Caio Medauar
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
No ano de 2013, quando este que vos escreve exercia a função de Procurador da Justiça Desportiva atuante perante o STJD da modalidade Atletismo, nos deparamos com um caso de uma atleta que teve resultado analítico adverso para Oxandrolona e Testosterona.
O fato que chamou a atenção era se tratar de atleta com mais de 50 anos, e que chegou entre os 5 primeiros colocados em uma maratona oficial. Foi o primeiro caso que tive contato de atleta alegando que não poderia ser apenada por ser “amadora”, e que só teria participado do controle em razão da sua colocação.
A partir de então, inúmeros casos de atletas “pegos” no doping, tiveram como defesa, a premissa de que não se tratava de atleta de alto rendimento, que praticava sua atividade por prazer, buscando, sobretudo, a improvável absolvição, ou ainda a diminuição da pena, que sabemos, inicia-se com 4 anos de inelegibilidade para o doping intencional.
Evidentemente que tal questão não é exclusividade de terras tupiniquins, chamando a atenção da Agência Mundial Antidopagem – Wada-Ama. Em 1º de janeiro de 2021, entrou em vigor uma nova versão do Código Mundial Antidopagem[2], e consequentemente, um novo Código Brasileiro Antidopagem[3], trazendo novidades, dentre elas, definições mais claras para a responsabilização daqueles que não são considerados atletas de ponta ou de altíssimo rendimento.
Nesse sentido, muito importante se ater que a classificação dos atletas pelo Código Mundial Antidopagem é muito diferente do que estamos acostumados a estudar no ordenamento brasileiro.
Portanto, expressões como atleta profissional, não-profissional ou amador, dão espaço para termos como atletas de nível internacional, de nível nacional, de nível regional ou local, de nível recreativo, menores de idade e atletas protegidos. Na presente coluna, pretendo apresentar tais conceitos, convidando o leitor a conhecer melhor a nomenclatura e as definições contidas nesse sistema tão sui generis, que é o ordenamento mundial do combate ao doping.
O CBA de 2021 trouxe a definição de quem são os atletas submetidos ao Código, conforme previsto no seu artigo 5º:
“Art. 5º Submetem-se a este Código, em todo o território nacional:
I – a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem – ABCD, compreendendo, todo seu quadro de pessoal, membros de conselho, diretores, terceiros delegatários e seus funcionários, que estejam envolvidos em qualquer aspecto do controle de dopagem;
II – a Justiça Desportiva Antidopagem – JAD, incluindo todo seu quadro de pessoal e membros voluntários;
III – as entidades de administração e prática do desporto, incluindo suas filiadas, e as ligas, seus membros, dirigentes, oficiais, funcionários e voluntários, assim como delegatários e seus funcionários, que estejam envolvidos em qualquer aspecto do controle de dopagem;
IV – os atletas, seu pessoal de apoio e outras pessoas, incluindo as pessoas protegidas, independentemente de possuir nacionalidade ou residência no Brasil, conforme os seguintes parâmetros:
a) todos os atletas e seu pessoal de apoio que sejam membros ou titulares de licenças de quaisquer entidades de administração e/ou prática do desporto, ou de qualquer de suas afiliadas, incluindo clubes, equipes, associações ou ligas;
b) todo pessoal de apoio do atleta e atletas que participem, nessa qualidade, em eventos, competições e outras atividades organizadas, convocadas, autorizadas ou reconhecidas por quaisquer entidades de administração e/ou prática do desporto, ou de qualquer de suas afiliadas, incluindo clubes, equipes, associações ou ligas, onde quer que seja realizado;
c) qualquer outro atleta ou seu pessoal de apoio ou qualquer outra pessoa que, em virtude de uma acreditação, uma licença ou outro acordo contratual, esteja sujeito à autoridade de quaisquer entidades de administração e prática do desporto, ou de qualquer de suas afiliadas, incluindo clubes, equipes, associações ou ligas, para fins antidopagem;
d) todos os atletas e seu pessoal de apoio que participarem em qualquer atividade organizada, realizada, convocada ou autorizada pelo organizador de quaisquer entidades de administração e prática do desporto ou de uma liga nacional não afiliada a tais entidades;
e) atletas de nível recreativo; e
f) todas as outras pessoas sobre as quais o Código Mundial Antidopagem concede autoridade à ABCD, incluindo todos os atletas nacionais ou residentes no Brasil, todos os atletas presentes no país para competir ou treinar e outras entidades do Sistema Nacional do Desporto.
