RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA NO FUTEBOL: A BUSCA PELA PROFISSIONALIZAÇÃO DOS CLUBES EVIDENCIA O SINGULAR CARÁTER SOCIAL DO ESPORTE NO BRASIL

Ana Luiza Peres Pereira Soares

Membro filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

Mais do que o esporte de maior popularidade do planeta, o futebol representa atualmente um grande negócio, capaz de movimentar cifras impressionantes. Uma análise[2] da consultoria especializada em marketing esportivo, branding, patrocínios, avaliação de marcas e propriedades esportivas Sports Value indicou que o futebol global chega a gerar, por ano, mais de US$ 330 bilhões, distribuídos entre as suas mais diferentes formas de exploração.

Contudo, o fato de movimentar grandes quantias e atrair milhões de interessados, isoladamente, não é suficiente para conferir ao futebol o título de um grande mercado profissional.

No Brasil, somente em 2018, ano que foi objeto de relatório encomendado pela CBF e elaborado pela empresa EY acerca do Impacto do Futebol Brasileiro, R$ 52,9 bilhões foram movimentados pelo esporte, o que representou 0,72% do PIB do país[3]. Entretanto, a maneira como todo este cenário é administrado no bojo de seus principais agentes ainda é motivo de atenção quando se trata da efetiva profissionalização do mercado do futebol.

A discussão que culminou na Lei nº 14.193/2021, conhecida como a Lei do Clube-Empresa, é o exemplo mais recente da intenção de se consolidar o futebol brasileiro como um produto e os clubes como verdadeiras companhias. Não é de hoje, porém, que este aspecto da profissionalização busca se fazer presente na organização do futebol pátrio.

Nossa Lex Sportiva, em diferentes momentos e seguindo diferentes tendências, procurou alternativas para que a gestão dos clubes de futebol pudesse se valer de práticas corporativas. A Lei Zico (Lei nº 8.762/1993), há quase três décadas, já facultava às entidades de prática desportiva a possibilidade de se manter um modelo gestão sob responsabilidade de sociedades com fins lucrativos[4].

A Lei Pelé[5], que revogou as disposições da Lei Zico cinco anos depois, quando de sua entrada em vigor convertia o que até então era uma possibilidade em uma obrigação, determinando três diferentes modelos de gestão empresarial para as entidades de prática desportiva. Tal obrigação, contudo, foi logo modificada, a partir da alteração do referido diploma legal efetuada por meio da Lei nº 9.891/2000[6], a fim de que a transformação dos clubes em empresas voltasse a ser facultativa, definindo, ainda, uma nova regulamentação para aqueles que efetivamente optassem por esse modelo.

Independentemente do modelo de gestão adotado, até porque este artigo não guarda a pretensão de versar sobre a natureza jurídica dos clubes e sim de estimular que pensemos fatores que acentuam e podem aperfeiçoar a enorme contribuição do futebol a nosso país, é incontestável que estes cada vez mais se assemelham a empresas em diversos aspectos de sua administração. Isso se deve, principalmente, ao fato de que próprio mercado globalizado do futebol exige práticas de gestão cada vez mais profissionais. Nos últimos anos, por exemplo, passou a ser praticamente impossível acompanhar o futebol sem ao menos se familiarizar com conceitos tão próprios do mundo corporativo como Fair Play Financeiro, Governança, Transparência, entre outros.

Dentre essas práticas, o presente artigo dedica especial atenção à Responsabilidade Social Corporativa (RSC). Ao longo dos anos, esse conceito ganhou diferentes definições que acompanharam as necessidades da sociedade. Uma das definições mais completas é a estabelecida pela Norma ISO 26000 de Diretrizes em Responsabilidade Social[7]. Publicada no ano de 2010, ela trata a RSC como “a responsabilidade de uma organização pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente, por meio de um comportamento ético e transparente que contribua para o desenvolvimento sustentável, inclusive a saúde e o bem-estar da sociedade, leve em consideração as expectativas das partes interessadas, esteja em conformidade com a legislação aplicável, seja consistente com as normas internacionais de comportamento; esteja integrada em toda a organização e seja praticada em suas relações”.

O conceito de Responsabilidade Social Corporativa, portanto, privilegia a ideia de ações coordenadas visando o desenvolvimento sustentável. Este termo, que acabou sendo comumente associado ao compromisso com o meio-ambiente, compreende também questões que dizem respeito a cultura, diversidade e redução das desigualdades[8], podendo ser entendido, essencialmente, como uma contribuição para o amplo desenvolvimento humano.

