Felipe Legrazie Ezabella¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD
Em breves palavras e sem a necessária profundidade, pretendo nesse conceituado espaço disponibilizado pelo IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo retomar a discussão que há tempo venho travando em ambientes acadêmicos sobre a necessidade de repensarmos o modelo da Justiça Desportiva brasileira.
Não há dúvidas que a Constituição de 1988, ao tratar da Justiça Desportiva pela primeira vez nos parágrafos 1º e 2º do artigo 217², elevou-a a um patamar nunca antes experimentado, criando condições para uma nova era esportiva no Brasil, longe da ingerência estatal que, até então, pelo momento político que vivia o país, era comum.
Nas palavras de Alvaro Melo Filho, o principal arquiteto do artigo 217 da Constituição, “o legislador constituinte não copiou figurinos do desporto constitucional alienígena, inobstante reconheça-se a utilidade das experiências alheias, e, sem devaneios ou casuísmos, modelou as realidades reais do desporto brasileiro, com o cuidado de não torná-lo uma utopia abominável, traduzindo com sensibilidade, na nova Constituição, diretrizes peculiares e valores próprios do desporto nacional premido, de um lado, pelas gritantes desigualdades sociais e regionais, e, de outro, pelos desafios da modernização e do progresso.”³
Assim, a partir da Constituição de 1988 instituiu-se a Justiça Desportiva, regulada em lei, como temos hoje, competente, preliminarmente, para julgar ações relativas à disciplina e às competições desportivas.
Em rápida comparação, a Justiça Desportiva é mais rápida, mais especializada e menos custosa que a Justiça Comum, ficando evidente os seus benefícios para a prática e o desenvolvimento do esporte. Ainda, importante destacar que a Constituição não impede o acesso ao Poder Judiciário, e nem poderia pelo que dispõe seu próprio artigo 5º, inciso XXXV[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]. Apenas obriga as partes a exaurirem antes as instâncias da Justiça Desportiva, buscando assim uma solução, uma pacificação, dentro do ambiente desportivo[5].
Porém, passados mais de 30 anos da instituição desse modelo constitucionalizado de Justiça Desportiva, já passou da hora de voltarmos os olhos, e o estudo, para a racionalização e a profissionalização da Justiça Desportiva.
Não há mais sentido lógico ou econômico em manter verdadeiras “cortes desportivas”, com imensas e obrigatórias estruturas, envolvendo dezenas de auditores e procuradores atuando “probono” para dirimir, em muitas modalidades, pouquíssimos casos ao ano.
Vejam que quando pensamos no futebol há sempre um grande interesse na participação, proporcional aos holofotes e aos interesses econômicos, que não se revela sequer proporcional quando lidamos com outras modalidades, olímpicas ou não.
Mais recentemente até a questão envolvendo direitos trabalhistas, sempre uma área mais polêmica e sensível, tem evoluído e permitido, em algumas hipóteses, a utilização de arbitragem para a solução de conflitos entre clubes e atletas/trabalhadores. Vimos isso com a recente reforma trabalhista, Lei nº 13.467/17, com a inclusão do artigo 507-A[6] na CLT.
Assim tenho escrito e defendido em fóruns especializados, junto é verdade de outros ilustres e renomados colegas, a necessidade de evoluirmos o modelo de Justiça Desportiva para um modelo de sistema arbitral (Lei 9.307/96).
São diversos os motivos e vantagens que, num primeiro momento e sem ter a presunção de ter a certeza de ser esse um sistema infalível, podemos elencar.
