O QUE A ENGLISH PREMIER LEAGUE E O FORMATO DOS SEUS DIREITOS DE TRANSMISSÃO PODEM ENSINAR AO FUTEBOL BRASILEIRO

Fernanda Chamusca Paes¹

Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

O documentário “Sunderland até morrer”, destaque na plataforma de streaming Netflix, traz a história sobre a luta do clube de futebol Sunderland para voltar à divisão de elite do futebol inglês depois do rebaixamento na temporada 2016-2017. Que se evidencie: voltar à elite, numa produção que muito se explorou em termos de reinvenção, competitividade e vontade de vencer. Mas o que chamou atenção foi a estrutura de um clube da segunda divisão do futebol inglês. Um estádio invejável, um jogo tático diferenciado, um futebol de um clube relegado que está acima da maioria dos clubes da primeira divisão do futebol brasileiro.  

O foco do presente artigo, entretanto, não é falar sobre as ligas inglesas de futebol. O interesse desse artigo é evidenciar a grandeza da liga de futebol mais importante da Inglaterra e do mundo: a PREMIER LEAGUE.

Sob o comando da primeira divisão do futebol inglês, segundo o relatório financeiro anual da Deloitte sobre o futebol no mundo, a PREMIER LEAGUE segue como o campeonato mais rentável e valioso no mundo do futebol, arrecadando aproximadamente EUR 5,845 bilhões (cinco bilhões e oitocentos e quarenta e cinco milhões de euros) por temporada, e mantém 8 (oito) dos seus clubes no TOP 20 do futebol mundial. E um detalhe chamou atenção na análise do relatório sobre as formas de receitas dessas entidades desportivas: “Os clubes da PREMIER LEAGUE são particularmente impactados quando os direitos de transmissão são retirados. Se esses clubes ingleses classificados como TOP 30 neste presente estudo fossem ranqueados apenas pelas suas fontes de receita comercial, 7 (sete) dos 11 (onze) clubes terminariam em posições bem menos evidenciadas”.

Falar sobre os direitos de transmissão da PREMIER LEAGUE é falar sobre um produto que deu certo. De logo cabível considerar que autonomia e independência da instituição ser uma liga gera consequências mais positivas quanto a coletivização e organização desses direitos, mas o segredo do processo bem feito não reside apenas na constituição de uma liga ou na centralização da negociação. A PREMIER LEAGUE se tornou a maior liga nacional de futebol do mundo por aprimorar, explorar e investir no seu produto nacionalmente e internacionalmente de maneira profissional e a longo prazo.

Para se alcançar o produto atual, o formato do futebol inglês passou por diversas transformações, erros e acertos, tragédias como o desastre de Hillsborough, regras de adequações e padrões dos estádios de futebol, e até uma luta constante contra as ações impensadas dos seus frenéticos torcedores “hooligans”. Travando uma luta pela autonomia e independência frente a Federação Inglesa de Futebol e antiga Football League, o novo formato passou a embolsar mais e mais dinheiro para os cofres dos clubes através de um projeto de gestão coletivo e moderno. A PREMIER LEAGUE foi o melhor remédio para o futebol inglês voltar à elite do futebol mundial.

Ano após ano, desde 1992, a PREMIER LEAGUE trabalhou a sua marca e a dos seus clubes como um negócio. A liga que antes levava o nome de patrocinadores, negociando os seus “naming rights” como um dos principais produtos comerciais, hoje possui força suficiente para escolher a sua estratégia comercial, dialogar e firmar seus contratos sem vincular o nome da sua marca. Batendo recordes em todas as janelas de transferência, justificando as suas astronômicas contratações, o maior segredo da PREMIER LEAGUE consiste nas formas de exploração dos seus Direitos de Transmissão e a distribuição desses valores para os clubes competidores. Para que haja o crescimento, se garante um mínimo, permite que os clubes possam planejar e investir de forma segura.

Importante considerar que as regras sobre os Direitos de Transmissão da Premier League foram adaptadas ao passar dos anos. Força convir que, mesmo após anos de sucesso, as formas de exploração foram revistas na Inglaterra, em que pese ter se tornado evidente o questionamento sobre o modelo de exclusividade a ponto de se equiparar a um monopólio.

A organização da liga compreendeu que o monopólio não era suficiente para o desenvolvimento econômico almejado. Percebeu-se que o modelo vigente à época, de certa forma, prejudicava a legítima concorrência, e impedia o amplo acesso dos consumidores ao mercado e a sua liberdade de escolha, em que pese prevalecesse o monopólio evidente de apenas uma emissora. Foi necessário se pensar em procedimentos de concurso/licitação para abrir as possibilidades para novos competidores e diferentes frentes de exploração desses direitos, mediante a venda desses direitos através de pacotes de partidas para diferentes empresas.

