Julia Galhego Meirelles¹
Membro filiada ao instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Por meio do presente artigo, pretende-se oferecer ao leitor um panorama breve, porém realista e fiel ao dia a dia da Justiça Desportiva do Futebol e a aplicação do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).
Para iniciar a análise da prática dos tribunais que zelam pelo futebol, especialmente no Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol de São Paulo, onde trabalho, será feito um panorama geral dos grupos de artigos mais usados atualmente.
- Artigos rotineiros para atletas e pessoas ligadas aos clubes
Por ser o futebol um esporte que envolve muito contato físico entre os praticantes, as infrações mais comumente cometidas pelos atletas são aquelas relacionas ao contato físico e à violência.
Nesse sentido, há alguns artigos campeões de aparições nos Tribunais distribuídos pelo Brasil, que são, não necessariamente nesta ordem, os seguintes: Artigo 250, que trata sobre a prática de ato hostil e desleal; artigo 254, que lida com as situações em que há a prática de uma jogada violenta; artigo 254-A, o mais grave entre os aqui mencionados, versa sobre a ocorrência de agressões físicas.
Além desse primeiro grande grupo de artigos citados acima, há outro grande grupo de artigos ordinariamente relacionados a emoções geradas durante a partida, ou seja, situações que decorrem do calor do momento e da adrenalina que toma conta dos envolvidos no esporte.
Aqui temos as infrações relacionadas a discussões, reclamações e ofensas. Atitudes, em regra,enquadradas pela Procuradoria de Justiça Desportiva nos artigos 258 “Assumir qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva” e 243-F “ofender alguém em sua honra, por fato relacionado diretamente ao desporto”.
A prática mostra, ainda, que, por diversas vezes, a incidência desses dois artigos dá-se em concurso com a atitude descrita pelo artigo 258-B do CBJD “Invadir local destinado à equipe de arbitragem, ou o local da partida”. Isso se dá pois, por lógica, no momento de adrenalina e irritação, o infrator não se contém e vai em direção à pessoa que está lhe causando raiva.
Em casos em que a confusão ultrapassa o limite razoável das situações narradas nos artigos acima, há o envolvimento de diversas pessoas e a situação tem uma gravidade elevada. Em tais hipóteses, em regra, é acionado pela Procuradoria o artigo 257, que trata sobre tumulto, conflito e rixa.
É notório que o CBJD contém muitos outros artigos que versam sobre situações de natureza semelhante, sendo outro exemplo de situação extrema o artigo 254-B, que tipifica a conduta de “cuspir em outrem”.
Como tais infrações não possuem nenhuma relação ou limitação gerada pela pandemia, a incidência continua dentro das médias dos anos anteriores, ressalvado, evidentemente, que, no presente ano, com o cancelamento de diversas competições pelo país, os números totais de condenações pelos tipos será reduzido.
- Artigos rotineiros para as Agremiações
As agremiações desportivas são punidas rotineiramente por atrasarem para entrar em campo e causarem o atraso do início e reinício da partida (art. 206 ou 191, I); por não zelarem e manterem as condições adequadas; por não manterem as suas praças desportivas com infraestrutura que garanta que os eventos aconteçam normalmente e com segurança.
Outrossim, em tempos de normalidade, ou seja, exatamente no oposto do que vivemos atualmente por razões sanitárias, as agremiações são apenadas por diversas condutas relacionadas às atitudes de seus torcedores.
Um dos artigos mais relevantes é o artigo 191 do CBJD que trata sobre situações onde deixam de cumprir ou dificultam o cumprimento de: (I) obrigação legal; (II) deliberação, resolução, determinação exigência, requisição ou qualquer outro ato normativo ou administrativo do CNE ou de entidade de administração do desporto (III) de regulamento, geral ou especial, de competições.
Conforme explica Dr. Marcelo Jucá, ex-Presidente do TJD/RJ, o inciso primeiro do artigo 191 trata diretamente do descumprimento de uma obrigação legal e os principais exemplos de obrigações legais são a Lei nº 9615/98 (Lei Pelé) e o Estatuto do Torcedor – Lei nº 10.671/2013. Ademais, frisa que condenações em outras esferas, seja cível, penal ou administrativa, não geram a incidência de bis in idem: “Assim, sendo violado um ordenamento legal, a apreciação obrigatoriamente, deve se dar pela justiça desportiva, independentemente da competência de outras esferas jurisdicionais, desde que não haja conflito de normas”.²
O inciso II do artigo 191 versa sobre a necessidade de seguir os atos normativos e administrativos do CNE e das Entidades de Administração do Desporto (EAD).
Atualmente, segundo o Procurador Geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) Dr. Ronaldo Piacente, este deve ser um dos dispositivos usados nos casos em que não estão sendo observados os protocolos criados em razão da COVID-19:
“A Procuradoria do STJD recebeu inúmeras notícias de infrações encaminhadas pela CBF, envolvendo clubes, atletas e dirigentes, por descumprimento das normas e diretrizes de segurança para evitar a contaminação do COVID-19. São vários relatos de descumprimento, como: não utilização de máscaras, utilização de máscaras de forma irregular, troca de camisas, aglomerações na comemoração do gol, entre outras. Na tarde de ontem a Procuradoria se reuniu e chegaram ao consenso da existência de infração disciplinar na forma do artigo 191, incisos I e II do CBJD e do artigo 2º inciso XI, da Lei 9.615/98, porque as Diretrizes de segurança foram aderidas pelos clubes e faz parte integrante dos Regulamentos das Competições.”³
O último inciso deste artigo trata do descumprimento dos regulamentos gerais e especiais de competição. Cada EAD, seja a nacional ou as estaduais, possui seu próprio Regulamento Geral de Competições (RGC) e dentro desta EAD cada competição organizada possui seu Regulamento Específico de Competições (REC).
Uma situação peculiar de aplicação do artigo 191, inciso III, é aquela relacionada aos ingressos para as partidas de competições organizadas pela CBF. O artigo 29 do RGC proíbe que os clubes realizem partidas profissionais de portões abertos, ou seja, sem a cobrança de ingresso. Portanto, caso algum clube resolva não acatar esta regra, estaria cometendo uma infração ao artigo 191, III do CBJD.
Outras situações interessantes de aplicação deste inciso, mas que não estão acontecendo no presente ano em razão da falta de torcida nos estádios, são os casos em que o clube mandante não dá ao clube visitante o direito de adquirir a carga de ingressos de até 10% da capacidade do estádio, ferindo o artigo 87 do RGC, situação está que já gerou a punição de grandes clubes como o Cruzeiro de Minas Gerais no STJD[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4] e o Atlhético Paranaense no TJD/PR.[5]
Outro caso rotineiro é o do clube mandante que oferece aos torcedores visitantes ingressos com o valor acima do permitido, eis que o artigo 86 do RGC obriga que os ingressos para a torcida visitante devem ter o mesmo valor do setor equivalente para a torcida local.[6]
No entanto, não resta dúvida a qualquer operador que milite nesta seara, que o artigo recordista nas punições a agremiações é o artigo 206, atraso. Logo na sequência temos o artigo 213 do CBJD. Tal dispositivo abrange três situações que são práticas comuns nos estádios brasileiros, sendo elas: (I) desordem na praça de desporto; (II) invasão do campo ou local da disputa do evento; (III) lançamento de objetos no campo ou local da disputa do evento esportivo.
A desordem na praça desportiva é uma das infrações que mais ganha notoriedade quando acontece, já que, dependendo do nível de brutalidade, pode chocar todos aqueles que assistem às cenas.
Um dos
casos de desordem de maior repercussão ficou conhecido como “batalha campal” e
se deu no estádio Couto Pereira na última rodada do Brasileirão de 2009,
ocasião estaestá
em que o Coritiba foi rebaixado para a Série B. Naquela ocasião, por infração
ao artigo 213 entre outros, em primeira instância a 2ª Comissão Disciplinar
multou o clube em R$610.000,00 e perda de 30 mandos de campo, porém,
posteriormente, o Pleno do STJD diminuiu a multa para R$100.000,00 e diminuindo
as perdas de mando para 10 jogos. Tal caso tornou-se tão emblemático que serve,
até hoje, muitas vezes de parâmetro para outras confusões.[7]
Não há como deixar de pontuar, ainda, que, ao longo dos anos, as práticas supramencionadas vêm cada vez menos ocupando as manchetes de jornais e as pautas dos programas esportivos na televisão. Isso se dá muito em razão do grande trabalho educativo que a Justiça Desportiva tem feito e cobrado de agremiações.
Inversamente ao que vem acontecendo com o artigo 213, nos últimos anos, passou a ter destaque nos julgamentos, o artigo 243-G, que trata sobre “praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito e razão de origem étnica, raça, cor, sexo, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.
Válido relatar, nesse ponto, que o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) no último ano emitiu a Recomendação 01/2019[8] na qual firmou o entendimento que os casos de atos discriminatórios em razão de orientação sexual devem ser enquadrados no artigo 243-G.
O aumento dos casos de condenações por atos discriminatórios, que em um primeiro momento pode parecer uma situação ruim e triste, na verdade é um grande avanço, pois, finalmente, o futebol e suas entidades de organização resolveram se posicionar contra as manifestações preconceituosas tão comuns em sua história, visando assim transformar o futebol em um esporte mais inclusivo e sem tolerância com preconceitos.
- Artigos relacionados à manipulação de resultados
Com o aumento e a modernização das investigações, outra conduta que vem ascendendo e ganhando notoriedade nos tribunais desportivos é a manipulação de resultados. Esta conduta, que é tão lesiva ao Esporte, vem se tornando cada vez mais comum e repetitiva.
Tentando coibir e punir os envolvidos, alguns artigos do CBJD estão sendo mais usados, são eles: (i) Artigo 242 “Dar ou prometer vantagem indevida a membro de entidade desportiva, dirigente, técnico atleta ou qualquer pessoa natural mencionada no art. 1º,VI, para que, de qualquer modo, influencie o resultado da partida”; artigo 243 “Atuar, deliberadamente, de modo prejudicial à equipe que defende”; artigo 243-A “Atuar, de forma contrária à ética desportiva, com fim de influenciar o resultado da partida”. Válida a leitura mais detalhada, ainda, dos artigos 237 a 243-A do CBJD.
Outrossim, ademais do quanto estabelecido no Código Brasileiro de Justiça Desportiva, há de se ter em vista que a normativa das Entidades de Administração do Desporto, dentre as quais a FIFA, a CBF e a Federação Paulista de Futebol, também preveem mecanismos de prevenção à manipulação de resultados. A previsão normativa do Código Disciplinar da FIFA prevê em si, como pena máxima, a gravíssima sanção de banimento vitalício do esporte. O dispositivo, aliás, já foi utilizado pelo STJD do Futebol em processamentos nos quais se apurou manipulação de resultados[9].
Face à relevância do tema, como se demonstrou, há artigos relacionados à manipulação de resultados direcionados a tipificar a conduta de cada um dos envolvidos na prática desportiva. Espera-se que tal mal seja excluído do esporte brasileiro, contudo a experiência internacional mostra que a tendência é que o assunto venha a ganhar cada vez mais espaço.
- Conclusão
O breve
panorama apresentado no texto permitiu chegar-se à conclusão de que mesmo sem alterações nos códigos
disciplinares, situações alheias ao esporte, como é
o caso da pandemia causada pelo COVID-19, podem
influenciar até mesmo nas sanções aplicadas pelos Tribunais de Justiça Desportiva, alterando assim suas rotinas e costumes.……….
* Importante destacar que o conteúdo do
presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto
Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora
desse texto.
¹ Advogada. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Especialista em Gestão do Esporte e Direito Desportivo. Gestora de Futebol pela CBF. Ex-Procuradora do STJD do Futebol. Advogada da Federação Paulista de Futebol.
² BARROS, Marcelo Jucá. Justiça Desportiva e suas decisões: Estudo de casos. São Paulo: Quartier Latin, 2017.
³ CBF denuncia Clubes por não cumprimento do protocolo da covid-19. Disponível em: < https://esporte.ig.com.br/futebol/2020-09-17/cbf-denuncia-clubes-por-nao-cumprimento-de-protocolo-da-covid-19.html > Acesso em: 23/11/2020.
[4] Cruzeiro é multado por polêmica de ingressos. Disponível em: < https://esporte.band.uol.com.br/futebol/noticia/100000723859/cruzeiro-e-multado-por-polemica-de-ingressos.html&t=cruzeiro-e-multado-por-polemica-de-ingressos> Acesso em: 23/11/2020.
[5] TDJ- PR determina que o Atlético-PR
[6] Vitória denunciado no STJD por cobrar ingresso mais caro de visitantes. Disponível em: < https://www.galaticosonline.com/noticia/14/09/2010/9401,vitoria-denunciado-no-stjd-por-cobrar-ingresso-mais-caro-de-visitantes.html> Acesso em: 23/11/2020.
[7] Batalha no Couto Pereira em 2009 será parâmetro de análise para caso Vasco. Disponível em: < https://globoesporte.globo.com/blogs/bastidores-fc/noticia/batalha-no-couto-pereira-em-2009-sera-parametro-de-analise-para-caso-do-vasco.ghtml > Acesso em: 23/11/2020.
[8] Recomendação STJD – Disponível em: < https://www.stjd.org.br/noticias/stjd-emite-recomendacao-contra-homofobia > Acesso em: 18.11.2020.
[9] https://www.stjd.org.br/resultados-julgamento/noticias/tentativa-de-manipulacao-de-resultado-em-pauta
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