João Felipe Artioli¹
Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Em artigo anterior, publicado pelo IBDD em 30/09/2020, foi abordado o direito de imagem na atualidade, destacando os percalços da aplicação prática do contrato de imagem diante de um endêmico posicionamento jurisprudencial de que se trata de modalidade contratual fraudulenta.
Porém, como visto, a legislação brasileira recepciona e autoriza essa modalidade contratual quando se tratar do desporto profissional.
A despeito de as fraudes serem pautadas em elementos subjetivos, na maciça maioria das vezes, um ponto é unanimemente difundido como característica fraudulenta: a inobservância dos limites estabelecidos pelo parágrafo único do artigo 87-A da Lei Pelé.
O caput do artigo 87-A da Lei Pelé foi inserido pela Lei nº 12.395, de 16 de março de 2011, com a seguinte redação:
O direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo.
A despeito de a lex desportiva ter tratado do direito de imagem expressamente, ainda deixava diversas discussões, dentre elas um daqueles elementos subjetivos que sempre conduzia ao questionamento de qual seria a proporção mais adequada entre o salário anotado na CTPS e contraprestação pelo direito de imagem. Até então, essa proporção era analisada caso a caso, quase sempre considerada fraudulenta, independentemente da proporção utilizada.
Anos mais tarde foi inserido o parágrafo único ao artigo 87-A da Lei Pelé, pela Lei nº 13155, de 4 de agosto de 2015, com a seguinte redação:
Quando houver, por parte do atleta, a cessão de direitos ao uso de sua imagem para a entidade de prática desportiva detentora do contrato especial de trabalho desportivo, o valor correspondente ao uso da imagem não poderá ultrapassar 40% (quarenta por cento) da remuneração total paga ao atleta, composta pela soma do salário e dos valores pagos pelo direito ao uso da imagem.
Ao estabelecer a proporção, em tese, a Lei Pelé teria resolvido a questão dos limites a serem adotados pelas entidades de prática desportiva.
Sem a necessidade de digredir ao texto anterior, que foi rememorado inicialmente, é possível partir de um pressuposto básico de que o desrespeito aos limites impostos pela lei especial leva à invalidade do contrato. E não é errado ir por esse caminho.
Ora, se a legislação desportiva desponta os pressupostos da relação contratual a ser firmada no seio do desporto profissional, não há solução outra que não a invalidade da relação contratual e, consequentemente, do reconhecimento de fraude.
Mas essa questão não é tão óbvia ou simples assim, ou não deveria ser.
Inúmeros são os julgados que partem dessa premissa, mas a definição de fraude, para assim concluir, pressupõe que a prática tenha se dado unilateralmente, ensejando, via de consequência, que a outra parte contratante – no caso o atleta profissional – não soubesse ou que tivesse sido obrigado a firmar o contrato daquela forma. Isso para dizer formalmente.
A presunção é de que a entidade de prática desportiva assim impôs. De novo, é um caminho razoável a ser seguido, quando se tem o empregador como hipersuficiente e o trabalhador como hipossuficiente. Mas a realidade mostra um outro cenário.
Para melhor elucidar, é possível exemplificar por um caso hipotético em que as partes, entidade de prática desportiva e atleta profissional, estabeleceram remuneração de 100 mil reais, sendo 50 mil reais anotado em carteira e 50 mil reais a título de contraprestação pelo direito de imagem, este em contrato específico.
Evidentemente que os limites do parágrafo único do artigo 87-A da Lei Pelé não foram atendidos. Entretanto, daí para a fraude, especialmente aquela exercida de modo unilateral, há um abismo.
A legislação civil presume que todo contrato firmado é verdadeiro (artigo 219 do Código Civil); que a formalização se deu de boa-fé (artigo 113 do Código Civil); e que subsiste a manifestação de vontade das partes contratantes, ainda que eventualmente quaisquer destas tenha feito reserva mental (artigo 110 do Código Civil).
Nesse sentido, é relevante o entendimento perfilado pelo TRT da 7ª Região (RO-0001950-47.2016.5.07.0007), que se posicionou no seguinte sentido:
Embora o valor ajustado a título de cessão de imagem ultrapasse em muito o valor pago a título de salário, não há como entender desvirtuado tal contrato civil celebrado entre os litigantes.
Conforme se extrai de decisão do TRT da 15ª Região (RO-0002748-73.2013.5.15.0109), ao tratar de suposta fraude, para que se comprove o tal vício, pelo entendimento do Desembargador do Trabalho Luiz Roberto Nunes, deve a parte produzir prova inelutável de que, em verdade, tivera sua vontade viciada para ajustar pagamento a título de direito de imagem.
Nesse contexto, portanto, apenas se for comprovado o intuito claramente fraudulento – tendo em vista que a fraude não se presume –, é que o contrato poderá ser declarado nulo, como já observado pela jurisprudência do TRT da 4ª Região (RO-01320.2001.006.04.00.2):
Natureza jurídica do direito de imagem. Não comprovada qualquer fraude na cessão de direito de imagem, não há como pretender sua consideração como salário. Negado provimento ao recurso.
Esse também é o sentido conduzido pelo Ministro Alexandre Luiz Ramos, da 4ª Turma do TST (RR-1442-94.2014.5.09.0014), em julgamento de 2019:
A fraude, como excepcionalidade, deve estar devidamente demonstrada pelas premissas fáticas estabelecidas pelo Tribunal Regional, não podendo ser presumida pela simples desproporção do valor do salário e daquele pago em razão da cessão do direito de imagem.
Fraude, no dicionário, pode ser entendida como algo ilícito, falso, desonesto etc., e isso leva o ônus da prova ser de quem a alegar, ainda que os limites estabelecidos no parágrafo único do artigo 87-A da Lei Pelé não tenham sido respeitados.
Se a forma foi observada na formulação do contrato, não havendo prova de vício de consentimento ou de fraude, a presunção é de que o contrato foi firmado naqueles termos por mera liberalidade de ambas as partes e não por imposição unilateral de uma ou de outra parte. Respeitando entendimento divergente, defender o contrário é defender a possibilidade de a parte alegar a própria torpeza, o que é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio.
Invoca-se, para ilustrar este ponto, o entendimento do Ministro Hugo Carlos Scheuermann, da 1ª Turma do TST (RR-147000-90.2007.5.12.0004), que, ao tratar de rescisão contratual simulada, verificou que a simulação contou com a participação do trabalhador. Em razão disso, não há que se falar em fraude quando o trabalhador participa da simulação da rescisão contratual e dela se beneficia, na medida em que ninguém pode alegar em juízo, a seu favor, a própria torpeza (inteligência do artigo 150 do Código Civil).
O que leva à conclusão de que mesmo que os limites impostos pela lex desportiva para estabelecer a remuneração do atleta profissional não sejam observados, isso, por si, não poderá conduzir à presunção de fraude ou de vício de consentimento, na medida que esta deverá ser comprovada por quem alega.
Se não houver essa prova, a presunção deverá ser de que o ajuste da proporção da remuneração se deu de modo bilateral e, em razão disso, não poderá o atleta profissional alegar a própria torpeza, pois participou das tratativas contratuais.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.
¹Graduado em Direito pela FACAMP, Pós-graduado em “Direito Tributário” pelo IBET e em “Aprimoramento em Compliance” pela FACAMP, membro do IBDD e da Comissão de Direito Desportivo da OAB/Campinas, sócio do escritório Ezarchi & Artioli Advogados Associados, que atua no Direito Desportivo desde 1996 e é responsável pelo Departamento Jurídico da Associação Atlética Ponte Preta.