Tal como evidenciou Rodrigo Capelo, Jornalista especializado em negócios do esporte: “Importante entender a diferença entre exclusividade e monopólio. Quando todas as partidas do campeonato são transmitidas pela mesma emissora, em todas as plataformas, há um monopólio.”

A Premier League então, através de um modelo de venda de pacotes de partidas, idealizou um sistema que deveria estar aberto a diferentes emissoras, plataformas de streaming, e diferentes players do mercado, que competiriam pelo produto através de um leilão. E o resultado dessa equação é simples: ganha quem oferece as melhores condições e o maior valor. Quanto mais profissionalismo e investimento no produto do futebol inglês, na marca PREMIER LEAGUE, e na força dos seus clubes, maior é o interesse das emissoras, empresas, patrocinadores e investidores para serem parte desse mercado de sucesso.

Diante desses fatos, entre erros e acertos, entre tentativas falhas e estratégias de sucesso, chegamos ao atual formato dos Direitos de Transmissão da liga doméstica de futebol mais importante do mundo, que se dividem da seguinte forma²:

Nacionalmente:

  • 50% (cinquenta por cento) do valor total à título de quota parte igualitária a ser dividida entre todos os clubes participantes. Nesse percentual, o valor é dividido igualmente entre os clubes competidores da PREMIER LEAGUE, sem qualquer diferenciação.
  • 25% (vinte e cinco por cento) do valor total à título de quota parte avaliada de acordo com o mérito alcançado por cada clube ao final da temporada. Nesse percentual, compreende-se o lugar na tabela onde cada clube finalizou o campeonato, elevando os valores a depender de quem desempenhou melhor o seu futebol.
  • 25% (vinte e cinco por cento) do valor total à título de quota parte avaliada no retorno financeiro distribuídos de acordo com as receitas auferidas pela audiência das partidas transmitidas na Inglaterra. Nesse percentual, basicamente se disciplina pela habitualidade com que as partidas dos clubes são transmitidas no Reino Unido.

Internacionalmente:

  • Todo valor NET até um limite estipulado à título da quota de Direitos de Transmissão auferidos internacionalmente serão distribuídos de maneira igualitária entre todos os clubes participantes.
  • Quando o valor NET da exploração internacional desses direitos exceder a quota definida de Direitos de Transmissão auferidos internacionalmente, esse valor excedido será distribuído entre os clubes de acordo com o critério decidido pelo mérito, definido sobre o lugar na tabela onde cada clube finalizou o campeonato.

Há um evidente respeito a meritocracia dentro de um sistema que visa a manifesta visão coletiva desses direitos de transmissão. A quota igualitária garante a todos os clubes um valor significativo que os garante um mínimo de igualdade para investir, utilizar, e planejar com essa receita. Independentemente da sua força perante investidores, patrocinadores, ou torcedores, só por competir e estar na primeira divisão do Reino Unido, comandada pela PREMIER LEAGUE, se garante 2,5% (dois e meio por cento) do valor total dos direitos de transmissão auferidos nacionalmente e 5% (cinco por cento) dos valores auferidos na exploração dos direitos de transmissão internacionalmente.

Numa simples análise da aplicabilidade prática desses percentuais, a tabela a seguir é de grande valia para nortear o entendimento, através dos números da temporada 2017/2018, no que tange a exploração dos Direitos de Transmissão da PREMIER LEAGUE:

Apenas em uma temporada, em tela temporada de 2017/18, à contabilizar apenas as quotas igualitárias da exploração dos direitos de transmissão em âmbito nacional e internacional, contabiliza-se o valor total de £75,583,666 (setenta e cinco milhões quinhentos e oitenta e três mil e seiscentos e sessenta e seis libras). Ou seja, apenas por competir entre os 20 (vinte) clubes da PREMIER LEAGUE, o clube garantiu um valor mínimo de aproximadamente R$ 377.918,330 (trezentos e setenta e sete milhões, novecentos e dezoito mil, trezentos e trinta reais) calculados sob a taxa de câmbio de 31/12/2018.

Há de se compreender que tamanha movimentação financeira no mercado de transferências interno e internacional se justifica diante das condições mínimas fornecidas aos clubes, em que pese o valor acima auferido seja estritamente relacionado aos Direitos de Transmissão, ademais sendo o mínimo que se pode auferir. Para além disso, a estrutura de exploração desses direitos evidencia que a negociação coletiva prevalece em um sistema que dialoga com diferentes formas de distribuição dos Direitos de Transmissão, e apenas ela garantirá o objetivo final: a justa e esperada competitividade.

