Igor Gabriel Krüger Poteriko
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD
Por diversas vezes nos deparamos com novas discussões e projetos sendo debatidos no âmbito legislativo do nosso país tendo como objeto o desporto, bem como, buscamos compreender até que ponto o esporte pode se auto regulamentar dado a sua relevância social, pois devido a suas peculiaridades, por vezes, suas práticas acabam indo na contramão do que se pratica fora do âmbito desportivo, contrariando até, algumas normas nacionais.
Historicamente, desde os anos 30, o esporte ganhou espaço nas pautas discutidas no âmbito estatal. Todavia, devemos compreender que quando discutidas tais pautas que versam ao desporto, é de suma importância sabermos os pontos quais uma nova regra advinda do estado traga soluções aos problemas voltados ao esporte local sem causar prejuízos por confrontos com a Lex Sportiva, atentando-se às peculiaridades das modalidades, e, estando em consonância com o que se pratica internacionalmente, dado que, o esporte tem como forte característica a não territorialidade.
Tal característica se mostra pelo fato de que dentro de cada modalidade desportiva, devemos nos garantir que as regras aplicadas a ela, será seguida em todo lugar que ele for praticado, sendo assim necessário um sistema transnacional organizado, com seu próprio regramento.
Para Wladymir de Camargos (2017)
O sistema – subsistema – esportivo é formado por um complexo emaranhado que se revela em um compromisso individual de atletas, membros de comissões técnicas, dirigentes e suas entidades associações, clubes, ligas, entidades regionais, nacionais, continentais, internacionais/transnacionais de se associarem entre eles e que se integram, via mecanismos voluntários de por meio de estatutos, contratos, regulamentos de competições, regras de jogo e decisões de organismos internos de resolução de conflitos. Possuem diferenciação sistêmica, ainda que cada um dos integrantes individualmente esteja “sediado” em um determinado Estado-nacional, o que garante transnacionalidade, autorreferência e autogoverno.[2]
De tal forma, devemos compreender que o regramento desportivo se encontra num sistema transnacional privado, qual adota um modelo de Self Executing. Assim sendo, dentro do mesmo sistema há a elaboração das normas e sua execução.
Tal sistema dedicado às questões jurídicas envolvendo os esportes, dá origem ao que conhecemos como Lex Sportiva, que está baseada na existência de um conjunto de normas, contratos entre federações internacionais, decisões e jurisprudências do CAS/TAS e demais sujeitos da jurisdição esportiva.
Para Leonardo V. P. de Oliveira (2017) a Lex sportiva foi se desenvolvendo por meio das reiteradas decisões do CAS, formando uma fonte do direito transnacional, decisões essas que não seguem o princípio do Stare Decisis[3], por não haver disposição dessas nas regras do CAS que o determinam. Todavia, por se tratar da última instância na hierarquia estabelecida pelas organizações desportivas, o CAS produziu um corpo de lei separado de um sistema jurídico, fundamentando-se nas regras desportivas internacionais, que encontra legitimidade pelo fato de que um tribunal arbitral emitiu uma decisão nela baseada e essa decisão foi cumprida.[4]
Outra opinião, fundamentada por ele, com uma perspectiva mais ampla, vê a Lex Sportiva além das jurisprudências do CAS. Mas, também integrando as regras e regulamentos elaborados pelas organizações esportivas internacionais, como o conjunto de regras elaborado pelas entidades de administração do desporto.
