Ação Direita de Inconstitucionalidade 2937-1/600 – Estatuto do Torcedor

Autor: Dr.Antonio Fernandes Barros e Silva de Sousa

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Dispositivos da Lei n° 10.671/2003 – Estatuto do Torcedor. Alegações de Violação ao Direito de Livre Associação, de Invasão de Competência Legislativa Concorrente, e de Entidades Desportivas. Inexistência

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 2937-1/600

REQUERENTE : Partido Progressista
REQUERIDOS : Presidente da República e Congresso Nacional
RELATOR : Exmo. Sr. Min. Cezar Peluso

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONA-LIDADE. DISPOSITIVOS DA LEI Nº 10.671/2003 – ESTATUTO DO TORCE-DOR. ALEGAÇÕES DE VIOLAÇÃO AO DIREITO DE LIVRE ASSOCIAÇÃO, DE INVASÃO DE COMPETÊNCIA LEGISLA-TIVA CONCORRENTE, E DE OFENSA À AUTONOMIA DAS ENTIDADES DES-PORTIVAS. INEXISTÊNCIA. PARECER PELA IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS.

1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Progressista – PP, em face do inciso I, do artigo 8º; parágrafo 5º, incisos I e II, do artigo 9º; § 4º, do artigo 10; parágrafos 1º, expressão ‘ em até vinte e quatro horas após o seu término’, e 2º a 6º, e, caput, expressão ‘ em até vinte e quatro horas contadas do término da partida’, do artigo 11; artigo 12; artigo 19; parágrafo único, do artigo 30; artigo 32; parágrafos 1º e 2º, e incisos II e III, do parágrafo único, do artigo 33; incisos I e II, parágrafo 1º, incisos I e II e parágrafo 3º, do artigo 37, da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003.

2. A citada lei dispõe sobre o estatuto de defesa do torcedor e dá outras providências. Eis o teor dos dispositivos impugnados:

“Art. 8o As competições de atletas profissio-nais de que participem entidades integrantes da organização desportiva do País deverão ser promovidas de acordo com calendário anual de eventos oficiais que:
I – garanta às entidades de prática desportiva participação em competições durante pelo me-nos dez meses do ano;
……………………………………………………………….
Art. 9o É direito do torcedor que o regulamen-to, as tabelas da competição e o nome do Ouvi-dor da Competição sejam divulgados até ses-senta dias antes de seu início, na forma do pa-rágrafo único do art. 5o.
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§ 5o É vedado proceder alterações no regu-lamento da competição desde sua divulgação definitiva, salvo nas hipóteses de:

I – apresentação de novo calendário anual de eventos oficiais para o ano subseqüente, desde que aprovado pelo Conselho Nacional do Esporte – CNE;
II – após dois anos de vigência do mesmo re-gulamento, observado o procedimento de que trata este artigo.
……………………………………………………………….
Art. 10. É direito do torcedor que a participa-ção das entidades de prática desportiva em competições organizadas pelas entidades de que trata o art. 5o seja exclusivamente em virtude de critério técnico previamente definido.
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§ 4o Serão desconsideradas as partidas dis-putadas pela entidade de prática desportiva que não tenham atendido ao critério técnico previa-mente definido, inclusive para efeito de pontua-ção na competição.
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Art. 11. É direito do torcedor que o árbitro e seus auxiliares entreguem, em até quatro horas contadas do término da partida, a súmula e os relatórios da partida ao representante da entidade responsável pela organização da competição.

§ 1o Em casos excepcionais, de grave tumul-to ou necessidade de laudo médico, os relatórios da partida poderão ser complementados em até vinte e quatro horas após o seu término.

§ 2o A súmula e os relatórios da partida serão elaborados em três vias, de igual teor e forma, devidamente assinadas pelo árbitro, auxiliares e pelo representante da entidade responsável pela organização da competição.
§ 3o A primeira via será acondicionada em envelope lacrado e ficará na posse de represen-tante da entidade responsável pela organização da competição, que a encaminhará ao setor competente da respectiva entidade até as treze horas do primeiro dia útil subseqüente.
§ 4o O lacre de que trata o § 3o será assinado pelo árbitro e seus auxiliares.

§ 5o A segunda via ficará na posse do árbitro da partida, servindo-lhe como recibo.

§ 6o A terceira via ficará na posse do repre-sentante da entidade responsável pela organiza-ção da competição, que a encaminhará ao Ouvi-dor da Competição até as treze horas do primeiro dia útil subseqüente, para imediata divulgação.

