O MECANISMO DE SOLIDARIEDADE NA TROCA DE ATLETAS

Eduardo Kley Cavalieri¹

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD

Não há fã de futebol que não tenha ouvido falar no mecanismo de solidariedade, que dá aos clubes de futebol o direito ao recebimento de até 5% dos valores pagos em transferências de jogadores formados pelo clube. Antevendo os benefícios financeiros, todo o torcedor se anima ao saber de uma grande transferência de um jogador formado em seu clube do coração. Em 2017, por exemplo, a transferência de Neymar ao PSG rendeu ao Santos incríveis R$ 34 milhões, correspondentes a 4% do valor total da operação de EUR 220 milhões (R$ 846 milhões)².

Contudo, o que ocorreria com o mecanismo de solidariedade em caso de troca de atletas? Isto é, quando a transferência do atleta se desse, não mediante o recebimento de compensação financeira, mas mediante o recebimento de um outro atleta.

Para respondermos a tal indagação, devemos incialmente fazer distinção entre o mecanismo de solidariedade FIFA e o mecanismo de solidariedade nacional. Ambos funcionam de maneira análoga, com o intuito de recompensar clubes formadores de atletas, mas têm diferentes bases legais com distinções que impactam diretamente no presente estudo.

O mecanismo de solidariedade da FIFA – aplicável em transferências internacionais ou em transferências dentre clubes de uma mesma federação quando o clube formador pertença à federação distinta – está previsto no artigo 21 do FIFA Regulation on the Status and Transfer of Players (FIFA RSTP), com a seguinte redação:

21. Solidarity mechanism

If a professional is transferred before the expiry of his contract, any club that has contributed to his education and training shall receive a proportion of the compensation paid to his former club (solidarity contribution). The provisions concerning solidarity contributions are set out in Annexe 5 of these regulations.”

O referido dispositivo estabelece o mecanismo de solidariedade em linhas gerais, tendo seu funcionamento detalhado no Anexo 5 do FIFA RSTP. No presente, é importante replicarmos e analisarmos a redação do trecho inicial do artigo 1.1. do Anexo 5 do FIFA RSTP:

1. Solidarity contribution

  1. If a professional moves during the course of a contract, 5% of any compensation paid within the scope of this transfer, not including training compensation paid to his former club, shall be deducted from the total amount of this compensation and distributed by the new club as a solidarity contribution to the club(s) involved in his training and education over the years.”

Em tradução livre:

1. Contribuição de Solidariedade

  1. Caso um profissional se transfira durante a vigência de um contrato, 5% de qualquer compensação paga em função desta transferência, excluindo-se a indenização por formação paga a seu antigo clube, deverá ser deduzido do montante total desta compensação e distribuído pelo novo clube como contribuição de solidariedade ao(s) clube(s) envolvido(s) no treinamento e formação ao longo dos anos.”

Observa-se que o regramento FIFA dá aplicação bastante abrangente ao seu mecanismo de solidariedade. Isto porque não só não há qualquer indício de que a contribuição de solidariedade deva ser limitada a casos em que haja compensação financeira, mas também porque traz expressamente que a contribuição deverá ser calculada sobre “qualquer compensação” paga em uma transferência.

Portanto, a redação do regramento indica que o mecanismo de solidariedade FIFA deverá ser aplicado mesmo em caso de troca de atletas. Inclusive, este tema já foi analisado pelos tribunais desportivos, que estabeleceram jurisprudência favorável a tal entendimento.

A primeira decisão sobre o tema é de 2007 no caso nº 17630 da FIFA Dispute Resolution Chamber (FIFA DRC)³, em que o painel de árbitros decidiu favoravelmente a um clube formador que reclamava o recebimento da contribuição de solidariedade em um caso de troca de jogadores. O entendimento do painel foi de que o recebimento de direitos federativos de outro atleta configura compensação paga pela transferência, e que esta compensação implicaria indiretamente em valor econômico. A inexistência de compensação financeira direta, indicaria meramente que os clubes dão valor igual a seus atletas, mas não que eles não possuam valor.

