A CESSÃO TEMPORÁRIA DO ATLETA DE FUTEBOL

Por Gabriel Delbem Bellon

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

O mercado do futebol de alto rendimento, de forma notória e evidente, movimenta vultuosos valores em decorrência da prática da atividade desportiva, seja pela exposição da marca dos clubes, receitas de transmissão, venda de produtos licenciados, bilheteria, entre outros.

Contudo, inegavelmente, uma das mais significativas fontes de renda para os clubes são as transferências dos atletas profissionais de futebol, que movimentaram R$2,5 bilhões em 2020, conforme aponta recente relatório[2] da Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”).

A Fédération Internationale de Football Association (“FIFA”), por seu Regulamento de Status e Transferência de Jogadores (“RSTP”), divide e define a transferência em nacional ou internacional. A primeira refere-se ao movimento do registo de um atleta, de um clube para outro, dentro de uma associação nacional de administração do desporto, enquanto na segunda, o movimento do registro ocorre entre clubes de associações diferentes[3].

De se ressaltar que, por vezes, a movimentação do registro de um atleta, seja de forma nacional ou internacional, não acontece necessariamente de forma definitiva, mas sim, de maneira temporária, por prazo determinado. É justamente esse tipo de movimentação, popularmente conhecida como “empréstimo” e tecnicamente denominada “cessão temporária”, que abordaremos com maiores detalhes a partir de agora.

O artigo 10, item 1, do RSTP, estabelece que um profissional pode ser cedido temporariamente a outro clube com base em um acordo entre ele e as entidades de prática desportiva envolvidas, sendo que essa cessão pode ser verificada por diferentes razões. Tudo vai depender do objetivo dos clubes envolvidos e do(s) atleta(s), tendo em vista que neste tipo de transferência, nem sempre o lucro financeiro propriamente dito é o escopo final ou principal.

Comumente, vemos atletas que poucas partidas jogam por seus clubes empregadores buscarem alternativas para atuar com maior frequência e a cessão temporária aparece como uma das possíveis soluções. Além disso, a cessão temporária é utilizada como mecanismo de maiores chances e expansão de experiência para atletas jovens, além de, notadamente no caso do Brasil, servir como instrumento de redução da folha salarial por parte do clube cedente.

Neste contexto, nunca é demais frisar que a transferência temporária depende de formal e expressa anuência do atleta, nos exatos termos do artigo 38 da Lei Federal nº 9.615 de 1998[4] (“Lei Pelé”), sendo certo que o Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol (“RNRTAF”) da CBF, veda a transferência temporária de atleta não profissional[5].

Às mesmas regras aplicáveis à transferência definitiva se sujeitam as cessões temporárias, inclusive no que concerne ao pagamento das indenizações por formação e mecanismo de solidariedade[6].

Vale ressaltar que enquanto o RSTP[7] prevê que o período mínimo de cessão temporária será o tempo entre dois períodos de registro, o RNRTAF[8] da CBF estabelece a impossibilidade de o prazo ser inferior a três meses, tampouco superior ao período restante do contrato especial de trabalho desportivo do atleta com a entidade cedente.

Os regulamentos desportivos trazem disposições importantes a serem observadas pelos clubes participantes da transferência temporária. De acordo com o artigo 36, §2º[9], do RNRTAF, o atleta não pode receber salário do clube cessionário menor do que aquele que consta do contrato firmado com o clube cedente, com expressa exceção à previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Do ponto de vista prático, cabe ressaltar que alguns clubes, no momento da negociação, respeitando o quanto disposto na legislação e nos regulamentos desportivos em vigor, estabelecem diferentes formas de pagamento dos vencimentos do atleta, como por exemplo, dividir por igual os pagamentos, estabelecer a responsabilidade integral de um dos clubes pagar pelos salários do atleta ou até mesmo avençar o pagamento de 70% pelo cessionário e 30% pelo cedente.

Internacionalmente, o RSTP busca proteger os clubes cedentes garantindo-lhes maior segurança jurídica ao estabelecer que o clube que aceitou um atleta temporariamente não tem direito de transferi-lo a outro clube sem autorização e anuência por escrito do cedente e do próprio atleta[10]. O mesmo conteúdo regulamentar pode ser encontrado nacionalmente no artigo 38 do RNRTAF[11].

Nesta esteira, cumpre salientar que a cessão temporária implica na suspensão dos efeitos do contrato especial de trabalho desportivo do atleta com o clube cedente, enquanto ela durar[12]. Este fato não eximiu o futebol brasileiro de recentes polêmicas e debates acerca da participação de atletas cedidos temporariamente em partidas nas quais o adversário seria o clube cedente.

Após algumas temporadas de alteração na mudança da regra, a CBF, enfim, consolidou no artigo 35[13] do RNRTAF a possibilidade de os clubes, cedente e cessionário, deliberarem de forma exclusiva entre si, acerca da participação do atleta cedido temporariamente nas partidas entre ambos.