Não existe surpresa em um campeonato em que sempre apenas um time vence. Não existe interesse em ver o mesmo atleta fazer sempre os mesmos gols. Não existe magia em saber que aquela mesma organização tática vai perdurar por todo o campeonato, pois não há necessidade em mudar. O futebol vive da sua imprevisibilidade frente a mais disputada e ampla competitividade. Sábios aqueles que souberam trabalhar essa equação de sucesso desde 1992. Isso não quer dizer que seja fácil, apenas compreende acreditar que sim, é verdadeiramente possível.

O que a PREMIER LEAGUE nos mostra e evidencia é obvio: o modelo não começou perfeito, nunca será perfeito, mas beira a perfeição quando 5 (cinco) clubes e seus dirigentes escolheram mudar todo um sistema em 1992. Tentaram, escolheram errar, assumiram o risco, e optaram por exercer seus interesses individuais de forma coletiva, pois compreenderam que jamais alcançariam sozinhos a dimensão de retorno desportivo e financeiro que eram capazes de conseguir juntos. Optaram por investir em um produto, fomentaram de maneira profissional o seu alcance e o seu modelo de negócio, e chegaram a um modelo ideal de exploração da sua marca, que busca garantir um mínimo para que haja o maior equilíbrio competitivo possível.

E o que toda essa história tem relacionada com o futebol brasileiro? A Premier League é um exemplo claro de que, só se modifica um modelo ultrapassado quando se assume o risco de tentar apostar na inovação e nos novos mercados. A livre competição e a polarização da exploração dos Direitos de Transmissão, quando bem administrados, geram autonomia e liberdade de escolha para o consumidor, e consequentemente um maior investimento no mercado do futebol. A velha premissa: “Quanto maior a oferta, maior a procura”.

O futebol brasileiro vive um momento preocupante. Após a paralisação total por conta da pandemia da COVID-19, ao assistir seus orçamentos perderem quase 80% (oitenta por cento) das suas receitas e as dívidas só aumentarem, a maioria dos clubes brasileiros enfrentam uma verdadeira bola de neve para se reerguerem e retomarem seus projetos desportivos e financeiros. Numa realidade difícil, clubes da primeira divisão do campeonato brasileiro estiveram sujeitos ao atraso dos salários dos seus atletas, descumprimento dos acordos de transferências de seus atletas, e tiveram seus direitos de transmissão renegociados. A realidade da PREMIER LEAGUE, se comparada a realidade do futebol brasileiro, chega a ser uma utopia.

Importante salientar que no Brasil, os Direitos de Transmissão são estabelecidos na Lei 9.615/98, conhecida como Lei Pelé, no que compreende o conceito de Direito de Arena e exploração do espetáculo esportivo, através do disposto no art. 42, que ao fim e a cabo resulta no conceito de que a exploração, autorização e utilização da imagem do espetáculo esportivo depende do consentimento de ambos os clubes atuantes em uma partida. Enquanto que na Inglaterra esse direito é garantido ao clube mandante e negociado pela PREMIER LEAGUE, no Brasil ele é negociado de maneira individualizada e depende da anuência do clube mandante e do clube visitante.  

Em 2020 surgiu um profundo debate sobre a modificação dos Direitos de Transmissão no Brasil, com a Medida Provisória no. 984 (“MP 984”) que conferiu apenas ao clube mandante do jogo o poder de anuir, autorizar, captar, proibir ou negociar os Direitos de Transmissão da partida, alterando o art. 42 da Lei Pelé. A MP 984 não maculava a validade dos contratos já firmados, apenas apostava em um modelo com maior independência e espelhado em outros sistemas pelo mundo, em que pese a maioria dos modelos de sucesso garantirem esse direito ao clube mandante.

Acontece que em sede de medida provisória, ao se analisar urgência e relevância, bem como ao produzir efeitos imediatos, emissoras e empresas que já tinham seus contratos vigentes com os clubes sob a ótica do dispositivo anterior que necessitava da anuência da agremiação mandante e visitante, sustentaram que se um clube que não detinha do contrato com essas empresas e emissoras se utilizasse da normativa da MP 984, ainda assim, seria necessário a anuência do outro clube que possuía contrato com as empresas e emissoras, sob pena de violar o ato jurídico perfeito firmado anteriormente e a exclusividade firmada nesses contratos.