Superada a questão da aplicabilidade do mecanismo de solidariedade, restaria ainda a definição do quantum da contribuição de solidariedade. Uma vez que a transferência não possui valor financeiro expresso, o cálculo da contribuição de solidariedade mostra-se um desafio à parte, sendo necessária a realização de uma estimativa do valor da operação. Neste caso, o painel utilizou o próprio contrato de transferência para realizar tal estimativa, visto que havia cláusula estipulando indenização em caso de não aprovação nos exames médicos de um dos atletas envolvidos, impedindo sua transferência ao novo clube. Os árbitros entenderam que esta multa representava adequadamente o acordo das partes no tocante ao valor da operação, sobre o qual foi calculada a contribuição de solidariedade.

Desde então, tivemos outras decisões do FIFA DRC que confirmaram tal entendimento, dentre as quais destacam-se as de números: 38956[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4], 58351b[5], 19442a[6], 19442b[7], 812019[8], e 0516200-e. Nesta mesma linha, tivemos também duas decisões do CAS publicadas que confirmam o entendimento de aplicabilidade do mecanismo de solidariedade em trocas de jogadores: CAS 2012/A/2929[9] e CAS 2016/A/4821[10].

Importante ressaltar ainda que não há método fixo para a estimativa do valor de cada operação, o que deverá ser estabelecido caso a caso. Ressalta-se também que, em caso de cessão mútua e prima facie gratuita de atletas entre dois mesmos clubes, realizada através de contratos aparentemente independentes, será ônus do reclamante demonstrar que ambas as transferências são conexas, tendo ocorrido efetiva troca de jogadores ensejando a aplicação do mecanismo de solidariedade – sobre o tema, ver a decisão do FIFA DRC de número 06181269-e[11].

Em suma, temos que o mecanismo de solidariedade FIFA é aplicável em casos de troca de jogadores, tratando-se de entendimento consolidado nos tribunais desportivos. No entanto, o mesmo não pode ser dito sobre o mecanismo de solidariedade nacional, cuja aplicação em trocas de jogadores, no conhecimento deste autor, ainda não foi enfrentada pelos tribunais, seja pela Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) da CBF ou pela justiça comum.

Assim, cumpre analisarmos o mecanismo de solidariedade nacional, que encontra previsão tanto na legislação comum como no regramento da CBF. A Lei Pelé dispõe sobre o tema no caput de seu artigo 29-A, como segue:

Art. 29-A.  Sempre que ocorrer transferência nacional, definitiva ou temporária, de atleta profissional, até 5% (cinco por cento) do valor pago pela nova entidade de prática desportiva serão obrigatoriamente distribuídos entre as entidades de práticas desportivas que contribuíram para a formação do atleta, na proporção de:”

Já a CBF, dispõe sobre o tema no artigo 58 de seu Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol (RNRT-CBF):

Seção XI – Mecanismo de Solidariedade

Art. 58 – Se um atleta profissional transferir-se de forma onerosa em caráter definitivo ou temporário de um clube para outro antes de findo seu contrato especial de trabalho desportivo, os clubes que deram suporte à sua formação e educação receberão uma parte da indenização a título de contribuição de solidariedade, distribuída proporcionalmente ao número de anos em que o atleta esteve inscrito em cada um deles ao longo das temporadas.”

De pronto, observa-se que as redações de ambos os dispositivos possuem grande similaridade com o disposto no artigo 21 do FIFA RSTP. Os três estabelecem que o mecanismo de solidariedade será aplicável em caso de transferência de atleta profissional antes de findo seu contrato de trabalho, mas possuem algumas distinções interessantes.

Na redação da Lei Pelé, observamos que a contribuição de solidariedade é estabelecida como um percentual sobre o “valor pago” na transferência, enquanto o FIFA RSTP o estabelece como parcela sobre a “compensação paga” na transferência. Em princípio, a redação da Lei Pelé parece ter viés levemente mais restritivo. Isto porque a expressão “valor” possui forte relação com preço, e, portanto, pode ser interpretada como pressuposição do pagamento em valores financeiros; ao passo que “compensação” possui caráter mais amplo. Por outro lado, a expressão “valor” pode ser também interpretada como mera referência à forma de cálculo do mecanismo de solidariedade, equivalendo a um percentual sobre o valor da operação, independentemente de sua forma de composição, seja ele com valores financeiros ou outros benefícios.

