Por Luiza Rosa Moreira de Castilho e José Francisco C. Manssur
Membros Filiados ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
No âmbito do futebol ou da vida, há uma premissa – quase que – irrefutável de que “não se mexe em time que está ganhando”. Vale dizer que a interpretação de vitória pode desaguar em diversas circunstâncias que não somente o triunfo em campo, até porque, dentre todos os participantes de um campeonato, só um é vencedor.
Por esse aspecto, é a partir dos desconfortos, sejam eles simples ou graves, que grande parte das mudanças tomam lugar. Não é novidade que as recentes normas a que o futebol nacional se submete carregam o compromisso com a categoria feminina e, mais precisamente, o dever de sua existência.
No Brasil, a Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte [i] e o Regulamento de Licença de Clubes da CBF[ii] obrigam as entidades a investir no futebol feminino, cada um à sua maneira.
Num primeiro momento, esse pressuposto foi absolutamente necessário e é através dele que podemos viver, hoje, o futuro do futebol feminino em nosso país. Mas, a partir disso, os resultados passam a depender da visão interna das entidades, que podem escolher entre contemplar o futebol feminino como obrigação, reagindo com o cumprimento do mínimo, ou como oportunidade, criando sua própria realidade.
A Lei nº. 14.193/2021 faz alusão à séria exigência destinada aos clubes que se constituírem sob o modelo de Sociedade Anônima do Futebol: possuir a prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional como atividade principal. Embora esteja muito claro no dispositivo, e destacando que a conjunção ‘e’ exprime soma e não alternativa, a preocupação com a categoria feminina do clube geralmente só se manifesta em dado tempo da negociação.
Importante considerar que a SAF é uma forma jurídica de adesão facultativa, que depreende um conjunto de anseios e a adoção de uma postura de boa gestão corporativa. Naturalmente, apesar de ser facilmente vista como investimento, a SAF é também sobre governança e condução de um novo trabalho a partir do que já funcionava, ou não.
Recentemente, os resultados vistos nos Campeonatos de Futebol Feminino Carioca[iii] e Cearense retratam a discrepância da gestão e estrutura entre as equipes participantes. São exemplos de clubes que não estão constituídos sob o modelo de SAF, mas participam de competições que não diferenciam o estrato das entidades componentes.
Sob o ângulo de um ambiente regulatório um tanto favorável, não se pode esperar que todas as entidades optem por vislumbrar a oportunidade no futebol feminino sem um incentivo externo. Até porque, nem sempre o cenário financeiro e os propósitos da administração são compatíveis com essa perspectiva.
Não se exige, todavia, que o incentivo seja rigorosamente de caráter financeiro, diferentemente do que trouxe o PROFUT, mas que traga certo formato de regulamentação para suprir as condições impostas por todos os regramentos mencionados. É o ensejo para que na constituição da SAF se balize um prazo para criação da equipe feminina e sua inserção em competições oficiais, sejam elas regionais ou nacionais.
Quando a Lei da SAF cuidou de prever o fomento e o desenvolvimento das atividades futebolísticas e a formação de atleta profissional de futebol, acabou por não estabelecer o óbvio, justamente por ser óbvio.
Para além de criar o futebol feminino, a previsão de uma continuidade para sua gênese no interior do clube é implícita, mas é possível que sua exposição seja o caminho para propagar a carência da manutenção dessas equipes. E talvez este seja o incentivo.
Com efeito, a cobrança relativa à estrutura e materiais esportivos, à habilitação da comissão técnica e à qualificação dos demais profissionais envolvidos, pode e deve partir de dentro do sistema do futebol. A sugestão é que seja efetivada por meio de um licenciamento.
Em abril deste ano, a FIFA publicou o primeiro Guia para Licenciamento de Clubes no Futebol Feminino[iv]. Poucos meses depois, a UEFA, que mantinha as disposições referentes a Women’s Champions League num Regulamento de Licenças generalizado, difundiu um regramento específico[v] para a categoria como um pilar fundamental das transformações radicais ocorridas nos últimos anos. Os recentes relatórios[vi] da entidade apresentam uma visão clara dos impactos dessas mudanças no futebol feminino europeu.
Apesar de geralmente o regulamento para concessão de licença aos clubes partir da entidade de administração, a demanda dos clubes e sua evolução interna tem enorme peso quando da concepção do documento. É o caso da Federação Paulista de Futebol, que foi pioneira na constituição do licenciamento para o futebol feminino. A paridade em suas competições se reflete, até mesmo, nos campeonatos nacionais.
Inclusive, pela ótica da venalidade, são os clubes paulistas os que hoje criam cada vez mais brechas para exploração das métricas da categoria. A adesão aos níveis de governança proporcionados pela SAF pode ser o pontapé inicial, porém é preciso seguir escalando.
Ora, trata-se de vislumbrar o futebol feminino como oportunidade de mudança, como possibilidade de fazer diferente (ainda que por meio de uma imposição) e, principalmente, de desejar um horizonte em que a categoria seja autossustentável.
* Importante destacar que o conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade dos Autores desse texto.
[i] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13155.htm
[ii] https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202108/20210809211154_597.pdf
[iii] https://www.metropoles.com/esportes/futebol/time-de-futebol-feminino-do-flamengo-vence-jogo-por-34-x-0
[iv] https://digitalhub.fifa.com/m/26ed8fae521947ad/original/FIFA-Guide-to-Club-licensing-in-women-s-football_EN.pdf
[v] file:///C:/Users/User/Downloads/0000000001436_anexo.pdf
[vi] https://editorial.uefa.com/resources/0272-145b03c04a9e-26dc16d0c545-1000/master_bm_high_res_20220203104923.pdf
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