A MP 984 caducou ainda em 2020, e ficou a promessa de revisitar o projeto e torna-lo possível. A MP 984 por si só não seria a solução para uma mudança significativa na arrecadação ou distribuição dos Direitos de Transmissão no Brasil, mas estabeleceria uma segurança para que os clubes e federações pudessem investir na polaridade de serviços de transmissão esportiva que, hoje em dia, são ofertados por diferentes emissoras, empresas, plataformas de streaming e novos players do mercado que inovam na forma de transmitir o espetáculo esportivo.

O objetivo principal da MP 984 foi quebrar o monopólio de emissoras que dominavam uma mínima quantidade de clubes nas suas negociações e consequentemente forçavam todos os outros a aceitar as suas condições arcaicas e desvalorizadas, sem existir outra possibilidade de exploração na TV aberta, TV fechada, ou Pay-Per-View, sem abrir espaço para inovação, livre concorrência, ou poder de escolha do próprio consumidor. No cenário atual, se os dois clubes não anuírem com a mesma emissora/plataforma, diante das cláusulas de exclusividade que permeiam o mercado brasileiro, a partida simplesmente não pode ser transmitida.

A PREMIER LEAGUE é um bom exemplo de que é necessário assumir o risco para que o produto possa evoluir e acontecer. Nada muda sem ações, tentativas, e também através de erros. Para que o formato dos Direitos de Transmissão no Brasil possa evoluir, é preciso ao menos tentar um novo formato. E o campeonato carioca desse ano poderá ser um bom laboratório para aperfeiçoamento do sistema e demonstrativos de que a mudança é necessária, assim como a Federação Paulista de Futebol vem fazendo um trabalho importante com os novos players, lançou plataforma de relação direta com os torcedores, e já detém de estrutura para produção de jogos, com o número expressivo de 822 jogos produzidos em 2020.

Primeiro se busca um meio de garantir autonomia e liberdade negocial dos clubes, depois se compreende que coletivamente o retorno obtido sempre será mais favorável a todos os envolvidos em um campeonato, em prol de um considerável retorno financeiro através da garantia de um mínimo, negociações em blocos, e equilíbrio competitivo entre os clubes brasileiros, que muito dependem da receita dos Direitos de Transmissão. Aos poucos as plataformas digitais estão dominando o mercado, adquirindo os direitos de transmissão dos campeonatos, conquistando os clubes. Melhor que punir a ampla oferta e livre competição, o caminho é buscar segurança jurídica e regulamentação para esses novos players.

A tecnologia e a inovação abriram espaço para diferentes emissoras e plataformas, reformularam modelos de negociação e estratégias comerciais, facilitaram a troca entre patrocinadores, investidores, e acesso dos consumidores ao conteúdo. Impedir esse avanço em larga escala no futebol brasileiro é retroceder com um produto que tem muito potencial no mercado do futebol mundial. A mudança não vem com manual de instruções ou certificação de que tudo ocorrerá dentro do planejado. Mudar significa assumir o risco de ir além e apostar no novo, que, diga-se de passagem, já domina o mercado independentemente das ações de quem se opõe à mudança. E é preciso ter cuidado com as opiniões contrárias, como muito bem salientado pelo advogado André Sica, na aula magna do MBA em Negócios no Esporte e Direito Desportivo do CEDIN, “muitos querem apenas manter o status quo”.

Apostando no risco de potencializar uma das receitas mais importantes para os clubes de futebol no Brasil, novos modelos serão desenvolvidos, quer seja pela experiência, quer seja para não cometer os mesmos erros de antes. Quanto maior a receita, maior será o investimento para aquisição de atletas e fomento do futebol, maior será a força esportiva, valorização da marca dos clubes, e, consequentemente, elevadas serão as chances de ganhar competições e títulos importantes.

O mundo mudou, a tecnologia dominou os mercados, e a livre concorrência clama pela oferta de novas receitas e modelos de negócios. Não há mais espaço para se permitir o monopólio dos Direitos de Transmissão. Nenhum modelo nasce perfeito, nenhuma mudança é fácil. Para saber se vale a pena é preciso arriscar em novos modelos. Sem o risco, a Premier League não seria a potência que representa hoje para o mundo. Sem o risco, o futebol brasileiro nunca saberá o que novos mercados podem gerar de benefícios e soluções. É preciso mudar e regulamentar de maneira adequada os novos modelos, e nunca saberemos o resultado sem ao menos tentar.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.

REFERÊNCIAS:

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¹ Especialista pelo Master em Direito Internacional Desportivo pelo ISDE Law & Business School – Madrid/ESP. Procuradora do STJD do Futebol e do STJD do Voleibol. Pós-Graduanda em Direito Digital. Membro e colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo Jovem. Advogada desportiva no Jordão & Possidio.

² 2020-21-PL-Handbook-110920.pdf