Por Selma Melo e Leonardo Herrero[2]
Membros Filiados ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
“Ela tá querendo se aproveitar de uma situação porque é mulher”.
Essa foi a inacreditável justificativa que o ex-técnico da Desportiva Ferroviária, Sr. Rafael Soriano, usou para justificar o inaceitável: a cabeçada contra a assistente de arbitragem Sra. Marcielly Netto, somada a xingamentos de “vagabunda”, no intervalo do jogo contra o Nova Venécia. A principal reclamação do ex-treinador da Agremiação Desportiva foi direcionada ao árbitro da partida, porém, foi na direção de Marcielly que ele partiu.
Percebe-se que o ato de Soriano revela uma, dentre as várias formas de desrespeito e preconceito pela presença feminina em modalidades esportivas. Seja enquanto atletas ou demais profissionais atuantes. Para o ex-treinador do clube capixaba, provavelmente era um erro a bandeirinha ocupar aquele espaço, e um pecado maior, “tirar vantagem” de uma agressão (se é que existe alguma vantagem em sofrer violência).
Ora, é cediço que a relação da mulher com o mundo esportivo é caracterizada por um espaço não isonômico entre os gêneros, especialmente no que tange ao futebol. Afinal, tanto na sociedade quanto no esporte, as relações de gênero não se dão de maneira igualitária e simétrica. Apesar do aumento no envolvimento das mulheres nas mais diversas modalidades – seja na posição de atleta, torcedora, gestora, médica etc. – elas ainda ocupam um lugar pouco representativo quando comparada aos homens, dado que a atuação das mulheres nos esportes de contato ainda é marginalizada.
Desde o Estado Novo a presença da mulher no futebol era vista como desvio de caráter. De acordo com a mentalidade eugenista que pairava à época, a prática deste esporte colocava em risco a graciosidade, beleza, sensualidade, delicadeza e harmonia de formas intrínsecas à mulher (TEIXEIRA JÚNIOR, 2006). Nesse sentido, segundo os médicos, afirmava-se que:
“não é no futebol que a juventude feminina se aperfeiçoará. Pelo contrário, é o futebol e o esporte que lhe trará defeitos e vícios; alterações gerais para a própria fisiologia delicada da mulher, além de outras consequências de ordem traumática, podendo comprometer seriamente os órgãos da reprodução (ovário e útero)” (FRANZINI, 2005, p.321)
Por isso, a presença da mulher nos esportes de contato foi proibida por meio da Deliberação nº 7 do Conselho Nacional de Desportos, pois abria possibilidades da participação feminina além do permitido pelo estereótipo de rainha do lar, esposa e mãe, restrita ao ambiente doméstico (FRANZINI, 2005), além de supostamente colocar em risco a feminilidade e capacidade reprodutiva dessas mulheres (FARIAS, 2014). Sobre esse absurdo, destaca-se a lição de Henry David Thoureau, no momento em que afirma que “a lei jamais tornou os homens mais justos, e, por meio de seu respeito por ela, mesmo os mais bem intencionados transformam-se diariamente em agentes da injustiça” (THOUREAU, 1997, p. 09).
A participação efetiva de mulheres na arbitragem do futebol é recente. Curiosamente, o Brasil ocupa posição de destaque na história do apito feminino graças ao caso de Léa Campos que, em 1971, tornou-se a primeira árbitra do Brasil e do Mundo a ser reconhecida pela FIFA. Mesmo assim, após este marco a primeira partida a ser apitada por uma mulher no Brasil, a árbitra Silvia Regina, aconteceu somente em 2003, fato que só veio a se repetir em 2019 quando outra mulher, a árbitra Edina Alves, foi escalada novamente para a posição. Entre as principais assistentes de árbitro, destaca-se a figura da paulista Ana Paula da Silva Oliveira, considerada no ano de 2005 a assistente que mais atuou nas Séries A e B do Campeonato Brasileiro e na Copa do Brasil.
Logo, percebe-se que as mulheres ainda são exceção e minoria neste ambiente e, como o caso de Marcielly revela, a presença feminina acompanhada de um status de autoridade nestes locais ainda é combatida de várias maneiras no futebol.
Dentro do contexto acima, em razão da construção social da masculinidade, algumas atividades enquadram homens e mulheres em seus respectivos papéis sociais. Nesse sentido, percebe-se que não apenas esses papéis sociais, mas também a relação entre eles foi criada a partir de demandas culturais que, por sua vez, ensejaram a construção de relações de gênero circundadas por relações de poder nas quais predominam a dominação de homens sobre mulheres. Essa relação de poder entre os sexos é garantida pela conjunção de vários fatores, de maneira que “as leis, as representações, a moral, a psicologia, os papéis relativos à sexualidade, tudo converge para assegurar a supremacia viril e a subordinação das mulheres” (LIPOVETSKY, 1997, p. 68).