O primeiro deles é a aceitação ampla e irrestrita do sistema de arbitragem no mundo esportivo, sendo o mesmo utilizado tanto em competições internacionais, como nos jogos olímpicos, em casos de dopagem e de recursos contra decisões proferidas pelos órgãos internos das entidades internacionais (vide sistema TAS/CAS – Tribunal Arbitral du Sport / Court of Arbitration for Sport).[7]
Segundo é que no Brasil, nas palavras de Carlos Alberto Carmona, “foram vencidos os velhos preconceitos contra a arbitragem. O STJ compreendeu rapidamente que o Brasil superou com galhardia a fase histórica dos meios “alternativos” de solução de controvérsias para subir um grau na escalada cívica da segurança jurídica e passar a tratar a arbitragem, a mediação e a conciliação como meios “adequados” de solução de conflitos.”[8]
O Supremo Tribunal Federal confirmou em 2001 a constitucionalidade da Lei 9.307/96 (SE 5206), tendo certo que a jurisdição arbitral no Brasil refere-se ao julgamento de conflitos envolvendo direitos patrimoniais disponíveis.[9]
E o nosso próprio sistema arbitral prevê, para a segurança daqueles que ainda desconhecem o instituto, algumas hipóteses nas quais o Poder Judiciário poderá ser chamado a intervir, desde que a ação de nulidade seja proposta num prazo decadencial de 90 (noventa) dias após a comunicação da decisão final.[10]
Mais recente ainda temos visto funcionar com muita eficiência algumas Câmaras Arbitrais voltadas exclusivamente a julgar matéria desportiva. Logicamente que, por conta da norma constitucional e da vedação legal prevista no artigo 90-C[11] da Lei Pelé (9.615/98), não se tem analisado questões relativas à disciplina ou à competição desportiva, porém, os convênios de algumas dessas entidades firmados com o Comitê Olímpico Brasileiro[12] e com a Confederação Brasileira de Futebol tem feito crescer o interesse e a utilização do instituto, tornando-o mais conhecido e acessível financeiramente às partes[13].
Terceiro ponto importante é que o sistema arbitral resolveria um problema hoje em discussão, qual seja, a possibilidade do Poder Judiciário, após o prazo constitucional ou o término do processo na Justiça Desportiva, enfrentar o mérito da decisão. Isso porque a própria Lei de Arbitragem veda expressamente que o Poder Judiciário profira outra decisão de mérito, devendo apenas anular o laudo arbitral e determinar que se dê outra em substituição.
Quarto é que o sistema arbitral resolveria também uma questão que, recentemente tem trazido insegurança jurídica às partes litigantes da Justiça Desportiva, qual seja, quando se esgota a jurisdição da Justiça Desportiva regulada em lei?
Isso porque alguns clubes e atletas apenados pela última instância da Justiça Desportiva brasileira (julgamento definitivo pelo STJD da modalidade) têm procurado o Poder Judiciário. E existe uma corrente doutrinária que defende que, em breve síntese, as instâncias esportivas não teriam se esgotado quando do julgamento pelo STJD da modalidade, na medida em que, após a decisão final da Justiça Desportiva brasileira regulada em lei, ainda caberia recurso ao Tribunal Arbitral do Esporte (TAS/CAS)[14].
Ainda com relação ao esgotamento da Justiça Desportiva, o advogado militante se vê em grande dilema quando do julgamento de uma causa perante o STJD, uma vez que a Constituição Federal prevê um “recurso” ao Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, existe a possibilidade de um recurso a um Tribunal Arbitral internacional. Qual caminho a seguir?
Obviamente que aqui está a se pensar e discutir mudanças “macro” e profundas em nosso sistema. Além de necessárias mudanças legislativas (Constituição e leis), que sabemos que não são fáceis, há a necessidade de mudança nos Estatutos das entidades, no desenvolvimento de cláusulas compromissórias, regimentos e regulamentos de Tribunais Arbitrais em substituição ao Código Brasileiro de Justiça Desportiva, enfim, a modificação de uma série instrumentos legais.
Passados quase 30 anos desse grande marco da evolução da Justiça Desportiva, chegou a hora de pensarmos e discutirmos um novo modelo, mais adaptado à internacionalização do esporte de alto rendimento e que continue a privilegiar as virtudes dessa justiça, quais sejam: a rapidez, a especificidade e a segurança das competições esportivas.
Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor desse texto.
¹ Advogado, Bacharel, Mestre e Doutor pela Universidade de São Paulo; Sócio fundador e Conselheiro do IBDD.
² § 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
³ O Desporto na Ordem Jurídico-constitucional Brasileira. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 38.
