O ALCANCE DO REGIME CENTRALIZADO DE EXECUÇÕES NA ARBITRAGEM

João Felipe Artioli

Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.

Uma questão jurídica foi objeto de debate no escritório entre o Dr. Renato Maringoni Lopes e eu, com quem compartilho os créditos por este artigo e pela argumentação que se pretende suscitar.

Trata-se de uma matéria veiculada pelo repórter Rodrigo Mattos intitulada “Dívida de Vasco gera conflito entre tribunal da CBF e Justiça e trava clube”[2]. Em síntese, o CR Vasco da Gama aderiu ao Regime Centralizado de Execuções (RCE) previsto no artigo 14 e seguintes da Lei nº 14.193/2021 (Lei da SAF) para pagamento de dívidas cíveis e trabalhistas, destinando 20% de suas receitas para pagamento e com ordem de preferência para pagamento.

Em razão de um débito discutido perante a Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a Justiça oficiou o órgão arbitral de que todos os débitos sejam pagos dentro do RCE.

O objeto de análise não é o caso em si, mas as questões jurídicas que dele decorrem, tendo-o como norte exemplificativo.

Primeiro de tudo, o RCE é um regime centralizado de execuções. Em outras palavras, não se centraliza a universalidade de dívidas do clube, mas aquelas que estão em regime de execução. Os procedimentos arbitrais que tramitam na CNRD não são execuções, muito embora possam entrar em fase de execução, similar ao que ocorre no Poder Judiciário.

Entretanto, algumas questões jurídicas são relevantes, ensejando um contraponto interessante.

O artigo 14, parágrafo § 2º, da Lei da SAF[3] restringe a competência dos “poderes” que deferem o RCE, quais sejam, o Tribunal Regional do Trabalho e o Tribunal de Justiça. Não se inclui qualquer órgão arbitral.

Por outro lado, o parágrafo único do artigo 18 da Lei da SAF[4] fala em dívidas de natureza cível e trabalhista o que, em tese, alcançaria dívidas de iguais naturezas na esfera arbitral.

Nessa senda interpretativa, o artigo 16 da Lei da SAF, no caput, estabelece um plano de credores e inclui, pelo seu inciso III, além de execuções, “a estimativa auditada das suas dívidas ainda em fase de conhecimento”.[5]

Em uma análise sistemática da lei, não parece, à primeira vista, que seja possível incluir os débitos oriundos da CNRD no RCE, ainda que em fase de execução, pois a lei é restritiva nesse ponto. Tanto é assim que, além de não incluir os débitos arbitrais, a Lei da SAF também não incluiu a possibilidade de se inserir no RCE os débitos federais, estaduais ou municipais, por exemplo.

Analisando esse aparente conflito, seria relevante questionar se o RCE alcançaria a CNRD, órgão arbitral.

A CNRD, como órgão arbitral que é, possui competência própria definida pela Lei nº 9.307/1996[6]; instituto jurisdicional que foi confirmado pelo artigo 42 do CPC[7], dispondo que “as causas cíveis serão processadas e decididas pelo órgão jurisdicional nos limites de sua competência, ressalvado às partes o direito de instituir juízo arbitral, na forma da lei”.

É possível concluir, então, que o Poder Judiciário não poderia invadir a competência arbitral para determinar como deverá se dar o pagamento dos débitos que ali tramitam, ainda que em fase de execução.

Isso, porém, não afasta a cooperação que a CNRD pode ter com o Poder Judiciário, conforme artigos 22-A[8] e 22-C[9] da Lei de Arbitragem e artigos 67[10], 68[11] e 69[12] do CPC, que, por uma interpretação sistemática, estabelecem uma relação de interdependência. E, se assim for, a recíproca também pode ser verdadeira, nada obstando que o Poder Judiciário, por via da cooperação, requisite ao órgão arbitral a inclusão de débitos seus no RCE.

Logo, seria possível admitir a inclusão de débitos que tramitam perante a CNRD no RCE estabelecido perante o Poder Judiciário.

Retomando o caso paradigma, partindo do pressuposto que, de fato, tenha sido aplicado o artigo 14 e seguintes da Lei da SAF por analogia, essa talvez não seria a melhor solução.

Os juízos de execuções podem estabelecer outras formas de reunião de execuções que atendam a finalidade buscada, a despeito dos atos específicos emanados pelos Tribunais para tanto, como já ocorreu em diversos casos.

Tome-se como exemplo o Plano de Administração realizado pela AA Ponte Preta. No período de janeiro de 2005 a julho de 2010, pagou R$ 31.004.107,50 em sua primeira fase e, no período de agosto de 2010 a março de 2016, pagou R$ 16.725.354,04 em sua segunda fase.

