José Eduardo Coutinho Filho¹
Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Em dezembro de 2020 uma notícia vinda do norte da Península Ibérica chamou a atenção do mundo do futebol: A Euskadiko Futbol Federakundea, Federação Basca de Futebol, em conjunto com o governo basco e através de seus representantes, compareceram à Zurique e Nyon e formalizaram seu pedido de reconhecimento como membro filiado pleno na FIFA e na UEFA.
O pedido foi realizado com amparo ao decorrido em reunião interna da Federação, que decidiu, através de votação, com 43 votos a favor, uma abstenção e nenhuma rejeição, que, a exemplo do que fez a Gibraltar Football Association, Associação de Futebol do Gibraltar, a Federação Basca iria pleitear sua associação às entidades representativas do futebol europeu e mundial.
Após a formalização dos pedidos, a Federação divulgou um comunicado oficial proclamando que o pedido de reconhecimento não diz respeito somente aos interesses do futebol local, mas sim de todo o povo basco.
Relevante, aliás, nesse sentido, antes de analisar o conteúdo formal dos pedidos e os requisitos exigidos pela FIFA e UEFA, fazer uma breve menção sobre a relevância do futebol para a região. Ainda que seja evidente o potencial do futebol como elemento de soft power no mundo contemporâneo, sua importância é ainda maior em alguns locais, como é o caso do País Basco.
O País Basco é uma região que abriga uma minoria linguística e cultural no território espanhol. Estando compreendido em um território de aproximadamente 7 mil km² e com população de mais de dois milhões de habitantes, o País Basco é uma comunidade autônoma localizada no noroeste da Espanha. A região do País Basco é ocupado pelo povo basco há mais de 5 mil anos.
O idioma histórico do povo basco é o euskara, considerada como a mais antiga da Europa, é falada por mais de 700 mil bascos, tendo sua origem ainda incerta no debate linguístico e não possuindo qualquer relação comprovada com nenhum outro idioma.
O povo basco já estava fixado no norte da Espanha quando os romanos dominaram a região, em 196 a.C. No entanto, apesar da região ter sido dominada, os bascos conservaram certa autonomia, mantendo a maioria de sua legislação e tradições no período.
Tudo começou mudou no Século XX. A história do País Basco no último século possui em certa medida muitas semelhanças com a história catalã. Assim como o que ocorreu com a Catalunha, o idioma, a bandeira e os símbolos bascos foram proibidos durante a ditadura de Primo de Rivera. Durante a Guerra Civil Espanhola, até cair nas mãos do exército franquista, assim como a Catalunha o País Basco apoiou a Espanha Republicana.
A repressão à identidade basca foi intensa nas décadas do regime franquista. Proibiu-se a exibição de símbolos representativos do povo basco e o euskara foi proibido, ficando relegado ao ensino clandestino, constantemente delatadas por informantes às autoridades. Ainda que desde 1895 já existisse o Partido Nacionalista Basco, ativo até a atualidade, não há dúvidas que, em resposta à repressão estatal da época, o movimento independentista e a luta pelo orgulho basco se propagaram pela região.
Nesse período, por sua vez, o futebol representou um importantíssimo elemento para o cultivo das tradições e sentimento orgulho da região. Protegidos pela multidão, os estádios de futebol eram uns dos poucos locais públicos em que se podia praticar o euskara sem medo de repressão. Os Clubes locais representavam o País Basco na Espanha, com destaque ao Athletic Club Bilbao (que na época, por um decreto de 1941 que visava a “espanholização” dos nomes e idiomas praticados na Espanha, teve que alterar seu nome para Atlético Bilbao) que somente aceitava atletas bascos em seu elenco (e que, até hoje, ainda que de maneira mais flexível, ainda o faz).
Por sua vez, talvez o fator mais representativo da relação entre o sentimento basco e o futebol tenha ocorrido em 5 de dezembro de 1976. Ainda que o falecimento do ditador e fim do regime franquista tenham ocorrido em 1975, em 1976 ainda era vigente a legislação que proibia a utilização e exibição de símbolos das regiões e povos que compõem o território espanhol, como o País Basco e a Catalunha. Apesar de proibição ainda estar vigente, foi em uma partida de futebol entre os rivais locais Real Sociedad e Athletic Club Bilbao que ocorreu a primeira exibição pública da bandeira basca após mais de 40 anos.
Evidentemente que, por conta do fim do regime franquista e a adoção do Estatuto de Autonomia do País Basco, em 1979, que reconheceu o País Basco como Comunidade Autônoma, instituiu o euskara como língua oficial e permitiu a organização do Parlamento Autônomo Basco, a luta em defesa da cultura regional hoje se mostra muito mais branda. Estima-se que na atualidade apenas 30% dos cidadãos bascos sejam favoráveis à independência.
No entanto, pela relevância histórica da modalidade na região, além da imensurável influência que o futebol exerce na sociedade contemporânea, não restam dúvidas de que o pedido por sua admissão e consequente reconhecimento como membro pleno da FIFA e da UEFA representa uma poderosa ferramenta de soft power tanto para a Federação Basca quanto para o próprio País Basco.
