PROPRIEDADE INTELECTUAL, LEI PELÉ E LEI GERAL DO ESPORTE: UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA.

Lucas Barbosa de Araújo e Luciano Andrade Pinheiro

No Brasil, símbolos e denominações de organizações esportivas não são reduzíveis a marcas, ao menos enquanto viger a Lei Pelé (Lei 9.615/98)[1] ou perdurar o veto parcial da Lei Geral do Esporte (Lei 14.589/2023), que a revogava[2].

Nosso ordenamento jurídico ainda congrega, portanto, (i) um sistema de natureza especial, declaratório e informal, instituído pela Lei Pelé tendo em vista a proteção dos símbolos desportivos; (ii) um sistema geral, atributivo e formal, que tutela direitos de exclusividade incidentes sobre marcas, inclusive símbolos desportivos assim registrados, nos termos da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96)[3].

Considerando que a Lei Pelé teria sido revogada na íntegra pela Lei Geral do Esporte e só não o foi para evitar lacunas normativas consequentes aos demais vetos manifestados pela Presidência da República[4], a manutenção de dois sistemas protetivos dos símbolos desportivos parece acidental e não fruto de um escolha política esclarecida.

Diante desta conjuntura, este artigo apresenta uma breve reflexão acerca dos institutos que viabilizam a tutela jurídica dos símbolos desportivos no Brasil, a fim de que vislumbremos, à luz da Lei Geral do Esporte, inconsistências normativas que possivelmente decorrerão de eventual revogação da Lei Pelé que se mostre desatenta à importância do tema.

Afinal, a adequada gestão de propriedade intelectual, conquanto dependa de segurança jurídica, oferece às organizações esportivas oportunidade de obtenção de relevantes e variadas receitas, relacionadas, por exemplo, a contratos de patrocínio, atividades de marketing e comunicação, programas de sócio torcedor, apostas esportivas[5], além de recursos públicos oriundos de outras modalidades lotéricas[6].

Ativos imateriais podem, outrossim, viabilizar a constituição, por cisão, de uma Sociedade Anônima do Futebol[7] e, de acordo com a própria Organização Mundial da Propriedade Intelectual, asseguram o valor e integridade de atividades esportivas, a maximização de receitas decorrentes de licenciamento e a fidelização dos torcedores[8].

Não é novidade que os símbolos estabeleçam, precisamente, plataformas comunicativas entre torcedores cada vez mais engajados e organizações desportivas progressivamente atentas ao fenômeno da digitalização, que acentua a consideração do esporte como forma especial de entretenimento (sportainment).

Escudos, lemas, mascote e hinos são, com efeito, a morada de ativos imateriais a princípio heterogêneos (tradição, história, títulos, mérito esportivo e estilo de jogo) que definem a unidade das organizações esportivas em meio à diversidade das suas operações, para utilizar a acepção jurídica atribuída ao conceito de “símbolo” por Luhmann[9].

À latente importância da matéria sob a perspectiva de torcedores, organizações esportivas, parceiros comerciais e demais entidades integradas ao Sistema Nacional do Esporte, não corresponde, conforme visto na introdução deste artigo, uma disciplina normativa delineada de modo preciso.

A Lei Pelé, por um lado, situa o reconhecimento de que, por tempo indeterminado, as organizações esportivas serão proprietárias exclusivas de seus símbolos e denominações, garantida a exploração comercial destes e sendo apenas facultativa a promoção de registros ou averbações perante o órgão administrativo competente.

A seu turno, a Lei de Propriedade Industrial disciplina regime atributivo de direitos de exclusividade ao titular da marca, limitadamente entendida como sinal visual cujas principais funções são a identificação da origem de produtos ou serviços e a sua distinção de outros que sejam semelhantes, mas possuam procedência diversificada[10].

As marcas se relacionam, portanto, com a exploração de atividades econômicas e fornecem, por tempo certo, direitos de exclusividade restritos, via de regra, ao ramo de mercado ativado pelo respectivo titular, que necessariamente deve requerer o registro da marca perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, a fim de que este afira, por meio de processo administrativo, a presença dos requisitos legais de distintividade[11], veracidade[12] e novidade relativa[13], em atenção às condições negativas de registrabilidade[14].