Parágrafo único. As pessoas mencionadas neste artigo são consideradas, como condição de sua participação ou envolvimento no esporte no país, cientes do compromisso com este Código e submetidas à autoridade da ABCD e à jurisdição da JAD para aplicar suas disposições, incluindo quaisquer consequências por sua violação.”
Como se vê, o conceito de atleta, ou seja, dos jurisdicionados do controle de dopagem é o mais amplo possível, conferindo à Wada-Ama e à ABCD – Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem, uma ampla discricionariedade para realizar controles em quem entendam, independentemente de seu nível.
Tais “poderes” conferidos às Autoridades Antidopagem se justificam, na medida em que o combate ao doping nos esportes não se refere unicamente aos trapaceiros e ao jogo limpo, mas também na preservação da saúde dos praticantes, e na preservação de valores do espírito esportivo, incompatível, por exemplo, com a presença de entorpecentes nas competições.
Isso sem contar que a Lei nº 9.615/98, a partir do seu artigo 55-A, garante à ABCD o status de única autoridade para coleta, testes e gestão de resultados, garantindo a possibilidade de se testar, inclusive, modalidades que não fazem parte do Movimento Olímpico.
Muito importante ressaltar que a intenção da recente alteração do Legislação Antidopagem, com a criação da figura do atleta de nível recreativo, foi deixar claro que, mesmo para esses casos, a dopagem não será tolerada, não comportando as pretendidas absolvições. Atletas de nível recreativo, menores de idade e pessoas protegidas tem um tratamento especial, mas continuam responsáveis por tudo que entra em seu corpo e por conhecer a legislação antidopagem. Tal constatação é bem clara na definição de “Atleta” contida no anexo II do CBA (página 126/127):
“Atleta: qualquer pessoa que compete no esporte em nível internacional (conforme definido por cada federação internacional) ou em nível nacional (conforme definido por cada organização nacional antidopagem). A ABCD tem poder discricionário para aplicar a regra antidopagem a um atleta que não é um atleta de nível internacional ou um atleta de nível nacional e, portanto, enquadrá-lo na definição de “atleta”. Em relação aos atletas que não são atletas de nível internacional ou atletas de nível nacional, uma organização antidopagem pode optar por: realizar testes limitados ou simplesmente nenhum teste; analisar as amostras em busca de um número menor do que a lista completa de substâncias proibidas; exigir informações de localização limitadas ou não exigir nenhuma informação; ou, não exigir AUTs antecipadas. Contudo, se uma violação de regra antidopagem do artigo 2.1, 2.3 ou 2.5 do CMA for cometida por um Atleta que estiver sob a autoridade de uma Organização Antidopagem que decidiu realizar testes e o atleta competir abaixo do nível internacional ou nacional, então as consequências estabelecidas no CMA devem ser aplicadas. Para fins dos artigos 2.8 e 2.9 do CMA e para fins de informação e educação antidopagem, qualquer pessoa que participe de esportes sob a autoridade de qualquer signatário, governo ou outra organização esportiva que aceite o Código é um atleta.”
Independentemente do nível do atleta, ele está competindo com outros atletas no mesmo nível dele, não sendo justo que se crie um salvo conduto, em detrimento do jogo limpo e da saúde dos participantes. Porém, por não se tratar de atletas com ambições “olímpicas” ou maiores, estariam sujeitos a penas mais bradas, como se verá adiante.
Por outro lado, temos que a configuração do atleta como de nível Internacional[4], de nível Nacional[5] e de nível Regional[6] ou local, terá impacto na competência para a gestão do resultado, para o plano de testes e regras para seu julgamento, mas não necessariamente, na pena ou na sua responsabilização, da mesma forma que os atletas objeto da presente coluna, não estão autorizados a se doparem de forma indiscriminada.
Assim, vamos às definições. O mais fácil é o atleta menor de idade, considerado pelo Código, como aquele menor de 18 anos [anexo II do CBA (página 126/127)]:
“Atleta menor de idade: pessoa física menor de dezoito anos.”
O grande problema que envolve o atleta menor de idade está no fato de que em modalidades como Ginástica e Futebol, por exemplo, encontramos atletas menores que participam do altíssimo rendimento, disputam jogos olímpicos e até copa do mundo, razão pela qual, em um caso envolvendo uma atleta menor de idade, ainda na vigência do Código de 2015, se aplicou a pena severa a uma ginasta de 14 anos.