Sendo evidente a relevância e a justificativa do pleito basco, resta a análise de sua viabilidade.
Basicamente, os requisitos para a admissão de novos associados à FIFA se encontram presentes no artigo 11 do Estatuto da entidade, que assim dispõe:
11 – Admission
1. Any association which is responsible for organising and supervising football in all of its forms in its country may become a member association. Consequently, it is recommended that all member associations involve all relevant stakeholders in football in their own structure. Subject to par. 5 and par. 6 below, only one association shall be recognised as a member association in each country.
2. Membership is only permitted if an association is currently a member of a confederation. The Council may issue regulations with regard to the admission process.
3. Any association wishing to become a member association shall apply in writing to the FIFA general secretariat.
4. The association’s legally valid statutes shall be enclosed with the application for membership and shall contain the following mandatory provisions:
a) always to comply with the Statutes, regulations and decisions of FIFA and of the relevant confederation;
b) to comply with the Laws of the Game in force;
c) to recognise the Court of Arbitration for Sport, as specified in these Statutes.
5. Each of the four British associations shall be recognised as a separate member association of FIFA.
6. An association in a region which has not yet gained independence may, with the authorisation of the member association in the country on which it is dependent, also apply for admission to FIFA.
7. This article shall not affect the status of existing member associations.
Da simples leitura do artigo é perceptível que existem empecilhos à associação da Federação Basca. A primeira questão, evidentemente, está presente no parágrafo 1º, que estabelece que será reconhecida “qualquer associação que seja responsável pela organização e supervisão de todas as formas de organização do futebol ‘em seu país’”. Conforme esclarecido, por mais que o País Basco tenha uma riquíssima história própria e centenária luta por independência, em maior ou menor medida a depender do período histórico, a região formalmente faz parte da Espanha, e no país a entidade máxima responsável pela organização e supervisão do futebol nacional é a Real Federación Española de Fútbol, a RFEF.
O parágrafo 6º, porém, traz uma exceção, que se destina às associações de uma região que “ainda não conquistou a independência”, desde que o membro associado representante do país em que a região faz parte autorize sua admissão. E, segundo o próprio comunicado oficial emitido, é exatamente com base nessa exceção que a Federação Basca fundamenta seu pedido, sendo que, inclusive, já teria requerido à RFEF que iniciassem as tratativas para viabilizar a autorização.
No entanto, ainda que formalmente possível, materialmente beira o imponderável que, por espontânea vontade, a RFEF concederá sua autorização, reconhecendo o País Basco, que desde o Século XIX possui um movimento independentista formalizado, como uma região que “ainda” não conquistou sua independência.
Como se não bastasse, além desse obstáculo quase insuperável, o reconhecimento da Federação Basca ainda esbarra no parágrafo 3º, que exige que a federação nacional esteja filiada à sua respectiva Confederação Continental, no caso concreto, a UEFA. Como mencionado, concomitantemente ao pedido de reconhecimento feito à FIFA, a Federação Basca também requereu sua associação à UEFA.
Por sua vez, os requisitos para a admissão de novos associados à UEFA se encontram presentes no artigo 5º de seu Estatuto, que assim dispõe:
Membership – Article 5
1. Membership of UEFA is open to national football associations situated in the continent of Europe, based in a country which is recognised as an independent state by the majority of members of the United Nations, and which are responsible for the organisation and implementation of football-related matters in the territory of their country.
2. In exceptional circumstances, a national football association that is situated in another continent may be admitted to membership, provided that it is not a member of the Confederation of that continent, or of any other Confederation, and that FIFA approves its membership of UEFA.
Nota-se, pela leitura do parágrafo 1º, que a UEFA é taxativa ao limitar a admissão aos seus quadros para “entidades nacionais situadas no continente europeu, baseadas em um país reconhecido como um Estado independente pela maioria dos membros das Nações Unidas”, requisito que, incontroversamente, a Federação Basca não cumpre.
Ainda, o artigo 6º do regulamento garante ao Congresso o poder discricionário de aceitar ou recusar uma candidatura. Congresso esse, aliás, fortemente influenciado pela RFEF.
Portanto, diante do cenário, ao se ler a letra fria dos estatutos e analisar a realidade dos fatos, pode parecer que qualquer possibilidade de associação da Federação Basca é quase fantasiosa. Porém, o fio de esperança pode estar muito próximo, no extremo oposto da Península Ibérica.
O Gibraltar é um território ultramarinho britânico localizado no ponto do continente europeu mais próximo do africano, no extremo sul da Península Ibérica. Em 1713 foi cedido perpetuamente ao Reino Unido pela Espanha, através do Tratado de Ultrech. Apesar disso, no início da década de 1960 o governo espanhol questionou a soberania sobre Gibraltar perante a Comissão de Descolonização da ONU e, apesar de dois referendos em que a população local se mostrou favorável à manutenção do controle do Reino Unido na região, desde então mantém o pleito por recuperar sua soberania.
Apesar de ter sido fundada em 1895, sendo uma das mais antigas do mundo, a Associação de Futebol de Gibraltar somente pleiteou sua associação à FIFA em 1997, que, partindo do princípio mesmo vigente, transmitiu o pleito de reconhecimento à UEFA.