A mencionada Norma ISO 26000 elenca sete princípios da Responsabilidade Social Corporativa que devem ser observados pelas organizações, definindo-os nestes termos[9]

  1. Accountability: ato de responsabilizar-se pelas consequências de suas ações e decisões, respondendo pelos seus impactos na sociedade, na economia e no meio ambiente, prestando contas aos órgãos de governança e demais partes interessadas declarando os seus erros e as medidas cabíveis para remediá-los);
  • Transparência: fornecer às partes interessadas de forma acessível, clara, compreensível e em prazos adequados todas as informações sobre os fatos que possam afetá-las;
  • Comportamento ético:agir de modo aceito como correto pela sociedade – com base nos valores da honestidade, equidade e integridade, perante as pessoas e a natureza – e de forma consistente com as normas internacionais de comportamento;
  • Respeito pelos interesses das partes interessadas:ouvir, considerar e responder aos interesses das pessoas ou grupos que tenham interesses nas atividades da organização ou por ela possam ser afetados;
  • Respeito pelo Estado de Direito:o ponto de partida mínimo da responsabilidade social é cumprir integralmente as leis do local onde está operando;
  • Respeito pelas Normas Internacionais de Comportamento:adotar prescrições de tratados e acordos internacionais favoráveis à responsabilidade social, mesmo que não que não haja obrigação legal;
  • Direito aos humanos: reconhecer a importância e a universalidade dos direitos humanos, cuidando para que as atividades da organização não os agridam direta ou indiretamente, zelando pelo ambiente econômico, social e natural que requerem.

Ao analisarmos o desenvolvimento histórico do futebol no Brasil, constatamos que muitos clubes foram consolidados a partir de um contexto comunitário. Há inúmeros exemplos de clubes cuja ligação com um determinado bairro[10], colônia de imigrantes[11], classe ou até mesmo com uma empresa[12] foi determinante para sua consolidação. Por conta dessas origens, sempre foi natural vê-los envolvidos em causas locais e contribuindo para a conscientização de questões importantes para a coletividade em que estavam inseridos.

Ao passo em que se ultrapassa as barreiras locais, é natural que essas causas também sofram alterações, passando a incluir questões que possam ser comuns ao grande público ora alcançado em decorrência da globalização do futebol.

A própria história do desenvolvimento do futebol em nosso país ajuda a envolvê-lo neste caráter social. Afinal, como um esporte que nasceu em meio à elite, restrito aos membros de clubes sociais que detinham o poder aquisitivo suficiente para ter acesso aos equipamentos necessários, se tornou popular a ponto de poder ser praticado por qualquer pessoa em qualquer lugar?

Certamente, a multivocalidade do futebol minuciada por Roberto Damatta[13] como “uma vocação complexa que permite entendê-lo e vivê-lo simultaneamente de muitos pontos de vista” foi parte essencial do processo de popularização do esporte até que alcançássemos esta intrínseca relação entre o futebol e a sociedade brasileira.

A exigência de uma gestão mais profissional, em um momento em que o mundo corporativo assume sua responsabilidade frente ao desenvolvimento sustentável, evidencia este singular papel social do futebol, concentrando-o em seus principais agentes: os clubes.

Este papel social, por sua vez, acompanha as mudanças que a sociedade experimenta em cada período. Se até alguns anos atrás se esperava que os clubes estivessem envolvidos institucionalmente em campanhas de arrecadação de alimentos, de conscientização de seus torcedores quanto a determinadas questões de saúde pública ou, mais recentemente, de prevenção da violência nos estádios, atualmente o torcedor espera que o clube se posicione a respeito de pautas identitárias, e, mais do que isso, tenha práticas alinhadas a esse discurso.

Ações contrárias não passam despercebidas e viram alvo de cobranças contundentes que podem refletir-se até mesmo nas contratações de atletas e nas relações com patrocinadores[14], constituindo, consequentemente, um importante fator a ser considerado em sua administração.

Dessa maneira, a Responsabilidade Social Corporativa aplicada aos clubes se mostra um elemento essencial na construção de um futebol cada vez mais profissionalizado. A atenção a este aspecto da administração representa vantagens nos mais diversos campos da dimensão institucional das agremiações, resultando na redução de riscos e gerando frutos que podem ir desde a perspectiva puramente financeira até a estruturação de benefícios de imensurável valor para a marca do clube, uma vez que esta postura está diretamente relacionada à percepção do torcedor e da sociedade como um todo.

Se antigamente a reputação de um clube era atribuída exclusivamente a suas conquistas, seu desempenho dentro de campo e a fama de sua torcida, cada vez mais vemos que o torcedor passa a considerar nesta conta elementos relativos a seu nível de comprometimento social. Quem gostaria, afinal, de ser reconhecido como pertencente a um grupo que notadamente desrespeita direitos e vai na contramão do amplo desenvolvimento humano?