Até por isso, quando se tem um caso de menor de idade, temos que levar em consideração que não se trata de uma categoria independente de atletas, mas sim uma das hipóteses de pessoa protegida, conceito este aplicado ao caso mencionado anteriormente [anexo II do CBA (página 133)]:
“Pessoa protegida: atleta ou outra pessoa física que, no momento da violação de regra antidopagem: (i) não tiver completado dezesseis anos de idade; (ii) não tiver completado dezoito anos de idade e não estiver incluído em qualquer grupo alvo de testes e jamais tiver competido em qualquer evento internacional em uma categoria aberta; ou (iii) for absoluta ou relativamente incapaz, nos termos dos arts. 3º e 4º do Código Civil.”
Como se vê, as definições de menor de idade e de pessoa protegida estão diretamente ligadas, fazendo com que tenhamos que interpretar o Código de maneira ampla e integrada, não se admitindo interpretação literal.
Em outras palavras, quando se fala em menor de idade ou atleta protegido, não há como manter uma receita de bolo ou gerar um padrão para todos os casos, sendo fundamental a análise caso a caso, para a responsabilização de cada atleta, em contraponto com a defesa do jogo limpo e do direito fundamental dos demais atletas de participar de uma competição sem doping.
Por esse motivo, mesmo os atletas absolutamente incapazes estão sujeitos ao código, e são responsáveis por tudo que consomem e por tudo que for encontrado em suas amostras, não havendo no sistema da antidopagem a figura da inimputabilidade.
A última definição a ser tratada é da figura do atleta de nível recreativo [anexo II do CBA (página 127/128)]:
“Atleta recreativo: aquele não incluído na definição de atleta de nível nacional e nível regional dado pela ABCD, excluindo aquele que, no prazo de cinco anos antes da violação de regra antidopagem, tiver sido atleta de nível internacional ou nacional, tiver representado o país em evento internacional em uma categoria aberta ou tiver sido incluído em Grupo Alvo de Testes ou em outro grupo de informações de localização mantido por uma Federação Internacional ou Organização Nacional Antidopagem.”
Como se vê, a definição do atleta de nível recreativo se dá por exclusão, ou seja, depois de se afastar todas as demais possibilidades, e ainda, de acordo com o que definir a ABCD.
Neste sentido, mais uma vez, teremos que sempre avaliar o caso concreto e a circunstância específica daquele atleta.
Atletas de nível recreativo, menores de idade e pessoas protegidas possuem alguns benefícios, em caso de um resultado analítico adverso:
Em princípio, não precisam demonstrar como a substância entrou em seu organismo, tampouco a ausência de culpa, o que facilita demais a defesa, ao alegar a ausência de culpa ou de culpa significativa, motivo principal para se reduzir uma pena que seria de 4 anos.
Porém, não se trata de redução automática de pena. Os artigos 114 (infração pela presença da substância na amostra) e 116 (uso ou tentativa de uso) do CBA não trazem qualquer redução ou previsão específica, o que é mencionado somente a partir do artigo 142, ou seja, se tratam de matéria atinente à dosimetria da pena a ser aplicada.
Neste sentido, não se afasta a possibilidade de se aplicar a um atleta de nível recreacional, a uma pessoa protegida/menor de idade, uma pena de 4 anos em caso de comprovação do Dolo pela Autoridade de Controle de Dopagem.
Situação diferente para as infrações relativas a fraude (artigo 122 do CBA) ou evasão (artigo 120 do CBA), para as quais é expresso que a pena para tais atletas será de advertência até 2 anos.
Além de não haver obrigatoriedade de realizar controle, por parte da ABCD, não se exige de tais atletas AUT – Autorização de Uso Terapêutico Prévia, permitindo-se realizar a AUT retroativa para todos os casos.
Ademais, não há obrigatoriedade de se dar publicidade às penas aplicadas.
Diante da possibilidade real de uma redução de pena, ou ainda de uma advertência, temos que muitos atletas que se consideram “amadores”, ou seja, que alegam que praticam a modalidade somente por prazer, ainda sim não se enquadram na definição de atleta de nível recreativo.
Por exemplo. Há uma série de modalidades como o fisiculturismo, o tiro esportivo, tiro com arco, em que os atletas, apesar de não profissionais, de terem uma profissão, participam de seleções brasileiras e competem em alto nível, não podendo ser considerados recreativos.
