Por Milton Jordão
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
O mercado do futebol despertou em 21 de outubro de 2021 mais esperançoso com a publicação no Diário da União da Lei Federal n° 14.193, mais conhecida como “Lei da SAF”, ou seja, a legislação que instituiu a sociedade anônima do futebol no ordenamento jurídico.
A bem da verdade, a caminhada até a sua promulgação enfrentou longa tramitação no Senado Federal; depois um “embate” com o projeto de lei do Deputado Federal Pedro Paulo (clube-empresa); e, por fim, um necessário debate por todo o país com os players do mercado do futebol, liderado pelo Senador Carlos Portinho.
O curioso é que quando menos poderia se imaginar que o projeto fosse ganhar impulso, durante a pandemia de covid-19, entre 2020 e 2021, foi exatamente nesse momento difícil que o mundo e o país enfrentaram (ou enfrentam ainda?) que o projeto de lei ganhou fôlego e saiu da gaveta para a realidade jurídica.
Todavia, ainda que se entendesse que essa via crucis seria por si só árdua, a lei aprovada pelas Casas Legislativas foi objeto de veto presidencial, malgrado posteriormente desconsiderado, sendo preservado o texto originário do Congresso Nacional.
Havia uma euforia represada até a vigência da nova lei, que se transformou em esperança com o porvir da SAF. Diversos setores do mercado do futebol tinham como insuficiente segurança jurídica neste segmento, para que grandes investidores olhassem com afeição para o Brasil.
O modelo associativo (majoritário aqui no país), a princípio, não agrada àquele que quer investir no futebol, pois, ao longo dos anos diferentes experiências revelaram percalços, alguns até desembocando nas barras da Justiça Criminal, firmando uma sensação de incerteza. Num jargão popular, o investimento num clube se transforma em verdadeiro “saco sem fundo”, o que desestimula quem quer obter retorno financeiro.
D´outro giro, na Europa, vozes atribuem à existência das sociedades anônimas no âmbito do futebol os bons resultados econômico e desportivo tanto das ligas, quanto dos clubes. E, como consectário, influem na crença de que este modelo é o melhor caminho para o Brasil.
Assim, natural se indagar: será a SAF luz no fim do túnel?
Não se pode deixar de reconhecer que o futebol brasileiro é um ambiente atrativo, mas que não consegue passar aos que pretendem investir e colher frutos disto um nível mínimo de segurança jurídica.
Por outro lado, o problema em si não é a natureza jurídica do clube, se é uma empresa limitada, associação ou sociedade anônima. Quiçá a ausência de profissionalismo se revele como maior entrave na criação e desenvolvimento de ambiente mais confiável para se investir no mercado da bola. Inúmeras medidas têm sido adotadas para corrigir esse rumo, seja a partir do Estado (vide Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte), seja pelo próprio sistema desportivo (v.g.: licenciamento para participar de competições). A ideia de se ter a SAF como regra geral no futebol brasileiro residiria em reforçar a cultura de profissionalismo, haja vista as obrigações jurídicas dela decorrente quando comparada com as outras espécies de natureza jurídica.
Nessa toada, a chegada da lei no mundo jurídico provoca um entusiasmo justo – porém, as vezes excessivamente otimista – com o futuro do mercado da bola. De fato, a SAF transmite a sensação de segurança jurídica há muito pretendida, bem como não é uma anistia para os devedores. E este último quesito se torna sobremaneira relevante, já que se tem como praxe a inadimplência e desrespeito aos contratos nesse segmento.
Assim, tem-se experimentado nesse primeiro instante quase que uma safmania, onde ela se torna a solução para os problemas do clube. Essa é uma visão focada em livra-se de dívidas e ter um parceiro (investidor) que garanta um alívio imediato, ou seja, as novas de centenas de milhões para dispender no departamento de futebol, o que alegra, deveras, a massa de torcedores.