Para essa vertente, o CAS não funciona sozinho e, ao decidir disputas, está aplicando os regulamentos elaborados por órgãos esportivos em que os atletas participam. Portanto, é razoável considerar que embora o CAS tenha feito novos princípios em relação às regras dos esportes, as decisões baseadas nas regras das organizações contribuem à jurisprudência, ou seja, a Lex Sportiva.[5]
Por sua vez Ken Foster traz em sua obra aborda a Lex Sportiva sendo formada por quatro pilares, sendo eles:
- as regras de jogo (regulamentos das entidades de administração do desporto);
- os princípios éticos do esporte (espírito esportivo e princípios do Olimpismo, contendo nele características fundamentais do desporto como integridade, honestidade, competitividade e imprevisibilidade dos resultados);
- princípios gerais de direito aplicados ao esporte (Esta categoria engloba noções como equidade, proporcionalidade, respeito aos contratos, dentre outros pressupostos);
- Direito Desportivo Global (criação de um sistema especial e único que não pertence a nenhum ordenamento estatal e que teria força e legitimidade para se estabelecer em um contexto transnacional).[6]
Conforme exposto, o esporte traz consigo um sistema próprio, muito similar a pirâmide de Hans Kelsen à qual já estamos familiarizados. A qual temos, o COI no topo dessa pirâmide, seguido pelas Federações Internacionais – FI (ex: FIFA, FIVB, FIBA etc..), Federações Continentais (ex: UEFA, CONMEBOL, CONCACAF, CAF, AFC, OFC. federações continentais da modalidade futebol.), Federações Nacionais (ex: CBF, CBV, CBB etc..) e alguns casos como do Brasil, temos também as federações regionais (ex: FPF, FERJ, FMF). Onde cada esporte segue seu próprio regramento, nacional e internacional, porém todos esses regramentos devem seguir essa hierarquia piramidal.
Para garantir a aplicabilidade dos regulamentos, temos os Tribunais e câmaras de resolução de litígios Desportivos, onde cada um tem sua competência. No caso do Brasil, para questões disciplinares “de campo” temos os Tribunais de Justiça Desportiva – TJD, e o Superior Tribunal de Justiça Desportiva – STJD, cada um é dividido entre Comissão Disciplinar e o Pleno (grau de recurso), já para os litígios “extra campo” (advindo de contratos e regulamentos desportivos voltado ao negócio) temos a Câmara Nacional de resolução de Disputas – CNRD, assim como e em casos que transcendem a esfera nacional temos o Tribunal Arbitral du Sport/Court of Arbitration for sport, simplificado como TAS/CAS.
Muito se questiona sobre a sua real existência, se existe uma Lex Sportiva auto regulamentadora ou se os ordenamentos esportivos são apenas um conjunto de regras já existentes em diversos ramos do Direito. Assim também, se essas normas podem entrar em conflito com as normas do Estado, dado a soberania estatal que deve ser respeitada.
Pode-se dizer que a Lex Sportiva está em construção, mas não pode ser dito que não há uma Lex sportiva que se autorregula. Como um grande exemplo temos alguns dispositivos que são peculiares do meio desportivo, e que a prática é tão comum que o estado brasileiro se baseou nessas regras ao elaborar leis que regulamentam o esporte a nível nacional. Como exemplo, nota-se dois mecanismos FIFA, o Solidarity Mechanism[7] e o Training Compensation[8].
Ambos estão previstos no Regulations on the Status and Transfer of Players – RSTP da FIFA. Como é uma prática dentro do futebol mundial, onde favorecia os clubes formadores de atletas em casos de transferências internacionais, a prática foi vista com bons olhos por nossos legisladores. Tanto que, em 2011 através da LEI Nº 12.395/2011 foi inserido o artigo 29-A da Lei Pelé, o Mecanismo de Solidariedade Nacional, com as mesmas bases do mecanismo FIFA no 29-A da Lei nacional. Essa espécie de comissão é devida em transferências onerosas entre dois clubes nacionais, às equipes que participaram da formação do atleta dos 14 aos 21 anos.
Assim como o Mecanismo de Solidariedade Nacional, também temos uma regra baseada no Training Compensation. O Direito de preferência do clube formador do atleta ao primeiro contrato profissional, bem como o registro do atleta na federação como profissional previsto no artigo 29 da Lei Pelé. Porém, tem grandes diferenças da regra da Federação Internacional e a prevista na lei brasileira. Como a preferência de renovação, e também o valor devido de indenização que ao invés de ter uma tabela base, a lei estabelece que o valor poderá ser de até 200x os gastos comprovadamente efetuados com a formação do atleta, no tempo em que estava no clube.
