Por André Sica¹ e Andrés Perez²
Membros Filiados ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Em 27 de maio de 2015 o universo do futebol foi surpreendido com a notícia de que, naquela manhã, na cidade de Zurique, Suíça, agentes estadunidenses do Federal Bureau of Investigation (“FBI”) efetuaram prisões de dirigentes esportivos que aguardavam a realização do 65° Congresso da Fédération Internationalle de Football Association (“FIFA”), em um caso que ficou conhecido mundialmente como FIFA Gate.
Conforme divulgado à época dos fatos, o foco da investigação eram os dirigentes, secretários e funcionários das diversas associações e federações de futebol, que foram acusados da prática dos crimes de fraude, extorsão e lavagem de dinheiro, dentre outros atos relacionados à corrupção e desvio de conduta na gestão do futebol, por meio dos quais empresas efetuavam repasses para obterem benefícios e vantagens indevidas tais como patrocínios, votos no âmbito da FIFA, comercialização de direitos de transmissões das competições, dentre outros.
Na esfera penal, o reflexo dessa operação foi o indiciamento de dezoito pessoas (pessoas vinculadas à FIFA e empresários) e duas empresas que atuam no ramo de esportes e entretenimento.
Nas esferas desportiva e regulamentária da FIFA também houve reflexos desta investigação, que impactaram especialmente nas mudanças que ocorreram nas regras de compliance e nos regulamentos administrativos da entidade máxima do futebol.
Referidas alterações já eram há muito tempo desejadas pelos principais personagens do esporte (clubes, associações/federações e atletas), porém somente após o FIFA Gate foram efetivamente implementadas.
Neste cenário, cumpre destacar que a FIFA possui desde 2012 um Código de Ética, imponente em termos de compliance, bem estruturado e com linguagem acessível, facilitando a compreensão das normas ali previstas. Contudo, até o ano de 2015, este importante código não fazia parte da rotina dos dirigentes e funcionários da entidade, de modo que suas normas não eram aplicadas na prática.
Após o escândalo do FIFA Gate e da pressão sofrida por seus patrocinadores, a FIFA realizou no ano de 2016 uma reforma interna em sua governança, incorporando alterações que foram aprovadas no Congresso Extraordinário realizado em fevereiro de 2016³, dentre as quais destacam-se: (i) mandatos acumulados de presidente e de outros funcionários de alto escalão limitados a 12 anos; (ii) separação das funções políticas das administrativas; (iii) eleição dos membros do Conselho pelas Federações apenas após realização dos background checks dos candidatos; (iv) publicação das receitas do presidente e de todos os integrantes do alto escalão; (v) redução do número de comissões de 26 para 9; e (vi) reforço da presença e participação de mulheres nos Conselhos, passando a ser obrigatório que exista ao menos uma mulher eleita no Conselho por cada Confederação.
Nessa mesma toada, além destas alterações introduzidas pela FIFA em sua governança corporativa, a entidade também aprovou pouco antes, em 2015, diversas alterações voltadas às políticas contratuais, em especial no Regulamento de Transferências da FIFA – FIFA Regulations On The Status and Transfer Of Players (“FIFA RSTP”), no tocante às práticas do TPO (“Third Party Ownership”) e TPI (“Third Party Influence”) nos contratos assinados entre clubes, atletas e intermediários.
Neste ponto, cabe destacar que as preocupações do TPO e TPI surgiram ainda há mais tempo, a partir do Tevez Gate, caso emblemático ocorrido no ano de 2007, na Premier League, quando da transferência do atleta Carlos Tevez do West Ham para o Manchester United.
Naquela ocasião, descobriu-se que a totalidade dos direitos econômicos do referido atleta eram detidos pelas empresas Media Sports Investment (“MSI”) e Just Sports Inc., não cabendo qualquer percentual ao clube cedente, sendo que na negociação ainda foi descoberto que a MSI tinha a prerrogativa de transferir o atleta para qualquer clube, a seu exclusivo critério, nas janelas de transferências.
Como consequência, já no ano de 2008, a FIFA incluiu no FIFA RSTP o art. 18bis que proíbe qualquer interferência de terceiros nas relações contratuais entre os clubes, buscando devolver a autonomia às entidades desportivas, impedindo que terceiros tenham qualquer participação nas tomadas de decisões dos clubes (TPI).
A despeito do avanço regulamentar realizado pela FIFA, naquela ocasião também a essência do que se buscava em relação à redução das operações de TPO não foi combatida. Mesmo com a proibição da interferência de terceiros sobre as decisões tomadas pelos clubes, esses terceiros – muitas vezes empresários ou investidores financeiros – continuaram detentores de direitos econômicos de atletas, o que de certa forma, mantinha suas ingerências sobre as decisões dos clubes de futebol.
Diante deste cenário, a partir do ano de 2013, foi iniciado um movimento pelo então secretário-geral da Union of European Football Associations (“UEFA”) e atual presidente da FIFA, Gianni Infantino, solicitando a extinção do TPO por questões éticas, de integridade e para garantir a efetivação da estabilidade contratual nas relações existentes entre clubes e atletas.
Em 2014, a FIFA iniciou um estudo criando um grupo de trabalho para verificar a viabilidade da extinção do TPO e as consequências desta medida, sendo certo que ao final daquele ano a FIFA decidiu pela proibição do TPO e inclusão do art. 18ter no FIFA RSTP.
Assim, a partir de 2015, concomitante às reações decorrentes do FIFA Gate, a FIFA passou então a atacar frontalmente o TPO, aplicando com rigor as regras do 18ter, a fim de garantir a estabilidade contratual, a garantia de independência e autonomia de clubes e jogadores, a proteção da integridade do futebol, a equidade das competições, e a prevenção de conflitos de interesses e transparência do mercado, considerando que os riscos que interesses especulativos podem gerar.
Nada obstante, alguns pontos decorrentes da interpretação do art. 18ter do FIFA RSTP foram muito criticados, na medida em que os atletas, que são os grandes personagens do espetáculo do futebol, também ficaram proibidos de titularizar seus próprios direitos econômicos. Essa questão passou a ser revista a partir de 2016 nos congressos da FIFA e também nos litígios contratuais levados ao conhecimento da FIFA e da Corte Arbitral do Esporte (“CAS”).
Atendendo aos anseios do mercado do futebol, mas principalmente, dos atletas, em 1° de junho de 2019, foi publicada a nova edição do FIFA RSTP, estabelecendo um novo conceito para o termo “terceiro”, previsto no art. 18ter. Com isso, tornou-se possível que os atletas sejam detentores de direitos econômicos, conforme segue abaixo:
Terceiro: qualquer outra parte que não seja o jogador sendo transferido, os dois clubes transferindo o jogador de um para o outro, ou qualquer clube no qual o jogador tenha sido registrado anteriormente.
Finalmente, em fase de ajuste fino da aplicação de seus novos dispositivos 18bis e 18ter, em 9 de setembro de 2020, buscando garantir maior transparência em suas atividades, a FIFA publicou o primeiro Manual de TPO e TPI[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4] do futebol, com o intuito de informar claramente aos membros da família do futebol e ao público em geral como a entidade tem interpretado os referidos artigos.
Trazendo várias surpresas – e algumas interpretações mais drásticas – em um extenso relatório de aproximadamente duzentas páginas, a FIFA trouxe as principais cláusulas que estão sendo consideradas infrações às normas de TPO e TPI.
Segue abaixo uma síntese dessas cláusulas que, embora estejam sendo aplicadas largamente pelo mercado, são, na opinião da FIFA, irregulares:
Ao contrário do que ocorreu em 2008, quando foi criada a primeira regra do art.18bis no FIFA RSTP, ocasião em que havia muita divergência acerca de como essa norma devia ser interpretada e aplicada, nos dias de hoje tanto a FIFA, quanto os próprios agentes atuantes no mercado do futebol apresentam todas as informações e diretrizes necessárias para que as partes contratantes entendam e possam seguir as normas estabelecidas pela FIFA, viabilizando que as partes saibam onde está o foco de atuação da FIFA, sempre seguindo as políticas de compliance e normas estabelecidas pela própria entidade para o funcionamento do futebol, fato este que em um passado recente, seria algo difícil de se imaginar.
A publicação do Manual de TPO e TPI da FIFA demonstra o compromisso que a entidade está assumindo em demonstrar não apenas a transparência de seus órgãos jurisdicionais, mas também o compromisso em consolidar e construir um pensamento comum a todos os clubes e personagens do futebol, com o claro objetivo de afastar a prática do TPO e do TPI que há muito tempo impede e dificulta o desenvolvimento do futebol.
O grande desafio agora será educar os clubes e incorporar as práticas contrárias ao TPO e TPI, considerando que o mercado está (mal) acostumado a utilizar e fomentar essas práticas diariamente.
De toda forma, um enorme passo já foi dado com as recentes alterações promovidas no FIFA RSTP e com a publicação do Manual de TPO e TPI da FIFA, garantindo aos operadores do mercado do futebol a implementação, ainda que gradativa, dessas novas políticas contratuais, de modo a viabilizar um cenário mais íntegro e voltado ao desenvolvimento do esporte nos próximos anos.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade dos Autores deste texto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS
FIFA Manual on “TPI” and “TPO” in Football Agreements
https://leiemcampo.com.br/fifa-lanca-manual-sobre-tpi-e-tpo-em-negociacoes-do-futebol/
¹ Diretor do IBDD; Sócio do CSMV Advogados, responsável pela área de Esportes, Entretenimento e eSports; Mestrado em Direito Desportivo pela Kings College – Londres (2007); Trabalhou como Associado Internacional no escritório Hammonds & Hammonds, em Londres (2006); Representa clientes nos tribunais arbitrais da FIFA e do CAS; Leciona Direito Desportivo nos cursos de especialização da CBF Academy, ESA e da Federação Paulista de Futebol; Foi recomendado pela Chambers Latin America (2018-2019), pela Best Lawyers (2018), pela Leaders League (2018) e pelo Who’s Who Legal (2018) por sua atuação em direito desportivo e entretenimento.
² Advogado filiado ao IBDD, associado da área de Esportes, Entretenimento e eSports do CSMV Advogados, com atuação voltada ao mercado do futebol, com ênfase em transferências de atletas, intermediários e gerenciamento do Departamento Jurídico de Futebol de clubes. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
³ https://www.fifa.com/who-we-are/news/fifa-congress-approves-landmark-reforms-2767108
[4] https://www.fifa.com/who-we-are/news/fifa-publishes-first-ever-manual-on-third-party-influence-and-ownership
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