Giulianna Selingardi
Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD
A briga entre Rússia e Ucrânia não é recente. Da dança de poder entre as duas principais repúblicas da União Soviética, passando pela anexação da Crimeia em 2014 ao ciúme czarista de Putin pela paquera entre Ucrânia e OTAN (Organizações do Tratado do Atlântico Norte). A recente escalada das tensões entre os dois países devido à aproximação da Ucrânia com o núcleo geopolítico ocidental e o crescimento inflado de grupos nacionalistas ucranianos, reflete não só em movimentações estratégicas dos líderes políticos ao redor do mundo, como em frequentes demonstrações de poder bélico na fronteira entre os dois países, tracionando os pontos de conflito.
Aos levianos que não titubeiam ao proferir que “política e futebol não se misturam”, a situação atual escancara outra realidade ao percorrer o mesmo caminho de incontáveis capítulos esportivos ao longo da história. Os desentendimentos entre Rússia e Ucrânia convidam a FIFA (Fédération Internationale de Football Association) e UEFA (Union of European Football Associations) à cena para, juntas, protagonizarem desconfortáveis episódios de gerencia política envoltas de imparcialidade e neutralidade.
Em julho de 2014, no auge da crise diplomática pela disputa da Crimeia, o Comitê de Emergência da UEFA decidiu, em conjunto com a União de Futebol Russa e a Federação de Futebol da Ucrânia, que os times dos respectivos países não poderiam se enfrentar em competições europeias por motivos de segurança. Naquele ano, Zenit (RUS) e Dnipro (UKR) foram separados no sorteio das chaves e o bloqueio se aplicou tanto à Champions League como à Europa League, permanecendo até hoje.
O impacto dos conflitos extravasou as competições europeias. Pela eliminatória da Copa do Mundo de 2022, Rússia e Ucrânia estão, obrigatoriamente, em chaves diferentes. O bloqueio de sorteio é prática comum da FIFA e velho conhecido de países imersos em disputas geopolíticas e suspiros de independências como Armênia e Azerbaijão, Gibraltar e Espanha e Kosovo com Bósnia, Herzegovina, Sérvia e a própria Rússia.
Uma indigesta gafe também aconteceu durante o lançamento do logo oficial da Copa do Mundo de 2018, realizada na Rússia. A FIFA veiculou em sua campanha publicitária um vídeo que exibia o mapa da anfitriã incluindo a Crimeia, anexada em 2014. Para o cenário internacional, o vídeo chancelava o reconhecimento da entidade quanto ao mérito da disputa geopolítica pelo território, ato na contramão do seu longo histórico de imparcialidade diplomática, frequentemente atrelada à, tão e somente, omissão.
O pedido de desculpa foi bem recebido pela Ucrânia que aceitou, mas não esqueceu. O contra-ataque veio na Eurocopa 2020, no uniforme oficial da seleção que estampou no peito da camisa amarela o mapa da Ucrânia com a região da Crimeia. A camisa também trazia o slogan “Glory to the heroes. Glory to Ukraine” que remete diretamente à Segunda Guerra Mundial e aos nacionalistas ucranianos que lutaram ao lado dos nazistas. Após péssima repercussão e repreensão da mídia e demais seleções, a UEFA aprovou apenas a utilização do trecho “Glory to the heroes” e ordenou a retirada do restante.
Trazendo o conflito entre Rússia e Ucrânia para a luz do direito desportivo, com a anexação da Crimeia, três times da região absorveram o evento e o refletiram em campo. O TSK Simferopol, SKChF Sevastopol e o Zhemchuzhina Yalta decidiram, na época, realizar pequenas mudanças nos seus nomes de origem, alterar seus endereços para localidades russas e reestruturar as equipes apenas com jogadores com passaporte russo para que, deste modo, preenchessem os requisitos para participarem da Série C da liga russa. O movimento brusco desses times e ríspidos protestos da Federação de Futebol da Ucrânia, fizeram com que a UEFA declarasse que todos os jogos de clubes crimeios organizados pela União Russa de Futebol não seriam reconhecidos oficialmente. Em prol da manutenção do futebol na região, a solução da associação, juntamente com a FIFA, foi fundar a Crimean Premier League, com oito times locais.
As entidades de administração do futebol encaram agora outro enorme problema de gestão e logística: a final da UEFA Champions League 2022 que ocorreria no dia 28 de maio em São Peterburgo, no Krestovsky Stadium, mais conhecido como Gazprom Arena, nome da principal estatal de gás russa e antiga parceira da organizadora. Há poucos meses do evento, a Rússia reconheceu, na última segunda-feira, a independência de duas áreas separatistas da Ucrânia: Donetsk e Luhansk. O ato incendiário do presidente russo acelerou o desencadear de um conflito armado às vésperas do segundo principal evento do futebol mundial. A UEFA, meio à pressão política interna e externa, aguarda a reunião de emergência marcada para o dia 25/02/2022 (sexta-feira) para decretar a alteração de sede.
Quanto às independências de Donetsk e Luhansk no âmbito legal desportivo, a situação simetriza com o clamor catalão, basco e as situações de Kosovo, Gibraltar e outros territórios que pleiteiam – ou já pleitearam – junto à UEFA e FIFA seu reconhecimento como independentes.
Em um cenário hipotético, caso a região da bacia de Donbas consiga, de fato, se estabelecer como independente e deseje a admissão na FIFA para constituição de uma seleção e liga nacional, o pedido deverá ocorrer com base no Artigo 11, sessão 5 do Estatuto da FIFA, ao Secretariado Geral da FIFA:
“11 – Admissão: qualquer associação que seja responsável pela organização e supervisão do futebol em todas as suas formas em seu país, pode se tornar uma associação membro.”