A par das distinções próprias aos dois sistemas que tutelam os símbolos desportivos no Brasil, sumarizadas por meio da tabela abaixo reproduzida, sempre recomendamos fortemente que organizações esportivas promovam o registro de seus símbolos como marcas, sobretudo em razão da fundamentação supranacional do direito marcário e da fragilidade do instituto sui generis positivado na Lei Pelé, desprovido de regulamentação[15].

Fonte: PINHEIRO (2022)

Todavia, é certo que nem todas as organizações desportivas tenham condições de promover e conservar o registro de marcas, em razão de impasses de ordem jurídica ou econômica. Além disso, o direito marcário não viabiliza a tutela jurídica dos símbolos desportivos que não sejam visualmente perceptíveis, a exemplo de hinos, lemas e cânticos de torcidas. Estes, em tese, são enquadrados como obras intelectuais, disciplinadas pelo direito de autor, cuja titularidade dificilmente será atribuída às organizações esportivas a que forem vinculados[16].

Não se olvide, finalmente, que o sistema da Lei de Propriedade Industrial, em razão das condições negativas de registro antes mencionadas, não admite a convivência de marcas semelhantes em função da designação de atividades correlatas[17]. Essa circunstância pode se tornar um entrave para organizações esportivas, considerando ser comum, no esporte, a utilização de denominações e emblemas idênticos ou parecidos[18].

Aqui ganha pertinência a consideração das inovações consequentes à promulgação da Lei Geral do Esporte, cuja versão aprovada pelas Casas Legislativas promovia, antes do veto presidencial, a revogação integral da Lei Pelé, incluindo, logicamente, o dispositivo legal que (ainda) fundamenta o reconhecimento da titularidade originária das organizações esportivas sobre seus símbolos e denominações.

Eis o problema: o novo diploma legal não contém norma funcionalmente equivalente àquela prevista no código antecessor. A Lei Geral do Esporte disciplina de modo puramente negativo a propriedade intelectual exercida por organizações esportivas sobre seus símbolos oficiais, por meio da tipificação de crimes contra a ordem econômica esportiva[19].

Trata, exclusivamente, da ilicitude de reproduções imitações, falsificações, modificações, importações, exportações, dentre outras condutas relativas aos símbolos que sejam da titularidade de organizações esportivas. Todavia, para além do dispositivo previsto na Lei Pelé e do regime geral da Lei de Propriedade Industrial, inexistem normas que confiram, às organizações esportivas, esse tipo de titularidade sobre seus símbolos e denominações.

Eventual revogação da Lei Pelé quanto à fração de interesse importará, desse modo, na descaracterização, por absoluta ausência de amparo legal, da propriedade intelectual historicamente exercida por organizações esportivas brasileiras sobre os símbolos desportivos a si vinculados. Isso inclui todos os símbolos que não tiverem sido registrados como marcas perante o INPI, bem como aqueles que não são tutelados pela Lei de Propriedade Industrial, a exemplo de hinos, lemas e cânticos de torcidas. Sem titularidade, não será possível exercer os direitos de oposição previstos na Lei Geral do Esporte.

Não é possível, por ora, precisar o impacto socioeconômico dessa alteração normativa, que, conforme dissemos nas linhas transatas, parece-nos irrefletida e casuística especificamente quanto à tutela jurídica dos símbolos desportivos. Podemos conjecturar, nada obstante, que serão gravemente comprometidos ativos imateriais cuja propriedade atualmente pertence a organizações esportivas de menor porte, desprovidas de instrumentos de governança e/ou necessários à condução de processos administrativos de registro de marcas.

Esse corolário não se coaduna com os princípios fundamentais e com os direitos fundamentais reforçados pela Lei Geral do Esporte[20]. Tampouco é compatível com os preceitos constitucionais que resguardam, por um lado, o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país como os principais parâmetros da concessão de privilégios exclusivos e temporários de propriedade industrial e, por outro, o fomento às práticas desportivas formais e não formais.[21]

À medida que a gestão de propriedade intelectual desponte como uma das principais possibilidades de ascensão de organização esportivas, esperamos que a presente reflexão seja considerada pelas autoridades competentes, de modo que, ou seja conservado o sistema especial da Lei Pelé, ou seja normatizado um novel e correlato instituto, que se mostre compatível com as inovações trazidas pela Lei Geral do Esporte.