A partir daí, a Associação de Gibraltar travou uma dificílima batalha por sua associação à FIFA e UEFA, muito rechaçadas pela pressão da RFEF, que temia que o precedente faria com que outras entidades representante do futebol de regiões que a Espanha considera como suas tomassem o mesmo caminho. Não se pode dizer que a preocupação era infundada, uma vez que é o que está ocorrendo na atualidade.
Após repetidas negativas da UEFA, ainda que tendo a reconhecido duas vezes como membro provisório, a entidade europeia somente aceitou a Associação de Gibraltar como associado pleno em maio de 2013, devido à sua derrota jurídica no TAS/CAS, que obrigou-a a fazê-lo. Após 16 anos de contenda jurídica, tendo, inclusive, sua admissão sido reprovada 2007, em maio de 2013 foi admitida pela UEFA, apesar da reprovação formal da RFEF. Sendo assim, atualmente a Associação disputa regularmente as Eliminatórias da UEFA Euro além da Liga das Nações.
O mesmo aconteceu em relação ao pedido de associação na FIFA. Mesmo com sua associação à UEFA, a Entidade Mundial rechaçou seu pleito por considerar que “o território britânico não seria uma nação independente”. Com isso, em 26 setembro de 2014 a Associação de Gibraltar apresentou seu recurso à decisão da FIFA para apreciação do TAS/CAS,
Em 27 de abril de 2016, a Corte Arbitral do Esporte decidiu a ação que a Associação de Gibraltar contra a decisão da FIFA, dando-lhe ganho da causa, determinando que a Entidade Mundial deveria “tomar todas as providências para admitir a Associação de Gibraltar o mais breve possível”. Após a decisão, finalmente, em 13 de maio de 2016 a Associação de Gibraltar foi aceita como membro pleno da FIFA. Com isso, a Associação de Gibraltar também disputa regularmente as Eliminatórias Europeias para a Copa do Mundo de Futebol.
Se o futuro é incerto, uma coisa é certa. Se no caso de Gibraltar, território internacionalmente reconhecido como britânico, a RFEF não poupou esforços para barrar o reconhecimento de sua Associação, não há dúvidas que terá no caso do País Basco ímpeto muito maior, ainda mais com o risco da Federação Catalã, diante do ambiente político e social da Catalunha na atualidade, seguir o mesmo caminho.
Porém, ainda que fosse um caso mais simples, que o procedimento tenha levado quase 20 anos e que tenha características técnicas distintas, não se pode negar que o exemplo de Gibraltar pode servir de paradigma para a Federação Basca.
A realidade é que, ainda que não seja tecnicamente impossível, o caminho até seu reconhecimento é muito tortuoso, longo e íngreme. Porém, como a história mostra, se tem algo que os bascos não costumam fazer é desistir. Resta, aos entusiastas da geopolítica da bola, acompanhar de perto os desdobramentos do caso.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
REFERÊNCIAS
EUSKADIKO FUTBOL FEDERAKUNDEA. The Basque Federation (EFF-FVF) submits an application to FIFA and UEFA for a full-fledged membership. Bilbao, s.d. Disponível em: https://euskadifutbol.eus/wp-content/uploads/2020/12/EFF_FVF_UEFA_FIFA_eng.pdf. Acesso em: 19 mar. 2021.
FÉDÉRATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION (FIFA). Statutes, September 2020 edition. Zurique, 2020. Disponível em: https://resources.fifa.com/image/upload/fifa-statutes-2020.pdf?cloudid=viz2gmyb5x0pd24qrhrx. Acesso em: 19 mar. 2021.
FOER, Franklin. Como o futebol explica o mundo: um olhar inesperado sobre a globalização. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
UNION OF EUROPEAN FOOTBALL ASSOCIATIONS (UEFA). Statutes, 2020 edition. Nyon, 2020. Disponível em: https://documents.uefa.com/v/u/_CJ2HRiZAu~Wo6ytlRy1~g. Acesso em: 19 mar. 2021.
TAS/CAS. Arbitration CAS 2002/O/410 The Gibraltar Football Association (GFA)/Union des Associations Européennes de Football (UEFA. Lausanne, 2003. Disponível em: https://www.tas-cas.org/fileadmin/user_upload/CAS_Award_6785___internet__.pdf. Acesso em: 19 mar. 2021.
TAS/CAS. Arbitration CAS 2014/A/3776 Gibraltar Football Association (GFA) v. Fédération Internationale de Football Association (FIFA). Lausanne, 2016. Disponível em: http://jurisprudence.tas-cas.org/Shared%20Documents/3776.pdf. Acesso em: 19 mar. 2021.
¹ Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP (FCHS/UNESP). Cursando o MBA em Gestão de Projetos pela Universidade de São Paulo. Gestor Desportivo diplomado pela CONMEBOL. Membro Fundador e Conselheiro Emérito do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da UNESP Franca (GEDiDe). Membro do Grupo de Estudos do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). Membro filiado ao IBDD. Advogado do Sport Club Corinthians Paulista.