Art. 12. A entidade responsável pela organi-zação da competição dará publicidade à súmula e aos relatórios da partida no sítio de que trata o parágrafo único do art. 5o até as quatorze horas do primeiro dia útil subseqüente ao da realização da partida.
……………………………………………………………….
Art. 19. As entidades responsáveis pela or-ganização da competição, bem como seus diri-gentes respondem solidariamente com as enti-dades de que trata o art. 15 e seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inob-servância do disposto neste capítulo.
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Art. 30. É direito do torcedor que a arbitragem das competições desportivas seja independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões.
Parágrafo único. A remuneração do árbitro e de seus auxiliares será de responsabilidade da entidade de administração do desporto ou da liga organizadora do evento esportivo.
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Art. 32. É direito do torcedor que os árbitros de cada partida sejam escolhidos mediante sor-teio, dentre aqueles previamente selecionados.
§ 1o O sorteio será realizado no mínimo qua-renta e oito horas antes de cada rodada, em local e data previamente definidos.
§ 2o O sorteio será aberto ao público, garan-tida sua ampla divulgação

Art. 33. Sem prejuízo do disposto nesta Lei, cada entidade de prática desportiva fará publicar documento que contemple as diretrizes básicas de seu relacionamento com os torcedores, disci-plinando, obrigatoriamente:
……………………………………………………………….
Parágrafo único. A comunicação entre o tor-cedor e a entidade de prática desportiva de que trata o inciso III do caput poderá, dentre outras medidas, ocorrer mediante:
I – a instalação de uma ouvidoria estável;
II – a constituição de um órgão consultivo formado por torcedores não-sócios; ou
III – reconhecimento da figura do sócio-torcedor, com direitos mais restritos que os dos demais sócios.
……………………………………………………………….
Art. 37. Sem prejuízo das demais sanções cabíveis, a entidade de administração do despor-to, a liga ou a entidade de prática desportiva que violar ou de qualquer forma concorrer para a vio-lação do disposto nesta Lei, observado o devido processo legal, incidirá nas seguintes sanções:
I – destituição de seus dirigentes, na hipótese de violação das regras de que tratam os Capítu-los II, IV e V desta Lei;
II – suspensão por seis meses dos seus diri-gentes, por violação dos dispositivos desta Lei não referidos no inciso I;
……………………………………………………………….
§ 1o Os dirigentes de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo serão sempre:
I – o presidente da entidade, ou aquele que lhe faça as vezes; e
II – o dirigente que praticou a infração, ainda que por omissão.
……………………………………………………………….
§ 3o A instauração do processo apuratório acarretará adoção cautelar do afastamento com-pulsório dos dirigentes e demais pessoas que, de forma direta ou indiretamente, puderem interferir prejudicialmente na completa elucidação dos fatos, além da suspensão dos repasses de verbas públicas, até a decisão final.” (sem grifos no original)

3. Afirma o requerente que tais normas seriam violadoras dos preceitos firmados nos incisos X, XVII, XVIII, LIV, LV, e § 2º, do artigo 5º, bem como dos artigos 18, caput; 24, inciso IX, e § 1º; e, artigo 217, inciso I, da Constituição da República.

4. Nesse sentido, assevera que os dispositivos cuja inconstitucionalidade é argüida violam o direito de livre associação, vulneram a imposição constitucional de não interferência estatal nas referidas associações, invadem a competência legislativa concorrente e, ainda, desrespeitam a autonomia das entidades desportivas, dos dirigentes e das associações, quanto à sua organização e funcionamento.

5. Na realidade, não se procedem as incompatibilidades apontadas pelo requerente entre a Lei 10.671/03 e a Constituição Federal, nos termos das considerações a seguir expendidas.

6. No tocante à suposta violação à liberdade de associação, a interpretação dada ao preceito pelo requerente revela-se dissonante com a exegese do texto constitucional. Ao contrário do que se possa entender ante uma leitura desatenta, o legislador constituinte não objetivou garantir às associações uma total independência, ou a desnecessidade de subordinação a regramentos normativos.

7. Conforme esclarece José Afonso da Silva:

“ A liberdade de associação, de acordo com o dispositivo constitucional em exame, contém quatro direitos: o de criar associação (e coopera-tivas), que não depende de autorização; o de aderir a qualquer associação, pois ninguém po-derá ser obrigado a associar-se; o de desligar-se de associação, porque ninguém poderá ser compelido a permanecer associado; e o de dis-solver espontaneamente a associação, já que não se pode compelir a associação a exisitir.”

8. Nessa linha de raciocínio, perfeito o comando insculpido na parte final, do inciso XVIII, do artigo 5º, da Constituição, segundo o qual é vedada a interferência estatal no funcionamento das associações. Todavia, mais uma vez, o requerente deu uma interpretação excessivamente extensiva ao preceito.

9. O que assegura a Constituição Federal às associações é que estas não sofrerão interferências arbitrárias do Poder Público, que não poderá intervir nas decisões das associações, pois estas hão de ser tomadas a partir do confronto de idéias e da adoção de critério democrático para a defesa dos interesses dos associados.