Em um passado recente, Clube de Regatas do Flamengo e Sport Club Internacional celebraram acordo de cessão do atleta Rodinei. O atleta, por disposições contratuais, apenas poderia atuar mediante pagamento de multa correspondente a R$1.000.000,00 (um milhão de reais). Em franca batalha pelo título do Campeonato Brasileiro de 2020, um torcedor do Sport Club Internacional assumiu o pagamento do valor e o atleta pode, regularmente, entrar em campo[14]. Curiosamente, Rodinei acabou expulso da partida aos 4 (quatro) minutos do segundo tempo[15].

Deste modo, explanadas questões legais, fáticas e regulamentares, resta evidente que o contrato de cessão se tornou o principal instrumento de regulamentação dessa questão, além de muitas outras, motivo pelo qual falaremos sobre ele a seguir.

Clube cedente, clube cessionário e atleta, compõem o quadro de partes signatárias de um instrumento particular de cessão temporária. Por ser na essência um acordo de vontades, a cessão passa pela aprovação do titular dos direitos federativos do atleta, no caso o clube cedente, pela anuência e expresso desejo do atleta de integrar o clube cessionário e pela aceitação deste dos termos convencionados para tanto.

Superadas questões que já abordamos acerca do salário e do período de vigência da cessão temporária, falaremos um pouco sobre as obrigações das partes que, em linhas gerais, são formalizadas no instrumento particular de cessão.

Cabe ao cessionário contratar e pagar por apólice de seguro, que inclua cobertura por morte, invalidez permanente ou parcial e acidentes pessoais do atleta, independentemente de ser dentro ou fora das atividades futebolísticas, a ser contratado em benefício do atleta e de seus dependentes[16]. Se não o fizer, o cessionário poderá ser unicamente responsável perante o atleta ou terceiros, pelo pagamento de qualquer indenização decorrente de morte, invalidez permanente ou parcial e acidentes pessoais sofridos pelo atleta.

Outro ponto importante dos instrumentos particulares é a declaração expressa por parte do cessionário acerca da aprovação das condições físicas e de saúde do atleta no momento de seu registro federativo. Como forma complementar de preservar a saúde do profissional, o clube cedente pode vedar a realização de qualquer tipo de cirurgia durante o período da cessão, sem a prévia e expressa autorização dele, salvo em caso de eventual emergência comprovada.

Recai sobre o cessionário a obrigação de restituir o atleta ao final do período de cessão, nas exatas condições físicas e de saúde, responsabilizando-se, por impedimentos temporários para a prática profissional do esporte, pelo tratamento médico e pagamento de indenização até a sua efetiva recuperação.

Como qualquer outro acordo de vontades, o contrato de cessão temporária pode ser rescindido antes de seu termo final. Isso pode ocorrer por descumprimento de disposições contratuais, inadimplemento ou até mesmo face à ocorrência de propostas de transferência do atleta durante o período de cessão. Todas essas possibilidades, incluindo valores, multas e condições são integralmente acordas entre os signatários, de acordo com seus interesses e critérios de adequação e conveniência.

Vale realçar aqui que a Lei Pelé em seu artigo 39, §§ 1º e 2º[17], estabelece que:

 “O atleta cedido temporariamente a outra entidade de prática desportiva que tiver os salários em atraso, no todo ou em parte, por mais de 2 (dois) meses, notificará a entidade de prática desportiva cedente para, querendo, purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias, não se aplicando, nesse caso, o disposto no caput do art. 31 desta Lei.

§ 1º O não pagamento ao atleta de salário e contribuições previstas em lei por parte da entidade de prática desportiva cessionária, por 2 (dois) meses, implicará a rescisão do contrato de empréstimo e a incidência da cláusula compensatória desportiva nele prevista, a ser paga ao atleta pela entidade de prática desportiva cessionária.

§ 2º Ocorrendo a rescisão mencionada no § 1º deste artigo, o atleta deverá retornar à entidade de prática desportiva cedente para cumprir o antigo contrato especial de trabalho desportivo”

Assim, importante notar que o legislador se preocupou em inserir no texto legal disposições específicas sobre os contratos de cessão temporária, considerando a grande utilização desse instituto no Brasil e como forma de estabilizar o ambiente jurídico para as partes envolvidas, em especial, o atleta profissional.

Cada negociação tem sua peculiaridade e o contrato de cessão vai refletir, por seus termos e condições, os desejos das partes signatárias naquele momento. Opções de compra dos direitos econômicos do atleta, prorrogação do prazo, condições para retorno ao clube de origem, por exemplo, também são questões que provavelmente serão levadas a termo e seguirão o grau de complexidade dado pelos envolvidos.

Pelo exposto, foi possível perceber que a cessão temporária do atleta de futebol possui, além de importantes previsões legais, muitas disposições regulamentares, tanto em âmbito interno quanto internacional. Sua utilização, bastante significativa no universo do futebol, em especial no Brasil, reflete nuances e diferentes condições, termos e elementos que as negociações impõem.