Entre outras regras e requisitos, como conformidade com o Estatuto e reconhecimento do Corte Arbitral do Esporte, o item 6 delibera especificamente sobre regiões que buscam sua independência:
“11, 6. Uma associação de uma região que ainda não tenha conquistado a independência pode, com autorização da associação membro do país de que depende, também solicitar a admissão à FIFA.”
Ainda que sobressaia o empecilho do trecho “qualquer associação que seja responsável pela organização e supervisão de todas as formas de organização do futebol em seu país” – uma vez que as Federações de Ucrânia e Rússia dominam a organização do futebol na região – o disposto no item 6 acaricia as esperanças dos separatistas ao trazer a possibilidade de uma região solicitar admissão na FIFA, ainda não tenha conquistado ou não tenha a independência oficialmente conhecida. O pequeno e desanimador detalhe fica por conta da obrigatoriedade da autorização do membro representante do país do qual pertence a região, o que implicaria, neste caso, na anuência da Federação Ucraniana.
Não bastasse o processo pela FIFA ser árduo e moroso, legalmente, não é possível uma federação ser admitida pela FIFA sem que, antes, seja reconhecida e admitida por sua confederação continental correspondente.
“11, 2. A adesão só é permitida se uma associação for atualmente membro de uma Confederação.”
O que nos traz diretamente ao Estatuto da UEFA e o Artigo 5º sobre admissão de novos membros:
“Filiação – Artigo 5, 1: A adesão à UEFA está aberta a associações nacionais de futebol situadas no continente europeu, sediadas num país que seja reconhecido como Estado independente pela maioria dos membros das Nações Unidas, e que sejam responsáveis pela organização e implementação do futebol e assuntos relacionados no território de seu país.”
A UEFA, em tom mais rígido, ignora o independentismo e além de reiterar a FIFA, ainda limita a admissão àquelas entidades que forem situadas em um país devidamente reconhecido como Estado independente. Condição esta que, geopoliticamente, flerta com o impossível ao considerarmos o emaranhado caótico instável onde habitam Rússia, Ucrânia e União Europeia. Paralelo às engrenagens da geopolítica externa, a possível federação de Donbas ainda teria o insalubre trabalho de articular a política futebolística dentro do Congresso da UEFA, detentor do poder discricionário de aceitar ou recusar uma candidatura.
Propício trazer à tona o episódio da tumultuada solicitação de admissão feita pela Associação de Gibraltar, tanto na UEFA como na FIFA. O conflito frio entre Reino Unido e Espanha pelo controle de Gibraltar impactou diretamente no futebol local. A Associação de Futebol de Gibraltar, fundada em 1895, só pleiteou sua associação à FIFA em 1997, com apoio apenas de Reino Unido, Inglaterra, Escócia e País de Gales, enquanto a pressão da Espanha ameaçava retirar os times espanhóis de todas as competições da UEFA. Após muita atuação de bastidores da Real Federação Espanhola de Futebol, reviravoltas inesperadas e intermináveis recursos tramitados na CAS, o imbróglio se resolveu em 2016, quando a Corte ordenou que a FIFA apreciasse a solicitação da Associação de Gibraltar em congresso, através de votação. Só então, por 172 votos a favor, a Associação de Gibraltar conseguiu, de uma vez por todas, se tornar membro da FIFA.
Quanto à uma possível nova liga nacional, os times da região separatista ainda são considerados como ucranianos. A exemplo dos times da Crimeia que intentaram disputar o campeonato russo, caso o Shaktar Donetsk, que disputou o Campeonato da URSS até 1991, decidir por se filiar à federação russa terá, de antemão, que conseguir ser desvincular da Federação de Futebol da Ucrânia.
Saindo das suposições ainda muito distantes e incertas, o fato é que os últimos dias agregaram episódios da mais alta expressão à história mundial. A muito provável anexação da região de Donbas pela Rússia ou, considerando a hipótese extrema, de uma completa ocupação da Ucrânia pelo vizinho, parecem cenários cada vez mais factíveis. O que já podemos chamar de Guerra da Ucrânia vai se desenrolar por indetermináveis meses ou anos e, independentemente do desfecho, o reconhecimento da delimitação de território feita por algum deles no futuro também passará pela chancela de UEFA e FIFA, meio à inúmeras manifestações de torcidas e jogadores. Se um dia veremos a Seleção Russa representar os dois países como uma só, tal qual a Seleção da URSS, é uma pergunta concebível.
Transcendendo os empecilhos jurídicos observados na análise específica dos Estatutos, as movimentações geopolíticas ditarão o ritmo das resoluções à serem aplicadas ao futebol russo e ucraniano. Com o respaldo de todas as vezes em que o futebol foi o fio condutor do soft power meio às mais diferentes formas de manifestação social, e, como bem disse Sacchi: “O futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes”, podemos ter a certeza de que veremos dentro das 4 linhas a política e o futebol disputando um jogo reativo de perde pressiona – de dar inveja a qualquer bom volante.
* Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora desse texto.
Referências:
FIFA. Statutes, 2021 edition. Zurique,
UEFA. Statutes, 2021 edition. Nyon.
TAS/CAS. Arbitration CAS 2002/O/410 The Gibraltar Football Association (GFA)/Union des Associations Européennes de Football (UEFA). Lausanne, 2003.
NYE, 2004, p. 1-2 apud PIZARRO, 2017
Putin reconhece duas regiões separatistas da Ucrânia como independentes, 21/02/2022 16h36 <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/02/21/putin-diz-na-tv-que-vai-reconhecer-duas-regioes-separatistas-da-ucrania-como-independentes.ghtml>
Acompanhe o podcast em: https://open.spotify.com/episode/0UF4f6mvk7DR2bG14YSTqg