[1] Ver artigo 87 da Lei 9.615/98. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm.

[2] Nesse sentido, o art. 217, inc. II, do Projeto da Lei Geral do Esporte Lei 14.589/2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14597.htm.

[3] Ver artigos 122 e seguintes da Lei 9.279/96. Disponível em> https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm

[4] Lançando mão da prerrogativa prevista no art. 66, § 1º, da CF/88, o Presidente da República acatou solicitações oriundas do Ministério do Esporte e da Advocacia-Geral da União e vetou a revogação da Lei Pelé, sob os seguintes fundamentos: “Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público porque, na medida em que foram solicitados todos os vetos acima justificados, há necessidade de manutenção da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, para que não haja lacuna jurídica no arcabouço normativo do direito ao esporte”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Msg/Vep/VEP-0273-23.htm.

[5] Conforme Lei 13.756/2018, as organizações cedentes de direitos de uso de símbolos desportivos participam do produto decorrente da exploração de apostas de quota fixa (art. 30, § 1º-A, inc. III).

[6] Lei 14.597/2023. Art. 36. Somente serão beneficiadas com repasses de recursos públicos federais da administração direta e indireta e de valores provenientes de concursos de prognósticos e de loterias, nos termos desta Lei e do inciso II do caput do art. 217 da Constituição Federal, as organizações de administração e de prática esportiva do Sinesp que: (…) VII – sejam transparentes na gestão, inclusive quanto aos dados econômicos e financeiros, contratos, patrocinadores, direitos de imagem, propriedade intelectual e quaisquer outros aspectos de gestão; (…).

[7] A Lei 14.193/2021 resguarda à pessoa jurídica originária de Sociedade Anônima do Futebol certas prerrogativas relativas aos símbolos desportivos (art. 2º, § 4º, inc. II), os quais podem ser, inclusive, objeto de integralização ao capital social (art. 3º).

[8] World Intellectual Property Organization. Sport and Branding. Disponível em: https://www.wipo.int/sports/en/branding.html.

[9] LUHMANN, N. Direito da Sociedade. 1ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2016. E-book. Posição: 1522.

[10] BRASIL. Diretoria de Marcas, Desenhos Industriais e Indicações Geográficas – INPI. Manual de Marcas. 3ª Edição. 6ª Revisão: 17.01.2023. Pg. 19.

[11] A marca deve ser capaz de destacar, do domínio comum, a origem comercial de determinados produtos ou serviços, de forma a funcionarem como indutores de investimentos e subsídios para diminuição da assimetria de informações dos consumidores.

[12] O símbolo não deve possuir caráter intrinsecamente deceptivo com condão de lesar consumidores e competidores. Ou seja, deve haver correlação entre a marca e os produtos ou serviços designados.

[13] O registro de marcas não pode compreender símbolos previamente apropriados por terceiros ou integrados ao domínio público.

[14] Conferir arts. 122 e 124 da Lei 9.279/96.

[15] PINHEIRO, Luciano Andrade. A gestão das marcas dos clubes de futebol: um estudo sobre o uso da propriedade industrial e da Lei Pelé como forma de proteção. 2022. 71 f., il. Dissertação (Mestrado Profissional em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a Inovação) — Universidade de Brasília, Brasília, 2022.

[16] Via de regra, a titularidade de direitos autorais pertence a pessoas físicas, excetuadas hipóteses de concepção de obras intelectuais em decorrência da execução de contratos de trabalho de propriedade intelectual. Desse modo, organizações esportivas apenas funcionariam como titulares derivadas de direitos autorais, mediante ajuste de contratos de cessão ou licença com os titulares originários de direito.

[17] Ver artigo 129, inc. XII, da Lei 9.279/1996.

[18] Confiram-se, a esse respeito, comparações promovidas pelo UOL Esporte acerca de escudos assemelhados no futebol mundial. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/album/2013/09/12/escudos-parecidos-no-futebol-mundial.htm?foto=3.

[19] Vejam-se os artigos 168, 169 e 170 da Lei 14.589/2023.

[20] Confiram-se, exemplificativamente, os artigos 2º, 3º e 4º da Lei 14.589/2023.

[21] Nesse sentido, os arts. 5º, inc. XXIX, e 217 da CF/88, respectivamente. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.