifestação do machismo estrutural e do que se tem feito com o corpo feminino, para dizer o mínimo, há séculos.
Para além do menoscabo às possíveis (e previsíveis) repercussões da contratação do atleta, não é possível deixar de refletir que foi a possibilidade de perda pecuniária que levou o clube e atleta à dita suspensão contratual. Diretamente, não se consideraram a gravidade que circunda o fato imputado, a empatia com a suposta vítima ou a censura pública. Mais uma manifestação do que, de fato, faz girar os moinhos sociais…
Por essa razão, independentemente da culpa do atleta, aproveita-se este espaço para relembrar: pouco importa a embriaguez, pouco importam os trajes, pouco importa a sua autocolocação na presença de um ou mais homens. Nada justifica a vilipendiação de um corpo. Seja sob a égide da normativa italiana ou do regramento penal brasileiro.
Viva o lugar de fala! Nos traz muito!
E faria, ainda, mais um adendo sobre o que tenho lido sobre o tema, a alusão feita à circunstância judicial do artigo 59 do CP, como se o fato da mulher estar bêbada poderia acudir ao agente, in casu Robinho, com fim de diminuir ou não permitir o aumento para além do patamar mínimo, me parece outra interpretação deformada do que quis dizer o legislador.
No caso vertente, em se confirmando o quanto consignado na sentença, o fato da vítima se encontrar ébria não pode militar em favor do autor do fato, ao revés, soaria mais até como maior causa de reproche da sua conduta. Quiçá, assim foi considerado no momento de aquilatar a sanção imposta.
Um mergulho nas lições primordiais de Vitimologia, em Edgar de Moura Bittencort, tem-se exposta seu pensar sobre o que se tem como participação da vítima:
Garantindo-se a liberdade sexual da mulher, pune-se a obtenção de sua posse mediante processo que lhe vicie ou tolha a vontade. (…) A possibilidade de resistência, de forma a que a vontade se manifeste espontaneamente, é o que determina a licitude do ato sexual.[9]
Reverberar o discurso de que, na espécie, a vítima contribuiu para o delito é falacioso e descortina uma visão sexista nesse campo.
O caso Robinho ainda seguirá. À luz dos mais caros valores constitucionais, ele não é ainda culpado. A garantia de juízo justo é direito de qualquer cidadão. E disso não abro mão de defender.
Outrossim, a nefasta a campanha que fustigação moral que lhe impõe os diversos meios de comunicação e as redes sociais, que podem até repercutir no processo penal, não é nada novo, é uma constante que se convive, infelizmente, no âmbito dos processos criminais. Tais hipóteses são comuns em casos envolvendo “celebridades” ou fatos que ganham notoriedade.
Apesar dos valores secularizados no Estado Democrático de Direito garantir a Robinho a sua inocência, até que o apuratório judicial se conclua, não se pode evitar que terceiros opinem, avaliem e até mesmo “julguem” o caso, à luz da própria consciência.
Somente se deve evitar a espetacularização do episódio, que nada tem a acrescer ao ideário de Justiça. Ao revés, poderá até macular o julgamento.
D’outro giro, não há impedimento que Robinho exerça sua profissão, todavia, é de comum sabença que efeitos colaterais advirão das mais variadas matizes. E o atleta, que está entre os grandes do futebol brasileiro, deve saber lidar com isso, em suas vertentes jurídicas e comerciais.
Enfim, as breves longas linhas, singulares e plurais, estão aqui postas para debate.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
[1] Advogado. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Membro da Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD/CBF). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Nacional. Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SE. Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Ex-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA. Presidente do STJD do Judô. Ex-Procurador do STJD do Futebol. Autor de artigos e obras jurídicas sobre Direito Desportivo.
[2] Na qualidade de baiano, não poderia deixar de fazer essa menção a uma das grandes mulheres e heroínas da Independência do Brasil, em 02 de julho de 1823, ocorrida na Bahia. Por vezes, esquecida na historiografia oficial, Maria Felipa foi peça decisiva para evitar um ataque às forças brasileiras. Recomendo a leitura do artigo de André Carbalho, que traz, em lépidas linhas, descrição de quem foi e o que fez. Disponível: < https://www.cms.ba.gov.br/intranet/artigo/6> Acessado em 19 out 2020.
[3] Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho assim o conceituam: Note-se que, em realidade, a amplitude e o alcance do princípio é superior ao da sua gênese histórica iluminista, representando atualmente verdadeira pedra angular da democracia e ferramenta pródiga de legitimação/deslegitimação de toda atividade do poder estatal, seja legiferante, administrativa e/ou judicial. Possibilita, inclusive, a averiguação dos níveis de legitimidade e dos graus de justiça e validade de todo sistema jurídico, principalmente das legislações penais ordinárias – inclusive, pré-constitucionais. (Aplicação da Pena e Garantismo, 2ª ed, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2002, p. 17).
[4] Art. 609-bis. Violenza sessuale.
Chiunque, con violenza o minaccia o mediante abuso di autorità, costringe taluno a compiere o subire atti sessuali è punito con la reclusione da sei a dodici anni.
Alla stessa pena soggiace chi induce taluno a compiere o subire atti sessuali:
1) abusando delle condizioni di inferiorità fisica o psichica della persona offesa al momento del fatto; 2) traendo in inganno la persona offesa per essersi il colpevole sostituito ad altra persona. Nei casi di minore gravità la pena è diminuita in misura non eccedente i due terzi. Texto original disponível em: < https://www.altalex.com/documents/news/2014/10/28/dei-delitti-contro-la-persona> Acessado em 18 out 2020.
[5] A decisão de Segundo grau deverá ocorrer em princípio do mês de dezembro desse ano de 2020. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2020/10/processo-de-robinho-na-italia-sera-retomado-em-dezembro.shtml> Acessado em 18 out 2020.
[6] Inclusive, meu querido amigo Gustavo Lopes, membro e diretor do nosso IBDD, escreveu coluna no Blog Lei em Campo sobre o tema, trilhando as sendas acima destacadas, das quais divirjo. Segue link para conhecimento e leitura. Disponível em: < https://leiemcampo.com.br/robinho-cometeu-estupro/> Acessado em 18 out 2020.
[7] QUEIRÓS, Narcélio. Teoria da “action libera in causa” e outras teses, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1963, p. 14.
[8] O legislador penal, no Código, tanto antes da reforma em 1984, como depois, concentrou nessa expressão as formas de perda da capacidade por uso de substâncias que afetam a capacidade do agente.
[9] BITTENCOURT, Edgar de Moura. Vítima – Vitimologia; A dupla pela delinquente-vítima; participação da vítima no crime; contribuição da jurisprudência brasileira para a nova doutrina, São Paulo: Editora Universitária de Direito Ltda, 121.
[/fusion_builder_column][/fusion_builder_row][/fusion_builder_container]