Há também, casos onde a lei estatal entra em conflito com normas pertencentes a Lex Sportiva. Ao se deparar com esse conflito de normas, segundo Álvaro Melo Filho, embora seja ela dotada de autonomia e transnacionalidade, tornando-a inarredável e prevalecente. Por si, não é capaz de comprometer a soberania do País.
“A lex sportiva internationalis promanada da FIFA, FIBA, FIVA, FIA etc., torna-se inarredável e prevalescente, em algumas hipóteses, sem comprometer ou infirmar a soberania do País, pois em uma sociedade globalizada, o desporto como direitos humanos, ecologia, comunicação, espaço aéreo, por exemplo, são matérias que refogem a uma normatização exclusivamente nacional. Vale dizer, a autonomia desportiva dos órgãos diretivos internacionais ignora fronteiras, pois suas regras e estrutura são universais, o que determinou a mondialization du sport.
(…)
A noção de lex sportiva vincula-se a uma ordem jurídica desportiva autônoma, constituída não somente dos regulamentos autônomos das federações desportivas nacionais, em geral harmonizadas com a legislação desportiva estatal onde têm sua sede, às regras oriundas das Federações Internacionais, e, ainda às sentenças e decisões promanadas dos tribunais de justiça desportiva e cortes arbitrais desportivas.”[9]
Todavia, o fato de não haver força para se sobressair perante a soberania estatal, não a torna ineficaz, justamente por conta de sua característica transnacional e por se tratar de práticas e decisões pacificadas por órgãos autônomos e privados. Visto que, há um sistema próprio que é auto regulamentado, e as entidades de administração do desporto brasileiras fazem parte desse sistema, devendo seguir esse regramento.
Isso significa que a regra estatal pode ser aplicada dentro do Brasil, mas caso conflitante com as internacionais, a entidade brasileira tem o ônus de essa regra seguida internamente não ser reconhecida pelas Federações e demais entes do mundo desportivo. Como exemplo mais recente e quiçá mais transparente, vê-se o conflito entre período de vigência de contrato profissional para atletas menores de 18 anos, onde na Lei Pelé a partir dos 16 anos do atleta, o clube já pode oferecer um contrato de até 5 anos de duração como previsto em seu artigo 30, que é replicado no Regulamento Nacional De Registro e Transferência De Atletas De Futebol (RNRTAF).
Já o RSTP da FIFA, artigo 18 parágrafo 2, dispõe que os jogadores com menos de 18 anos não podem assinar um contrato profissional por um período superior a três anos, e qualquer cláusula referente a um período mais longo não deve ser reconhecida.59Desta forma nas atualizações do RNRTAF dispõe no seu artigo 7, Parágrafo único:
“Os atletas menores de 18 (dezoito) anos podem firmar contrato com a duração estabelecida no caput deste artigo amparados na legislação nacional, mas, em caso de litígio submetido a órgão da FIFA, somente serão considerados os 3 (três) primeiros anos, em atendimento ao art. 18.2 do FIFA RSTP.”[10]
O caso exposto, demonstra bem a soberania do sistema piramidal do esporte que foi abordado, e o caráter inarredável apontado por Álvaro Melo Filho. Devido a uma regra prevista em Lei Nacional, que estando em desconformidade com o regramento internacional, teve de ser readaptado. Em que no caso prático, um contrato de 5 anos firmado por um atleta menor, após o terceiro ano continua tendo vigência nacional. No entanto, caso uma equipe estrangeira queira contar com o atleta, ele se vê livre para firmar um novo vínculo, pois esse período que extrapola o regulamento FIFA não é reconhecido internacionalmente.[11]
Inclusive há jurisprudência da Corte Arbitral do Esporte CAS/TAS estabelecendo que:
“as leis nacionais e os regulamentos internos não são a lei aplicável no caso de um litígio com um elemento internacional. Esses litígios são exclusivamente regidos pelos termos do RSTP da FIFA e suas definições.