Ou seja, apesar do Brasil ser conhecido como o país do futebol, por muito tempo a mulher não foi considerada como elemento do espetáculo. Alguns resquícios dessa mentalidade perduram até hoje, dado que aquelas que se arriscam na profissão de árbitra e mulheres que se lançam no papel de narradoras de eventos esportivos são constantemente alvo de críticas por parte do público masculino e, inclusive, do feminino. Até porque, por se tratarem de funções que envolvem liderança e comando, parte da sociedade ainda acha que as mulheres não se encaixariam nessas profissões devido ao fato dessas atribuições estarem constantemente ligadas ao homem, e não à mulher.
Logo, não seria exagero concluir que a presença feminina dentro das quatro linhas ainda busca sua afirmação, dado que o machismo ainda é regra no futebol. Por se tratar de um espaço esportivo e sociocultural majoritariamente masculino, os valores incluídos no futebol, e dele derivados, estabelecem limites que devem ser observados para que a ordem e a lógica atribuída ao jogo sejam mantidas e acatadas (FRANZINI, 2005). Nesse sentido, a presença feminina nos gramados vai de encontro ao status quo e, infelizmente, gera reações que refletem a relação entre os gêneros presente na sociedade.
De fato, os árbitros são responsáveis por garantir que atletas, comissão técnica e outros oficiais da partida respeitem as regras do jogo e ajam de acordo com o espírito do esporte (IFAB, 2021). Dentre suas principais atribuições, por meio de seu poder discricionário, recai ao árbitro a adoção de quaisquer medidas necessárias para que seja observada a essência das regras do jogo durante a partida (CBF, 2021). Ressalta-se que não há disposição alguma nos regulamentos do futebol que definam a existência de exclusividade de gênero para a posição de árbitro de futebol, sendo esta premissa um mero reflexo de uma sociedade acostumada a definir quais atividades a mulher pode ou não executar.
Ou seja, a agressão à Marcielly não representa apenas uma possível manifestação de preconceito, tipificado pelo artigo 243-G do CBJD, mas também um enorme retrocesso somado a uma clara agressão às regras do jogo, ao espírito do esporte e a dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico não deve ser usado como justificativa para o exílio de mulheres quanto á profissão de arbitragem no futebol ou a outra qualquer. Nesse sentido, a Justiça Desportiva não pode virar as costas para a relevância do tema e do próprio caso em concreto.
Ora, o Direito deve acompanhar a evolução e as mudanças sociais decorrentes, visando atender as novas necessidades da sociedade. É inaceitável que o tipo de comportamento exercido por Soriano ainda encontre lugar no esporte. Independentemente de qualquer opinião, a proteção à dignidade humana contida em nossa CF/88 deve ser observada e preservada acima de qualquer norma escrita, seja esta de natureza desportiva (privada) ou pública.
É preciso que a sociedade, por meio de seus agentes, incorpore os valores que as próprias leis pretendem proteger. De nada adianta a existência de leis se a sociedade não as respeita. Afinal, o respeito à justiça como valor vem, antes de tudo, de um aspecto cultural, não jurídico. O corpo social não pode considerar normal que a mulher tenha que quebrar um teto de vidro todos os dias, provando que suas características não são inferiores às dos homens em uma mesma função de liderança, tanto no mundo dos negócios, quanto no mundo esportivo.
Todas essas mazelas nos remetem à composição de Chico Buarque de Holanda, interpretada por ele e Milton Nascimento, onde a frase “Pai, afasta de mim esse CÁLICE (Cale-se) […] De vinho tinto de sangue“ soa mais atual do que nunca. Embora tenha sido um manifesto a um regime ditatorial, ainda é possível fazer analogia do cenário atual a um cenário eminente machista, preconceituoso e discriminatório que mancha o verdadeiro sentido do nosso esporte.
Ao enfatizar a palavra cálice, Chico se referiu ao verbo “calar”. Ou seja, referia-se ao ato de se manter calado, e de se conformar diante de sangue derramado à época. E, não diferentemente dos dias atuais, o machismo derrama sangue diariamente, suprimindo o grito preso na garganta da mulher que, mesmo atordoada, permanece firme e atenta. A mulher não deve desistir diante da intimidação ou da discriminação, pois é lutando e vencendo barreiras que será escutada e respeitada.
Infelizmente, a ditadura machista, covarde e agressiva dentro dos estádios também é formadora de opinião. O fato ocorrido com a assistente de arbitragem, atitude desrespeitosa, vil, covarde e discriminatória, exige uma posição enérgica e enfática de autoridades públicas e desportivas, não apenas para se fazer justiça, mas, que sirva de exemplo para que outros profissionais do esporte não as repitam. A mulher não deve se calar, e este tipo de cena abusiva em relação a arbitragem ou qualquer mulher, dentro ou fora de campo, não pode se tornar comum aos olhos de todos.
Quanto ao caso de Marcielly, a Justiça Desportiva mostrou mais uma vez que o respeito à mulher é um valor inegociável. Isso, pois, além de demitido pelo clube capixaba após repercussão do fato, o profissional foi julgado na última terça-feira (26/04/22) pela Primeira Comissão Disciplinar do TJD-ES, sendo punido com suspensão de 200 dias, somada a um gancho de 12 jogos e multa no valor de R$1.212,00 pela invasão de campo e xingamentos à arbitragem, com base nos artigos 258-B, 258, § 2º, II, 243-F, §1º, 243-G, §3º, 254-A, § 1º, I e §3º, todos do CBJD. Ressalta-se que da decisão ainda cabe recurso.
Por fim, destaca-se que, na realização da segunda Copa do Mundo de Futebol Feminino na Suécia, em 1995, o então Secretário-Geral da FIFA, Joseph Blatter, lançou-se a uma profecia ao afirmar que “o futuro do futebol é feminino”. Nesse mesmo espírito, cabe um pedido para que o ser humano, principalmente aquele que se importa com a verdadeira justiça, dê continuidade ao seu papel de contestar e buscar mudanças concretas, não deixando de lado o que foi despertado em sua consciência, não se entregando ao comodismo, e apenas se contentar ao estabelecido em comportamentos e normas sociais que, pela falta de visão geral, nos faz inertes ao escárnio discriminatório que nos é imposto todos os dias dentro de campo.
A mulher pertence ao futebol, e o futebol precisa da mulher. Trata-se não somente por uma questão de direito, mas também de natureza ética e moral. A mulher deve ser respeitada onde quer que ela esteja, pois esse cálice não a pertence mais.
* Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade dos Autores desse texto.
Referências
– CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL. Regras de Futebol. 21/22 ed. Rio de Janeiro. Disponível em: https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202109/20210914183704_10.pdf. Acesso em 16 abril de 2022.
– FARIAS, Lilian Kirsch de. As mulheres árbitras: aspirações e expectativas em torno de uma profissão. 2014.
– FRANZINI, Fábio. Futebol é “coisa para macho”?: Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol. Revista Brasileira de História [online]. 2005, v. 25, n. 50 [Acessado 19 Abril 2022], pp. 315-328. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-01882005000200012>. Epub 17 Mar 2006. ISSN 1806-9347.
– NADER, Maria Beatriz; CAMINOTI, Jacqueline Medeiros. Gênero e poder: a construção da masculinidade e o exercício do poder masculino na esfera doméstica. Anais do, v. 16, 2014.
– TEIXEIRA JÚNIOR, Jober. Mulheres no futebol, a inclusão do charme. Porto Alegre: Brasil, 2006.
– THE INTERNATIONAL FOOTBALL ASSOCIATION BOARD. Laws of the game. 21/22 ed. Zurique. Disponível em: https://downloads.theifab.com/downloads/laws-of-the-game-2021-22?l=en. Acesso em 16 abril de 2022.
– THOUREAU, Henry. A Desobediência Civil. Tradução de Sérgio Karam. Porto Alegre: L & PM, 2002.
[1] Advogada e Docente; Sub-Procuradora do Superior Tribunal de Justiça do Futebol – STJD; Auditora do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem – TJD – AD; Árbitra da Câmara de Arbitragem e Mediação de Santa Catarina – CAMESC; Membro da Academia Nacional do Direito Desportivo – ANDD Comissão Jovem; Pós-Graduada em Direito Desportivo e Direito do Trabalho; e Membro Filiada e Colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD.
[2] Pesquisador-fundador em Direito do Entretenimento e Inovação no Grupo de Estudos Direito e Desporto (GEDD) – São Judas; Intercambista na Universidad Finis Terrae. Diretor de Regionalização no Comitê de Jovens Arbitralistas (CJA/CBMA); Medalhista no IV Concurso de Artigos Científicos da Comissão de Esporte da Câmara dos Deputados (CESPO); e Membro Filiado e Colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD.
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