Por fim, clubes e atletas podem se sentir seguros para concretização de cessões temporárias, tanto do ponto de vista legal, quanto regulamentar, ainda que ela apresente inegável caráter de transitoriedade e reversibilidade.

* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.


[1] Advogado graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV; Pós-graduando em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP); Mestrando em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Sócio do escritório Chamelette Advocacia; e Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD.

[2] Relatório de Transferências – CBF – Disponível em https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/index/raio-x-do-mercado-2020-transferencias-do-futebol-movimentaram-r-2-5. Acesso em 16 de agosto de 2021, 16h10.

[3] RSTP FIFA – Definições: Itens 21 e 22. Disponível em https://digitalhub.fifa.com/m/b749cc4c9afcbf56/original/qdjmoxn91xciw41tojii-pdf.pdf

[4]   Lei 9.615 de 1998 – Art. 38. Qualquer cessão ou transferência de atleta profissional ou não profissional depende de sua formal e expressa anuência. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9615Compilada.htm

[5] RNRTAF – Art. 36, § 4º – É vedada a transferência temporária de atleta não profissional. Disponível em https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210302105543_15.pdf

[6] RNRTAF – Art. 36 – A cessão temporária sujeita-se às mesmas regras aplicáveis às transferências definitivas de atletas, inclusive às disposições referentes à indenização por formação e mecanismo de solidariedade. Disponível em https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210302105543_15.pdf.

RSTP FIFA – Art. 10, item 1 – 1. A professional may be loaned to another club on the basis of a written agreement between him and the clubs concerned. Any such loan is subject to the same rules as apply to the transfer of players, including the provisions on training compensation and the solidarity mechanism. Disponível em https://digitalhub.fifa.com/m/b749cc4c9afcbf56/original/qdjmoxn91xciw41tojii-pdf.pdf

[7] RSTP FIFA – Art. 10, item 2. Subject to article 5 paragraph 4, the minimum loan period shall be the time between two registration periods. Disponível em https://digitalhub.fifa.com/m/b749cc4c9afcbf56/original/qdjmoxn91xciw41tojii-pdf.pdf

[8] RNRTAF – Art. 36, §1º – O prazo da cessão temporária não pode ser inferior a 3 (três) meses, nem superior ao prazo restante do contrato especial de trabalho desportivo do atleta com o clube cedente. Disponível em https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210302105543_15.pdf.

[9] RNRTAF – Art. 36, §2º – O salário do atleta profissional com o clube cessionário não pode ser inferior ao que consta do contrato firmado com o clube cedente, salvo expressa previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho. Disponível em https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210302105543_15.pdf.

[10] RSTP FIFA – Art. 10, item 3 – The club that has accepted a player on a loan basis is not entitled to transfer him to a third club without the written authorisation of the club that released the player on loan and the player concerned. Disponível em https://digitalhub.fifa.com/m/b749cc4c9afcbf56/original/qdjmoxn91xciw41tojii-pdf.pdf

[11] RNRTAF – Art. 38 – O clube cessionário do atleta não tem poder, direito ou faculdade de transferi-lo a terceiros, sendo vedado, portanto, o reempréstimo de atletas entre clubes. Disponível em https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210302105543_15.pdf.

[12] RNRTAF – Art. 38, §5º, §5º – A cessão temporária importa na suspensão dos efeitos do contrato especial de trabalho desportivo celebrado com o cedente. Disponível em https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210302105543_15.pdf.

[13] RNRTAF – Art. 35 – Nas transferências por cessão temporária de atleta profissional, incumbe, privativamente, aos clubes cedente e cessionário ajustar as condições para participação do atleta nas partidas em que se enfrentem. Disponível em https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202103/20210302105543_15.pdf.

[14] Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/gazeta-esportiva/2021/02/19/torcedor-doa-r-1-milhao-para-inter-pagar-multa-e-escalar-rodinei-contra-o-flamengo.htm.

https://www.gazetaesportiva.com/times/internacional/torcedor-doa-r-1-milhao-para-inter-pagar-multa-e-escalar-rodinei-contra-o-flamengo/
https://ge.globo.com/rs/futebol/times/internacional/noticia/inter-recebe-doacao-de-r-1-milhao-para-pagar-multa-e-escalar-rodinei-contra-o-flamengo.ghtml

[15] Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2021/02/21/rodinei-e-expulso-em-inter-x-fla-apos-gauchos-pagarem-r-1-mi-em-liberacao.htm

[16] Lei 9.615 de 1998 – Art. 45.  As entidades de prática desportiva são obrigadas a contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva, para os atletas profissionais, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão sujeitos. (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

§ 1º A importância segurada deve garantir ao atleta profissional, ou ao beneficiário por ele indicado no contrato de seguro, o direito a indenização mínima correspondente ao valor anual da remuneração pactuada. (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).

§ 2º A entidade de prática desportiva é responsável pelas despesas médico-hospitalares e de medicamentos necessários ao restabelecimento do atleta enquanto a seguradora não fizer o pagamento da indenização a que se refere o § 1o deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9615Compilada.htm

[17] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9615Compilada.htm