Além disso, o quadro geral de credores é estabelecido com as execuções então apuradas e com a estimativa daquelas dívidas indicadas, conforme consta no já referido artigo 16 da Lei da SAF, não se justificando a inclusão de débitos oriundos do órgão arbitral que sequer foram estimados na consolidação do RCE.

Por todo o entendimento, ainda que se tratasse de uma SAF, o RCE que tramita perante o Poder Judiciário não poderia alcançar a CNRD de modo compulsório, pois o órgão arbitral não está entre os poderes indicados na lex specialis, o que configuraria invasão de competência.

A Lei da SAF é uma lei específica para clubes de futebol que sejam SAF, não sendo razoável aplicar os seus dispositivos por extensão ou analogia, sob pena de desvirtuá-la e, consequentemente, ocasionar insegurança jurídica, haja vista inexistir lacunas sobre o tema nas leis gerais aplicáveis.

Em conclusão, o RCE trata das execuções que tramitam no Poder Judiciário, especificamente perante as Justiças do Trabalho e a Comum. Fosse o contrário, qualquer dívida que o clube de futebol possua, sendo ou não SAF, mesmo que ainda não se encontrasse em execução ou mesmo podendo ser paga na CNRD, deveria ser levada à RCE. Não é esse o racional!

Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor desse texto.


[1] Graduado em Direito pela FACAMP, Pós-graduado em “Direito Tributário” pelo IBET e em “Aprimoramento em Compliance” pela FACAMP, membro filiado e colunista do IBDD, sócio do escritório Ezarchi & Artioli Advogados Associados, que atua no Direito Desportivo desde 1996.

[2] https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rodrigo-mattos/2022/03/31/divida-de-vasco-gera-conflito-entre-tribunal-da-cbf-e-justica-e-trava-clube.htm?utm_source=twitter&utm_medium=social-media&utm_content=geral&utm_campaign=esporte

[3] Art. 14.  O clube ou pessoa jurídica original que optar pela alternativa do inciso I do caput do art. 13 desta Lei submeter-se-á ao concurso de credores por meio do Regime Centralizado de Execuções, que consistirá em concentrar no juízo centralizador as execuções, as suas receitas e os valores arrecadados na forma do art. 10 desta Lei, bem como a distribuição desses valores aos credores em concurso e de forma ordenada.

(…)

§ 2º O requerimento deverá ser apresentado pelo clube ou pessoa jurídica original e será concedido pelo Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, quanto às dívidas trabalhistas, e pelo Presidente do Tribunal de Justiça, quanto às dívidas de natureza civil, observados os requisitos de apresentação do plano de credores, conforme disposto no art. 16 desta Lei.

[4] Art. 18.  O pagamento das obrigações previstas no art. 10 desta Lei privilegiará os créditos trabalhistas, e cumprirá ao plano de pagamento dos credores, apresentado pelo clube ou pessoa jurídica original, definir a sua destinação.

Parágrafo único. A partir da centralização das execuções, as dívidas de natureza cível e trabalhista serão corrigidas somente pela taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), ou outra taxa de mercado que vier a substituí-la.

[5] Art. 16.  Ao clube ou pessoa jurídica original que requerer a centralização das suas execuções será concedido o prazo de até 60 (sessenta) dias para apresentação do seu plano de credores, que deverá conter obrigatoriamente os seguintes documentos:

(…)

III – as obrigações consolidadas em execução e a estimativa auditada das suas dívidas ainda em fase de conhecimento; (…)

[6]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9307.htm?msclkid=8c29b6c1bbf611ecb9aa895b7f687827

[7] Art. 42 As causas cíveis serão processadas e decididas pelo juiz nos limites de sua competência, ressalvado às partes o direito de instituir juízo arbitral, na forma da lei.

[8] Art. 22-A. Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência.

[9] Art. 22-C. O árbitro ou o tribunal arbitral poderá expedir carta arbitral para que o órgão jurisdicional nacional pratique ou determine o cumprimento, na área de sua competência territorial, de ato solicitado pelo árbitro.

[10] Art. 67. Aos órgãos do Poder Judiciário, estadual ou federal, especializado ou comum, em todas as instâncias e graus de jurisdição, inclusive aos tribunais superiores, incumbe o dever de recíproca cooperação, por meio de seus magistrados e servidores.

[11] Art. 68. Os juízos poderão formular entre si pedido de cooperação para prática de qualquer ato processual.

[12] Art. 69. O pedido de cooperação jurisdicional deve ser prontamente atendido, prescinde de forma específica e pode ser executado como: (…)

 

Acompanhe o podcast em: https://open.spotify.com/episode/3IDVzKIatc2nzZhVM80nuU