[4] Artigo 5º XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
[5] Justiça desportiva. Clube eliminado de temporada não demonstrou esgotamento das vias administrativas (art. 217 § 1º CRFB). Falta de interesse de agir. Processo corretamente extinto sem julgamento do mérito Recurso improvido.
(Relator(a): Luiz Antonio Costa; Comarca: Bauru; Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 10/03/2015; Data de registro: 11/03/2015)
Anulatória de ato jurídico. Pedido de revisão de desclassificação de equipe de futebol amador juvenil em campeonato desportivo. Sentença de extinção do processo sem resolução do mérito, por impossibilidade jurídica do pedido. Inconformismo da autora. Não acolhimento. Competência da Justiça comum adstrita ao julgamento das questões que envolvem o desporto somente após esgotada fase prévia desencadeada na justiça desportiva. Mitigação do livre acesso à justiça e da garantia da inafastabilidade do Poder Judiciário permitida por força de interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais (art. 5º, XXXV e LV, e art. 217, parágrafos, CF/88). Sentença de extinção sem resolução de mérito mantida, deslocado o fundamento à ausência de interesse processual. Recurso desprovido.
(Relator(a): Piva Rodrigues; Comarca: Limeira; Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 14/02/2012; Data de registro: 11/03/2012; Outros números: 5232374000)
[6] Art. 507-A. Nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem, desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa, nos termos previstos na Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.
[8] “Segurança jurídica e o papel institucional do STJ” in O Estado de São Paulo, 19 de junho de 2012.
[9] Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
[10] Art. 32. É nula a sentença arbitral se:
I – for nula a convenção de arbitragem;
II – emanou de quem não podia ser árbitro;
III – não contiver os requisitos do art. 26 desta Lei;
IV – for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem;
VI – comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva;
VII – proferida fora do prazo, respeitado o disposto no art. 12, inciso III, desta Lei; e
VIII – forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta Lei.
Art. 33. A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta Lei.
§ 1o A demanda para a declaração de nulidade da sentença arbitral, parcial ou final, seguirá as regras do procedimento comum, previstas na Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), e deverá ser proposta no prazo de até 90 (noventa) dias após o recebimento da notificação da respectiva sentença, parcial ou final, ou da decisão do pedido de esclarecimentos.
§ 2o A sentença que julgar procedente o pedido declarará a nulidade da sentença arbitral, nos casos do art. 32, e determinará, se for o caso, que o árbitro ou o tribunal profira nova sentença arbitral.
§ 3o A declaração de nulidade da sentença arbitral também poderá ser arguida mediante impugnação, conforme o art. 475-L e seguintes da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), se houver execução judicial. § 4o A parte interessada poderá ingressar em juízo para requerer a prolação de sentença arbitral complementar, se o árbitro não decidir todos os pedidos submetidos à arbitragem.
[11] Art. 90-C. As partes interessadas poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, vedada a apreciação de matéria referente à disciplina e à competição desportiva. (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).
Parágrafo único. A arbitragem deverá estar prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho e só poderá ser instituída após a concordância expressa de ambas as partes, mediante cláusula compromissória ou compromisso arbitral. (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).
[12]https://www.cob.org.br/pt/galerias/noticias/cbma–atuara-como-camara-arbitral-do-comite-olimpico-do-brasil/
[13] http://cbma.com.br/regulamento_esportiva
[14] Esse entendimento dependeria da previsão expressa de recurso ao TAS/CAS no estatuto das entidades. Há ainda quem entenda que tal recurso estaria previsto nos artigos 1º, §1º e 3º, III da Lei Pelé, o que discordamos, na medida em que tais artigos apenas recepcionam as normas internacionais de organização e disputa emanadas das entidades (federações) internacionais de cada modalidade:
Art. 1º O desporto brasileiro abrange práticas formais e não-formais e obedece às normas gerais desta Lei, inspirado nos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito.
§ 1º A prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto.
Art. 3º O desporto pode ser reconhecido em qualquer das seguintes manifestações:
III – desporto de rendimento, praticado segundo normas gerais desta Lei e regras de prática desportiva, nacionais e internacionais, com a finalidade de obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações.
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