Na redação do regramento da CBF, por sua vez, observamos um paralelismo mais forte com o regramento da FIFA. Enquanto a FIFA fala em “compensação”, a CBF fala em “indenização”, que possuem significados bastante aproximados e mais abrangentes. A redação do regramento da CBF também fala em aplicação em transferências onerosas, o que não interfere no presente estudo, uma vez que para ser oneroso basta ter ônus, não necessariamente financeiro.

Por fim, o que parece ser a principal distinção entre a base legal do mecanismo de solidariedade nacional e a base legal do mecanismo de solidariedade FIFA, é a ausência na legislação e regramento pátrio de disposição como contido no Anexo 5 do FIFA RSTP, que dispõe expressamente que o mecanismo de solidariedade incidirá sobre “qualquer compensação paga” em uma transferência.

Ainda assim, não parece haver empecilhos para a realização de uma interpretação ampla também do mecanismo de solidariedade nacional, entendendo-se por sua aplicação em transferências cujas indenizações não sejam de caráter financeiro. Isto porque as redações de Lei Pelé e RNRT-CBF não parecem vedar tal interpretação, e, em especial, porque devemos interpretar estes dispositivos de acordo com sua ratio legis: estimular a formação de jogadores (mediante a criação de estímulos financeiros).

Nesta linha, não seria adequada a não aplicação do mecanismo de solidariedade em transferências que envolvam indenização não financeira, pois esta não pode ser equiparada a uma transferência não onerosa. A troca de jogadores e a compra de um jogador são situações virtualmente idênticas, cuja distinção reside exclusivamente na natureza da compensação recebida por uma das partes. A operação de troca de atletas invariavelmente possui valor, mesmo que (financeiramente) indireto.

Desta forma, a não incidência de contribuição de solidariedade nestes casos constituiria verdadeira burla ao mecanismo de solidariedade, permitindo-se a realização de transferências onerosas sem que os clubes formadores tenham garantido o seu direito à participação no valor da operação, contrariando a ratio legis da norma. O que não deve ser permitido.

Contudo, será apenas mediante o enfrentamento desta tese pelos tribunais que saberemos efetivamente se o mecanismo de solidariedade nacional é aplicável na troca de jogadores. Ainda assim, a própria CBF poderia se adiantar à questão, promovendo alteração em seu regramento a fim de dar maior clareza à aplicação do mecanismo de solidariedade nacional e promovendo maior segurança jurídica, não só em situações de troca de jogadores, mas em casos que envolvam compensação de qualquer outra natureza.

Todavia, são temas para os próximos capítulos…

* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do autor deste texto.


¹ Membro filiado ao IBDD; Advogado responsável pela área de Direito Desportivo do RWGP Advogados; Mestre em Direito Desportivo Internacional pelo ISDE e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

² https://www.torcedores.com/noticias/2018/01/saiba-quanto-o-santos-ganhou-com-o-mecanismo-de-solidariedade-da-fifa-nos-ultimos-anos

³ https://resources.fifa.com/image/upload/17630-818196.pdf?cloudid=xwpkrgvdcur5oknysaby

[4] https://resources.fifa.com/image/upload/38956.pdf?cloudid=fglty8nfxya6dgvwhjbd

[5] https://resources.fifa.com/image/upload/58351b-1014532.pdf?cloudid=brei4kngp5y6ngtqpisf

[6] https://resources.fifa.com/image/upload/19442a-1091677.pdf?cloudid=ir9lfr5z41lwjicyidv4

[7] https://resources.fifa.com/image/upload/19442b-1091692.pdf?cloudid=vygczlflb9sc5n6wlwko

[8] https://resources.fifa.com/image/upload/812019-2055644.pdf?cloudid=th3hdauthzsaxefq6uc3

[9] http://jurisprudence.tas-cas.org/Shared%20Documents/2929.pdf

[10] http://jurisprudence.tas-cas.org/Shared%20Documents/4821.pdf

[11] https://resources.fifa.com/image/upload/06181269-e-2999456.pdf?cloudid=j4xcubhvbacizuglyb8y

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