(…)
no caso de uma transferência entre clubes pertencentes a diferentes associações como o caso em questão, no caso de inconsistência entre uma disposição da CBF e uma disposição da FIFA, a disposição da FIFA prevalecerá”[12]
Neste sentido, observa-se tanto o modelo Self Executing do sistema de organização do desporto, quanto a autonomia dos ordenamentos desportivos e a competência do CAS em suas decisões. Contribuindo assim na manutenção da Lex Sportiva, para que ela tenha um padrão universal, tornando-se um contrapeso para ingerências estatais.
Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor desse texto.
[1] Acadêmico do 10º período do curso de Direito da faculdade UCP-Faculdades do centro do Paraná, membro e pesquisador do Grupo de estudo Direito e Desporto São Judas.
[2] CAMARGOS,Wladymir.Constituição e esporte no Brasil. editora Kelps, p 138 (2017).
[3] A teoria do Stare Decisis relaciona-se com o brocardo latino stare decisis et non quieta movere (“mantenha-se a decisão e não ofenda o que foi decidido”).
[4] de Oliveira, LVP Lex sportiva como a lei que rege os contratos. Int Sports Law J 17, 101–116 (2017). Disponível em https://doi.org/10.1007/s40318-017-0116-5 . Acesso em 30 de novembro de 2021
[5] de Oliveira, LVP Lex sportiva como a lei que rege os contratos. Int Sports Law J 17, 101–116 (2017). Disponível em https://doi.org/10.1007/s40318-017-0116-5 . Acesso em 30 de Maio de 2021
[6]FOSTER, Ken. Lex Sportiva: Transnational Law in action, p. 241. In: SIEKMAN, Robert C. R.; SOEK, Janwillem. (Org.). Lex Sportiva: What is Sports Law? Haia: Springer, 2012.
[7] Solidarity Mechanism: Trata-se de uma prática dentro do sistema FIFA sobre transferências de atletas, criado no início dos anos 2000. Quando há uma transferência de atleta onerosa entre clubes filiados a Federações Nacionais distintas da pertencente ao clube formador do atleta, todas as equipes ao qual esse atleta passou dos 12 aos 23 anos recebem uma “comissão”, sendo o valor total da comissão em 5% do valor da transferência.
[8] Training Compensation: Também é uma prática dentro do sistema FIFA sobre transferências de atletas, criado no ano de 2001. trata-se de uma indenização por formação que é devida quando o atleta é registrado pela primeira vez como atleta profissional, ou quando ele é registrado pela primeira vez em uma Federação Nacional distinta de seu clube anterior, em razão do clube ter oferecido a formação desportiva do atleta até seus 21 anos. O valor da indenização corresponde ao da tabela prevista no RSTP multiplicado ou sendo proporcional ao tempo de formação do atleta naquele clube.
[9] MELO FILHO, Àlvaro. Direito desportivo: aspectos teóricos e práticos. São Paulo. IOB Thomson, 2006, p. 27-28. apud.CALIXTO, V.M.,A AFIRMAÇÃO DA LEX SPORTIVA COMO UMA ORDEM JURÍDICA TRANSNACIONAL AUTÔNOMA. Disponivel em https://bdm.unb.br/bitstream/10483/6788/1/2013_ViniciusMachadoCalixto.pdf . Acesso em 30 de novembro,2021.
[10] FIFA. Regulations on the Status and Transfer of Players, Zurich, 2020.
[11]CBF, REGULAMENTO NACIONAL DE REGISTRO E TRANSFERÊNCIA DE ATLETAS DE FUTEBOL, Rio de Janeiro, 2021.
[12] CAS 2009/A/1781 FK Siad Most v. Clube Esportivo Bento Gonçalves, sentença de 12 de outubro de 2009, n. 38. No mesmo sentido, CAS 2007/A/1370 & 1376.
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