10. Na situação sob análise, a interferência do Poder Público sobre as associações desportivas, muito distante da arbitrariedade, representa o atendimento aos anseios de inúmeros cidadãos, que na qualidade de torcedores, eram obrigados a suportar o descaso e os desmandos dos dirigentes das mais diversas associações e entidades desportivas.

11. Enfim, ante o total desrespeito ao primado de que as associações devem se organizar de forma a, democraticamente, resguardar os direitos dos associados, perfeita e exigível é a intervenção do Poder Público, a fim de que sejam protegidos os direitos de uma camada expressiva da população que, em última análise, financia o desenvolvimento do esporte no país.

12. De outro lado, não se pode concluir, pela leitura dos dispositivos impugnados pela existência de vulneração da autonomia das entidades de prática desportiva, quanto à sua organização e funcionamento, mesmo porque o diploma legal em que se inserem os dispositivos, não tem por escopo disciplinar tais entes, mas sim, proteger o direito do torcedor.

13. Ocorre que, por força do disposto no parágrafo 3º, do artigo 42, da Lei 9.615/98, que regula as normas gerais sobre desporto, o torcedor é equiparado ao consumidor, nos termos do artigo 2º, da Lei 8.078/90. Em conseqüência disso, perfeita a previsão constante do caput do artigo 19, no sentido de que aos organizadores caberá o dever de indenizar os torcedores, independentemente da comprovação de culpa, caso esses venham a experimentar danos decorrentes da falta de segurança nos estádios.

14. Trata-se da consagração da responsabilidade objetiva, já prevista no Código de Defesa do Consumidor, reflexo da chamada teoria do risco, segundo a qual, o fornecedor de produtos ou serviços, no caso, o organizador dos eventos desportivos, ao disponibilizarem seus produtos, ou serviços, ao público, assumem, integralmente, os riscos a eles inerentes.

15. Nada há de inconstitucional nesta previsão, porquanto a estreita relação fixada entre o Estatuto do Torcedor e o Código de Defesa do Consumidor, têm um fundamento único, a hipossuficiência do consumidor-torcedor, frente os fornecedores – organizadores dos eventos desportivos. Ante tal situação de evidente desigualdade entre as partes, não poderia o texto legal estabelecer regras protetivas equânimes para ambos, pois desta forma, sim, estaria sendo violada a Constituição Federal.

16. Também não se justifica a alegada invasão de competência legislativa, por suposta violação ao inciso I, do artigo 24, da Constituição. Seguindo os moldes da Lei 8.078/90, que por tratar de proteção ao consumidor também se insere no rol das competências concorrentes, os dispositivos da Lei 10.671/2003 fixam as regras gerais a serem observadas pelos entes federativos.

17. As afirmações no sentido de que o legislador fixou minúcias as quais somente poderiam ter sido determinadas pelos Estados e Municípios, não possuem fundamento, porquanto o que se verifica, na realidade, é que o Estatuto fixa os princípios norteadores da proteção dos direitos do torcedor, estabelecendo ainda, os instrumentos que garantirão efetividade a tais princípios.

18. Ora, é preciso observar que, caso a União não estabelecesse, desde já, os meios que garantem a concretização dos princípios consagrados no diploma legal, estes poderiam permanecer no mundo da abstração, tornando o Estatuto do Torcedor um mero rol de dispositivos normativos destituídos de força cogente.

19. De igual modo, a Lei 10.671/2003 não pode ser considerada violadora da autonomia das entidades desportivas, prevista no inciso I, do artigo 217, da Constituição Federal.

20. Há que se atentar para o fato de que a autonomia garantida no texto constitucional não se confunde com soberania ou independência e, muito menos, com a total falta de compromisso com o bem-estar público. O fato é que as entidades desportivas têm garantida a autonomia relativamente à sua organização e funcionamento, o que confere feição administrativa ao preceito.

21. Contudo, em nome da defesa desta autonomia não se pode pretender que os interesses da coletividade sejam desprezados, sendo legítima a imposição de regras como as previstas na Lei 10.671. Note-se, ademais, que em nenhum dos dispositivos impugnados são estabelecidas normas que alterarão o funcionamento e a organização administrativa das entidades e associações desportivas, sendo fixados, na verdade, preceitos a serem obedecidos a fim de que sejam protegidos os direitos de sujeito estranho a esta estrutura interna: o torcedor.

22. Assim, evidente não restar malferido o inciso I, do artigo 217, da Constituição Federal, haja vista o texto do Estatuto não dispor sobre a organização interna das associações e entidades desportivas, tratando, na realidade, da proteção do direito de uma parcela destacada da coletividade, caracterizada e denominada pelo legislador como torcedor.

Assim sendo, certo da inexistência de violação ao texto constitucional, manifesta-se o Ministério Público Federal pela improcedência dos pedidos.

Brasília, 17 de setembro de 2003.

ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA
VICE PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

Aprovo:

CLAUDIO FONTELES
Procurador-Geral da República

Katia Schmidt

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