O mesmo vale para certas competições de categorias “Master”, nas quais os atletas buscam o altíssimo rendimento e, não raro, foram atletas de nível internacional ou nacional quando mais novos, fazendo com que os recentes casos julgados no TJD-AD tenham mantido tais atletas com as penas normais, não os considerando de nível recreativo, lembrando que o próprio CBA confere à ABCD a prerrogativa de classificar o atleta como recreacional ou não.
Modalidades como triátlon, ciclismo, levantamento de peso dentre outras, agregam atletas, que além de competir, são treinadores também, e se utilizando do resulto desportivo para agregar valor ao serviço que prestam.
Em caso recente, uma atleta classificada para o Iron Man, alegava ser recreacional. Contudo, o resultado, além de não se encaixar na definição supra, era utilizado para alavancar sua assessoria esportiva.
Até pela característica do Sistema Nacional de Desporto, que congrega inúmeras entidades com estruturas muito amadoras, não é raro que se que tenha um número grande de testes positivos em competições supostamente amadoras, havendo alegação, inclusive, de não se tratar de competições oficiais.
Ora. Não é o fato de tais competições não serem tão bem organizadas, que se permitirá o doping indiscriminado, nem autoriza a recusa em se fornecer a amostra, ou como já ocorreu, de impedir a ABCD de realizar coletas.
Muitas dessas competições servem de preparação de tais atletas para competições oficiais, ou ainda geram classificação para o ranking das entidades, sendo que, em quase todas elas, há previsão de controle de dopagem nos regulamentos, com a aceitação de cada participante de forma expressa ou tácita.
Nesse ponto que reside a questão. A proibição da dopagem não tem a ver com o nível do atleta, mas sim com uma opção do Estado Brasileiro em não tolerar o uso de substâncias proibidas em qualquer nível, até para preservar a saúde dos participantes de qualquer competição disputada no Brasil.
Note-se que o uso de anabolizantes e outras formas de melhora de rendimento artificialmente, não é sequer autorizado do ponto de vista médico, o que demonstra que o combate à dopagem também é uma política de saúde pública, uma vez que a saúde dos praticantes estará em risco.
Portanto, temos que a melhor regulação dos termos e consequências envolvendo atletas recreativos, menores de idade e pessoas protegidas, irá facilitar tal classificação, que somente poderá ocorrer com a análise caso a caso, sempre buscando promover e garantir o jogo limpo independentemente do nível da competição e do atleta.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
[1]Advogado especializado em Direito Desportivo pelo CEDIN, Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/SP, Procurador Geral do TJD-Antidopagem, ex-Sub-Procurador Geral do STJD do Futebol e Membro de diversos Tribunais Desportivos do país.
[2]https://www.gov.br/abcd/pt-br/composicao/regras-antidopagem-legislacao-1/codigos/copy_of_codigos/codigo-mundial-antidopagem-2021.pdf acesso em 25/02/2021.
[3]https://www.gov.br/abcd/pt-br/composicao/regras-antidopagem-legislacao- acesso em 25/02/2021
1/codigos/copy_of_codigos/codigo_brasileiro_antidopagem_aprovado_cne_diagramado_jan_2021.pdf/view acesso em 25/02/2021.
[4] Atleta de nível internacional: atleta que compete em nível internacional, conforme definido por cada Federação Internacional, de acordo com o Padrão Internacional para Testes e Investigações. [anexo II do CBA (página 127)]
[5] Atleta de nível nacional: atleta que compete em nível nacional, assim considerados os não classificados como atletas de nível internacional por sua Federação Internacional, os que estão incluídos no programa Bolsa Atleta do Ministério da Cidadania, os que são jogadores de futebol afiliados a clubes que competem em competições de futebol de nível nacional, os que competirem ao mais alto nível de competição nacional da respectiva modalidade ou outros eventos que determinam ou contam para determinar quem é o melhor do país na categoria ou disciplina em questão e os que devem ser selecionados para representar o Brasil em eventos internacionais ou competições. [anexo II do CBA (página 127)]
[6] Atleta de nível regional ou local: atleta que não se enquadra no conceito de atleta de nível internacional ou nacional, e em relação ao qual possibilita-se à ABCD optar por realizar testes limitados ou simplesmente nenhum teste, analisar as amostras em busca de um número menor do que a lista completa de substâncias proibidas, exigir informações de localização limitadas ou não exigir nenhuma informação ou não exigir AUTs antecipadas, cabendo-lhe, em todo caso, aplicar as consequências previstas neste Código. [anexo II do CBA (página 127)]
Acompanhe o podcast em: https://open.spotify.com/episode/75b8ggd9eeEcIrzx8UdDRn