A aplicação e o desenvolvimento da Responsabilidade Social Corporativa nos clubes de futebol, independentemente de sua natureza jurídica, são necessários e benéficos para as estruturas internas, o mercado do futebol e toda a sociedade. No Brasil, o futebol exerce um singular papel social e os clubes, enquanto agentes de maior destaque e alcance nesse cenário, são essenciais para o avanço efetivo em relação a tal objetivo. Ao assumir um compromisso com o desenvolvimento sustentável, os clubes não somente resgatam as características que converteram o futebol no grande fenômeno social que é, como também dão um importante passo rumo ao fortalecimento do próprio mercado.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.


[1] Pós-graduanda em Direito Desportivo pelo Centro Educacional Renato Saraiva. Pós-graduanda em Direitos da Mulher pela Faculdade Legale. Membro filiada ao IBDD. Membro do Grupo de Estudos de Direito Desportivo do IBDD. Membro do Comitê de Jovens Arbitralistas do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Advogada.

[2] SOMOGGI, Amir. Consumo de futebol fatura muito mais que as transferências de jogadores. Sports Value, 2019. Disponível em: <https://www.sportsvalue.com.br/consumo-de-futebol-fatura-muito-mais-que-as-transferencias-de-jogadores/>. Acesso em: 18 de set. de 2021.

[3] CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL. Impacto do Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <https://conteudo.cbf.com.br/cdn/201912/20191213172843_346.pdf>. Acesso em: 18 de set. de 2021.

[4] BRASIL. Lei Federal Nº 8.672. Institui normas gerais sobre desportos e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8672.htm>. Acesso em: 18 de set. de 2021.

[5] BRASIL. Lei Federal Nº 9.615. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm>. Acesso em: 18 de set. de 2021.

[6] BRASIL. Lei Federal Nº 9.981. Altera dispositivos da Lei no 9.615, de 24 de março de 1998, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9981.htm#art1>. Acesso em: 18 de set. de 2021.

[7] INSTITUTO NACIONAL DE METROLOGIA NORMALIZAÇÃO E QUALIDADE INDUSTRIAL – INMETRO. Responsabilidade Social. Disponível em <http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/pontos-iso.asp>. Acesso em: 18 de set. de 2021.

[8] REIS, Bruno da Silva Dias dos. Responsabilidade Social Corporativa no Futebol: uma Reflexão acerca da Realidade dos Atletas que não Atingem a Profissionalização nos Clubes Brasileiros. Monografia (Bacharelado em Administração) – Faculdade de Administração e Ciências Contábeis, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://universidadedofutebol.com.br/wp-content/uploads/2016/05/Responsabilidade-Social-Corporativa-no-Futebol.pdf>. Acesso em: 18 de set. de 2021.

[9] INSTITUTO NACIONAL DE METROLOGIA NORMALIZAÇÃO E QUALIDADE INDUSTRIAL – INMETRO. Responsabilidade Social. Disponível em <http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/pontos-iso.asp>. Acesso em: 18 de set. de 2021.

[10] FONSECA, Venilson Luciano Benigno. Clubes de futebol: lugares e territórios possíveis. Revista Interface, ed. 11, p. 183-201, maio de 2016. Disponível em: <https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwiaqa7S7YvzAhV1ppUCHcJtD9w4ChAWegQIAxAB&url=https%3A%2F%2Fsistemas.uft.edu.br%2Fperiodicos%2Findex.php%2Finterface%2Farticle%2Fview%2F2142%2F8755&usg=AOvVaw06j5mX5ikG8tJ7EW4Lbe-U>. Acesso em: 19 de set. de 2021.

[11] FEITOSA, Luís. Mistura do Brasil: veja 5 clubes brasileiros que têm origens estrangeiras. Torcedores.com, 2020. Disponível em < https://www.torcedores.com/noticias/2020/06/mistura-do-brasil-veja-5-clubes-brasileiros-que-tem-origens-estrangeiras>. Acesso em 19 de set. de 2021.

[12] STÉDILE, Miguel H. Almeida. Da Fábrica à Várzea: Clubes de Futebol Operário em Porto Alegre. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/54077/000837702.pdf?sequence=1&isAllowed=y.Acesso em: 19 de set. de 2021.

[13] DAMATTA, Roberto. Antropologia do óbvio: um ensaio em torno do significado social do futebol brasileiro. Revista USP. São Paulo, v.22, p.10-17, 1994. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/26954>. Acesso em: 19 de set. de 2021.

[14] Por contratação de Robinho, Santos perde patrocinador. Lance!, 2020. Disponível em: < https://www.lance.com.br/santos/por-contratacao-robinho-perde-patrocinador.html>. Acesso em: 19 de set. de 2021.