Curioso que isso se espraiou nos mais diversos níveis do futebol nacional, de clubes pequenos aos grandes, dos novos aos tradicionais. Todavia, o mercado irá regular o sucesso da SAF no futebol brasileiro. Ao que se vislumbra, nesse primeiro momento, tem-se uma demanda reprimida entre os considerados grandes clubes, principalmente aqueles oprimidos por dívidas impagáveis (em verdadeiros quadros de falência). Entre os clubes médios reina a expectativa e o sonho de achar um midas, já existindo estudos e avanços na constituição de SAFs. E as notícias não param de surgir a respeito dos interessados em ingressar nessa nova vida.
A bem da verdade, essa nova lei, sem dúvidas, poderá mudar consideravelmente o futebol brasileiro em diversos aspectos. Naturalmente, a Lei em si não é sinônimo de perfeição, existem pontos que poderiam ser mais explorados; contudo, em linhas gerais, ela será mais benéfica do que outras tantas que lhe antecederam.
Há um incentivo à profissionalização e ao desenvolvimento de cultura empresarial no âmbito esportivo. Isso, por si só, motiva que grandes investidores busquem adquirir clubes ou seus departamentos de futebol para convertê-los em SAF. Porém, o entusiasmo e a euforia não podem podar a razão e o estudo mais detido do que implica essa mudança.
Ao trilhar as sendas da nova lei, os clubes inauguram uma nova etapa da sua vida, diversa da anterior em termos administrativos e visão do negócio. Por isso, é necessário que se tenha certeza do que se quer e ciência das consequências. Numa linguagem simples e direta, o clube passará a ter dono, e não se fala aqui no sentido figura como o torcedor que se acha dono do seu objeto de amor e paixão, o clube.
Assim, se hoje o torcedor elege o presidente do clube pensando no departamento de futebol, a partir de amanhã não mais poderá fazê-lo; o membro do Conselho Deliberativo que tem função relevante na aprovação de contas ou fiscalizar a gestão do presidente, por exemplo, deixará de ter a relevância que anteriormente tinha. Logicamente, a associação (clube) ainda existirá, mas será um ator coadjuvante com a SAF, isso se for bem gerida, caso contrário, poderá ser esquecida até pela torcida.
É um verdadeiro câmbio de realidade! Um mundo novo!
Ao observar a Lei da SAF por outro prisma, constata-se a oportunidade de trilhar um caminho de maior profissionalismo, com melhores práticas de governança e respeito à legalidade, que repercutirão com a valorização do mercado e atração de vastas somas de dinheiro para os clubes e a indústria do futebol. Isso não significará uma ponte de ouro, do fracasso ou lamaçal de dívidas para o sucesso desportivo e financeiro. É preciso parcimônia para se avaliar o melhor momento de fazer a transmutação, até porque a regência da relação entre clube e investidor é da lei de mercado.
Uma questão, ao meu sentir, negativa reside no “retalhamento” da Lei para atender a pedidos formulados por clubes que não se transformaram em SAF. Por certo, cientes das costumeiras “inovações” que se pode colher da jurisprudência nacional, tem-se observado um emprego indevido da nova legislação, distanciando-se do espírito da lei.
A efervescência do momento contagia a todos! Dá margem a teses inovadoras que ganham força no âmbito do Poder Judiciário, no entanto, a cautela se impõe, não apenas pelo prestígio da aplicação do bom direito, outrossim, para que não se criem anátemas e fuga do que quis, efetivamente, o legislador.
A luta para que a lei seja cumprida nos seus exatos limites, sem interpretações elásticas ou inovações fruto de ativismo judicial é relevante para se conceber um microssistema jurídico destinado ao futebol de onde se extraia como maior característica a segurança jurídica e o zelo pela legalidade.
A SAF não é a luz no fim do túnel, talvez, seja o próprio túnel que o clube tenha que atravessar para alcançar o destino que almeja.
* Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor desse texto.
[1] Advogado. Sócio do escritório Jordão & Possídio Sociedade de Advogados. Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL. Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de Lleida (Espanha). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Nacional (Triênios 2018/2021, 2015/2018). Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia (IDDBA). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SE (triênio 2018/2021) Ex-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA (Triênios 2015/2018 e 2012/2015). Presidente do STJD do Judô. Ex-Procurador do STJD do Futebol. Autor de artigos e obras jurídicas sobre Direito Desportivo. Membro Filiado e Colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.
Acompanhe o podcast em: