FUTEBOL GLOBALIZADO: OS DESAFIOS DO FIFA FOOTBALL TRIBUNAL COM A CONSOLIDAÇÃO DO MULTI-CLUB OWNERSHIP

José Eduardo Coutinho Filho

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

Não há dúvida de que o Multi-Club Ownership e os Conglomerados Esportivos são formas de organização consolidadas no Futebol Globalizado.

O conceito de Multi-Club Ownership (“MCO”) é autoexplicativo. São um grupo – portanto, 2 ou mais – de Cubes que compartilham do mesmo proprietário. Ou seja, é um requisito objetivo. Nos casos em que dois ou mais Clubes compartilhem do mesmo proprietário, resta configurado o MCO[2].

Se anos atrás poderíamos contar todos os MCOs nos dedos de uma mão, atualmente existem enormes impérios com Clubes localizados em todos os continentes, por vezes, inclusive, competindo entre si na mesma competição. Embora o City Football Group e o grupo Red Bull sejam os exemplos mais conhecidos, o Mundo do Futebol tem outros grandes players em forma de MCOs, como o King Power International Group, o Grupo Hyundai, o grupo Atlético de Madrid, entre tantos outros.

No entanto, apesar de sua inegável consolidação, até o momento o Futebol Organizado, como um todo, parece optar por quedar-se inerte nessa temática. A FIFA, para ilustrar, ainda não possui qualquer regulamentação específica em relação aos MCOs, mormente relacionada à interação única entre os Clubes dentro da mesma estrutura. Torna-se ainda mais destacado o fato de se tratar de fenômenos transnacionais, tornando ainda mais difícil sua regulamentação através da legislação governamental nacional.

Nesse sentido, resta o inevitável questionamento:  poderia o “universo MCO” se valer de brechas às regras e regulamentos da FIFA, que regem o Futebol Organizado, representando um risco à organização como um todo?

Nesta breve análise, serão exploradas situações simples e factuais em que os Clubes que fazem parte de MCOs poderiam se beneficiar de brechas na regulamentação privada do Futebol em comparação com aqueles que não fazem.

A primeira situação a ser analisada diz respeito à famosa sanção de proibição de transferência, o transfer ban. A lógica do transfer ban é muito simples. Em caso de inadimplência persistente ou descumprimento integral de decisão do FIFA Football Tribunal dentro de prazo estipulado, será imposta ao Clube a proibição de registrar novos atletas até que o valor total devido seja adimplido ou a obrigação de fazer seja cumprida.

Tal punição é altamente evitada, podendo afetar a gestão do elenco de toda a temporada.

Nesse cenário, para ilustrar, imagine uma situação em que, por algum motivo, um dos dez Clubes de um MCO sofre o transfer ban.  Isso significa, na prática, que, enquanto cumprir com sua obrigação, o Clube não poderá registrar novos atletas.

Nos últimos momentos da janela de transferências, uma grande oportunidade esportiva para o Clube sancionado aparece no mercado. Para contratar o grande atleta, o MCO faz uma oferta bem-sucedida, e, evitando a punição, o registra livremente em um dos outros nove Clubes, onde poderá atuar até a próxima janela (evitando, inclusive, a presunção de transferência da ponte). Após, poderá o MCO facilmente transferi-lo ao Clube previamente sancionado, desde que tenha cumprido a decisão nesse ínterim.

Formalmente, nesse cenário, não há violações diretas ao RSTP ou ao Código Disciplinar da FIFA. Um Clube, sem qualquer sanção, registrou o atleta. Na próxima janela de transferências, dois Clubes, com a aceitação do atleta, realizam sua transferência.

Em análise simplista, sucederam duas transferências ordinárias, assim como milhares outras operadas em uma janela de transferência.

No entanto, apesar de formalmente não haver violação aparente, um fato é inegável: Um Clube que não faz parte de um grupo de MCO não seria capaz de driblar o transfer ban tão facilmente e poderia ter perdido a oportunidade.

Outra situação a ser destacada diz respeito às novas regras de empréstimo internacional da FIFA, em vigor desde 1º de julho de 2022, que representam medida muito relevante no mercado de transferências do Futebol.

Em síntese, para além de muitos outros detalhes, o new loan provisions progressivamente, até 1º de julho de 2024, limitará a um máximo de seis atletas profissionais cedidos e recebidos internacionalmente por empréstimo a um Clube em qualquer momento durante a temporada, exceção feita apenas aos club-trained players de até 21 anos. Além disso, dos seis, um total máximo de três empréstimos internacionais podem ser concluídos entre dois Clubes específicos concomitantemente.

Diante o cenário, é patente como os Clubes partes de MCO podem se beneficiar de vantagens comparativas em relação aos que não fazem.

Dependendo do quão consolidados e integrados são os Clubes do mesmo MCO, especialmente aqueles que compartilham, além do mesmo proprietário ou acionista majoritário, certo nível de integração e objetivos comuns, parece fácil emular um empréstimo por meio de uma cessão definitiva, ao passo que o Clube vendedor pode ter a garantia de que, se isso for do melhor interesse do MCO, o comprador lhe devolverá o atleta após o período designado.

Na prática, a ausência de regulamentação pode deixar uma lacuna que possibilita aos Clubes parte de MCO, a partir de 1º de julho de 2024, emprestarem no máximo seis profissionais internacionalmente, mas emularem empréstimos quase ilimitados entre seus “Clubes irmãos”.

Assim como na hipótese do transfer ban, neste caso, pelo menos formalmente, não parece haver qualquer violação direta ao RSTP ou ao Código Disciplinar da FIFA. Dois Clubes, com o consentimento do atleta, procedem com duas operações regulares de transferência, com um período razoável de tempo entre elas.

No entanto, as brechas nas novas regras de empréstimo internacional são ainda mais evidentes do que no exemplo anterior, tendo os Clubes parte de MCO meios – fáceis, inclusive – para superar os obstáculos de limitação que os demais Clubes regulares simplesmente não possuem.

O terceiro exemplo é um pouco mais complexo, pois não só tem potencial para privilegiar os Clubes parte de MCO, mas também impactar diretamente nos Direitos de Formação de todo Futebol Organizado.

É fato que, considerando os objetivos comuns dos Clubes parte de MCOs em relação ao sucesso do próprio grupo, com a premissa de que eles compartilham o mesmo proprietário – ou, então, acionista majoritário –, as transações relativas às transferências entre dois Clubes do mesmo grupo podem ser operadas com valores menores em comparação com o valor de mercado do atleta,  ou mesmo sem custos.

Assim como em ambos os exemplos anteriores, não há violações diretas aos regulamentos em vigor. Um Clube tem o direito de aceitar valores menores pela quebra contratual do que os formalmente previstos para viabilizar a transferência.

Porém, e o Mecanismo de Solidariedade?

Um caso simples para ilustrar. Um atleta, após o término do contrato com seu Clube formador, assina com um Clube médio – como, neste exemplo, um Clube que não faz parte de uma liga Big-5 – que é parte de um MCO.

Após duas temporadas espetaculares muitos Clubes estão interessados em sua transferência, tendo o atleta seu valor de mercado estimado em 100 milhões de Euros, e a cláusula indenizatória, de 150.

Depois de rejeitar ofertas na casa dos 100 milhões de Euros, o Clube vendedor decide aceitar uma transferência para outro Clube do mesmo Grupo MCO, que por acaso é um Clube Big-5, por, por exemplo, 1 milhão de euros.

Ainda que, formalmente, não aparente haver nenhum problema, ao olhar para o cenário macro, um Clube parece sofrer toda a perda. O Clube formador acaba de receber um Mecanismo de Solidariedade literalmente 100 vezes menor do que receberia em uma transferência “orgânica”. O Clube comprador, por sua vez, evitou pagar uma quantia considerável ao Clube que treinou sua nova estrela.

Na mesma linha, cabe a reflexão acerca do training compensation.

Como se sabe, o training compensation – ou, em tradução livre, compensação por formação – regulado pelo RSTP possui o intuito de compensar financeiramente os Clubes que investiram na formação do atleta, mas não se beneficiaram por completo com sua atuação profissional.

Para parametrizar os valores devidos a título de training compensation, os Clubes são divididos, no FIFA TMS, em quatro categorias (1/2/3/4), sendo que os Clubes da Categoria 1 são os que terão maiores gastos e, sucessivamente, os de Categoria 4, menores.

Nesse cenário, então, não é difícil de imaginar um MCO que possui Clubes de variadas categorias de training compensation sob seu guarda-chuva, possibilitando-o profissionalizar um atleta em um Clube de Categoria 4, arcando com valores reduzidos em termos de training compensation, para, na janela seguinte, o transferir ao Clube almejado final, que, não por acaso, possui Categoria 1.

Não querendo ser repetitivo, como você pode imaginar, como as outras situações, estes são mais exemplos de cenários em que não parecem haver violações diretas aos regulamentos, mas torna possível uma situação privilegiada para um Clube parte de MCO, simplesmente por carregar tal condição, e, ainda mais grave, podendo afetar diretamente toda a lógica do Direito de Formação no Futebol Organizado.

Nesse caso, o que o FIFA Football Tribunal – ou mesmo a própria FIFA – poderia fazer para evitar esse tipo de situação?

A verdade é que, com o RSTP e o Código Disciplinar da FIFA em vigor, não muito. Como mencionado, uma vez que não há disposição específica no regulamento sobre as relações únicas entre os Clubes do mesmo grupo, formalmente é muito improvável uma sanção esportiva ao MCO.

Nesse sentido, seria relevante a promoção de uma reforma, ainda que já tardia, às regras e regulamentos da FIFA para incorporar esses grupos relevantes que estão ativos no Futebol Globalizado. Não parece razoável que esses Clubes continuem sendo considerados autônomos, mantendo uma mera conexão relacionada ao proprietário compartilhado.

Por outro lado, é evidente que não é uma tarefa fácil simplesmente mudar o regulamento, afinal, isso exige a adoção de alguma forma de sanção por ações que não foram praticadas – ao menos, formalmente – pelo possível Clube sancionado, mas por algum tipo de “Clube irmão/parceiro”.

Analisando os regulamentos vigentes, o mais próximo deste princípio almejado talvez seja o disposto no artigo 25, 1º, do FIFA RSTP, que estabelece:

The sporting successor of a debtor shall be considered the debtor and be subject to any decision or confirmation letter issued by the Football Tribunal. The criteria to assess whether an entity is the sporting successor of another entity are, among others, its headquarters, name, legal form, team colours, players, shareholders or stakeholders or ownership and the category of competition concerned.

Como mencionado, a referida disposição não foi exatamente formulada para ser aplicável aos casos de MCO. O Clube sucessor, em uma interpretação conservadora, é o resultado direto da transformação do Clube Original, no Clube Sucessor.

No entanto, a ideia por trás da provisão é importante, uma vez que estabeleceu a possibilidade de sanção de um Clube decorrente de atos praticados, formalmente, por outra pessoa jurídica, embora a conexão entre ambos seja muito mais evidente de que nos casos de MCO.

Não é segredo que o FIFA Judicial Body está passando por transformações, com a criação do FIFA Football Tribunal, que será responsável por todas as decisões sobre disputas relacionadas ao Futebol e aplicações regulatórias no âmbito da FIFA. Quem sabe não possa ser esse o momento para a abertura de uma reforma relevante e necessária de suas regras e regulamentos.

Por enquanto, talvez o primeiro passo seja meramente o reconhecimento, pelas entidades esportivas, dos MCOs como atores concretos no Futebol Globalizado, definindo seu escopo, características e critérios, para, a partir daí, ser possível, de fato, regulá-lo.

O Mundo do Futebol é extremamente dinâmico, estando em constante transformação. Sendo assim, não se pode perder a passada da mudança, afinal, especialmente no Futebol, cada chance perdida pode mudar o resultado final.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.

Referências:

Regulations on the Status and Transfer of Players: https://digitalhub.fifa.com/m/cb37201b05fe8f7/original/Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-July-2022-edition.pdf

Explanatory Notes on the New Loan Provisions in the Regulations on the Status and Transfer of Players: https://digitalhub.fifa.com/m/785652de48694c8c/original/Explanatory-Notes-on-the-New-Loan-Provisions-in-the-Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players.pdf

The new Brazilian Football Limited Companies regulations: It came the time for Brazil to enter the strategic Multi-Club Ownership map?: https://www.linkedin.com/pulse/new-brazilian-football-limited-companies-regulations-came-coutinho/


[1] Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP (FCHS/UNESP). Cursando o MBA em Gestão de Projetos pela Universidade de São Paulo. Gestor Desportivo diplomado pela CONMEBOL. Membro Fundador e Conselheiro Emérito do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da UNESP Franca (GEDiDe). Membro do Grupo de Estudos do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD). Membro filiado ao IBDD e Colunista. Advogado da Diretoria de Registro, Transferência e Licenciamento de Clubes da Confederação Brasileira de Futebol.

[2] The new Brazilian Football Limited Companies regulations: It came the time for Brazil to enter the strategic Multi-Club Ownership map? : https://www.linkedin.com/pulse/new-brazilian-football-limited-companies-regulations-came-coutinho/

 

Acompanhe o podcast em: https://open.spotify.com/episode/0dQwUQRYSNVAmsFSki2LUP?si=qrCdLMUtRICUz0DxCz9hGQ&utm_source=native-share-menu