Relação entre contrato de trabalho e contrato de licença de uso de imagem

Carlos Eduardo Ambiel
Walter Godoy dos Santos Júnior

A ciência que estuda a aplicação das regras do direito ao desporto no Brasil é embrionária se comparada às demais disciplinas jurídicas, tradicionalmente presentes nos tribunais e nas principais cadeiras das faculdades brasileiras. Falta-nos, por isso, a natural evolução doutrinária dos institutos e a acomodação das diversas correntes hermenêuticas em torno de uma jurisprudência reiterada e pacífica, especificamente para o desporto.
A incipiente produção legislativa ao longo da história e a falta de tradição no estudo científico desse ramo da ciência jurídica, somada à recente deflagração de seguidas alterações na legislação1 , fez surgir um campo muito amplo de interpretação e discussão, materializado pela avalanche de notícias, entrevistas e opiniões completamente desencontradas que, diariamente, são veiculas pela imprensa, principalmente quando se trata da relação entre clubes e atletas profissionais de futebol.
Esse ambiente fez surgir uma situação de incerteza que não se coaduna com o sentido de harmonia e desenvolvimento almejado para o desporto no nosso país, demandando dos profissionais do direito uma contribuição mais técnica e ativa na construção de conceitos sólidos e eficientes para serem aplicados a essas relações.

A tarefa mostra-se complexa quando consideramos que não existe uma ciência autônoma do direito desportivo, exceto no que se refere às regras disciplinares e à organização das competições. Ao contrário, deparamo-nos com fatos relacionados com outros tradicionais ramos do direito, que devem ser simplesmente aplicados às novas situações exigidas pelo esporte.
Com esse propósito que, nos restritos limites do presente estudo, apresentaremos breves considerações sobre a relação entre o contrato de trabalho e o contrato de licença de uso de imagem, buscando respostas para algumas das polêmicas surgidas na matéria. Como metodologia proposta, resgataremos os conceitos clássicos desses tradicionais institutos jurídicos para, então, aplicá-los às peculiaridades do desporto.

1. Do contrato de trabalho do atleta profissional
O atleta que pratica atividade esportiva profissionalmente realiza uma modalidade de trabalho2 . Como tal, tem em sua profissão, direitos e deveres regulados por lei.
O ordenamento brasileiro há muito tempo dispensa tratamento diferenciado para determinadas atividades – chamadas de profissões regulamentadas, que apresentam características diversas das demais3 . São exemplos de profissões regulamentadas, além dos atletas profissionais, os aeronautas, os vendedores pracistas e os artistas, entre outros4.
Cabe frisar que o fato de os trabalhadores de profissões regulamentadas apresentarem características especiais não lhes retira a condição de empregados, sempre que presentes os requisitos do artigo 3º da CLT. Assim, aplica-se aos seus contratos todas as regras da Consolidação das Leis do Trabalho, desde que compatíveis com a lei especial. Além disso, como qualquer trabalhador, têm garantidos os direitos sociais previstos no art. 7-º da CF/88. A única diferença é que, ao lado das condições gerais, observam regras próprias de sua atividade, que devem ser interpretadas de forma harmônica.
Essa é a situação do contrato de trabalho, influenciado por preceitos gerais mas regulado pelas peculiaridades da legislação especial. Nos termos do artigo 442 da CLT, pode o contrato de trabalho ser pactuado de maneira expressa ou tácita, podendo ser escrito ou verbal, prevalecendo sempre a realidade dos fatos sobre a forma. Já a Lei nº 9.615/98, na parte do trabalho do atleta profissional, determina que o contrato deve ser pactuado formalmente, com previsão expressa de remuneração e cláusula penal.
Diante dessa redação, conclui-se que o legislador exige contrato escrito para o atleta profissional, mesmo porque, uma das obrigações do clube será registrar o contrato na respectiva entidade de administração5. No entanto, embora a lei exija o contrato escrito, este não poderá ser condição para o reconhecimento de uma relação de emprego entre atleta e clube, na medida que o ordenamento brasileiro consagra a validade do contrato verbal. O desrespeito à exigência de contrato escrito resulta, nos termos do art. 46-A da Lei nº 9.615/986 , na inelegibilidade dos dirigentes do clube e na aplicação das penalidades trabalhistas. Referida penalidade trabalhista, no caso, seria a aplicação do art. 442 da CLT e o reconhecimento da relação de emprego sempre que estiverem presentes os requisitos do art. 3º da Consolidação, independentemente da existência de contrato formal.
Portanto, a ausência de contrato de trabalho escrito não impede a formação do vínculo de emprego, embora traga uma gama de prejuízos ao clube, suficiente para que se recomende sempre previsão expressa. Sem contrato escrito, os clubes não podem pactuar a cláusula penal para rescisão antecipada dos contratos, seja para transferências nacionais, limitada a cem vezes o montante da remuneração anual pactuada, seja para transferências internacionais.
Outra característica dos contratos de atletas profissionais, que diverge completamente da regra geral da CLT, refere-se à duração dos contratos. A Consolidação, com fundamento no princípio da continuidade, prescreve que os contratos de trabalho tem prazo indeterminado, admitindo sua formalização por prazo certo apenas nas hipóteses expressamente excepcionadas no § 2º, do art. 4437 . Também há uma limitação quanto ao tempo máximo do termo fixado que, nos termos do art. 445 da CLT, nunca poderá ultrapassar dois anos, prorrogável uma única vez8 .
No caso de atletas profissionais a legislação é completamente diversa. A atual redação da Lei nº 9.615/98, introduzida pela Lei nº 9981/00, estabelece que os contratos de trabalho do atleta profissional terão prazo determinado, limitado ao mínimo de três meses e ao máximo de cinco anos9 . Como conseqüência, no parágrafo único do mesmo artigo, a lei afasta a aplicação do art. 455 da CLT, em redação redundante, na medida que apenas reafirma a possibilidade que contratação por prazo superior aos dois anos.
A duração do contrato tem grande relevância no momento da rescisão, pois, se ocorrida em seu termo, nenhuma indenização será devida de uma parte à outra. Nas hipótese de rescisão antecipada a parte culpada será responsabilizada pelo pagamento da indenização prevista na cláusula penal do contrato e, nos casos específicos de rescisão por falta de pagamento de salário, o valor da indenização, por expressa disposição legal10 , será de 50% do valor restante do contrato.
Feitas essas considerações de caráter geral, passemos a análise da natureza jurídica do contrato de licença de uso de imagem, para, finalmente apresentarmos a relação existente entre os dois institutos.

2. Do contrato de licença de uso de imagem
O contrato de licença de uso de imagem tem por objeto a utilização de um bem jurídico, que além de personalíssimo e inalienável, goza de proteção Constitucional, nos termos do art. 5º, incisos V e X, da Magna Carta.

A imagem, nos ensinamentos do eminente Professor Walter Moraes corresponde a “toda expressão formal e sensível da personalidade. Prosseguindo afirma que, “a idéia de imagem não se restringe, portanto, à representação do aspecto visual da pessoa pela arte da pintura, da escultura, do desenho, da fotografia, da figuração caricata ou decorativa, da reprodução em manequins ou máscaras”, compreendendo também “imagem como a de fotografia e da radiodifusão, os gestos, expressões dinâmicas da personalidade”.11
A imagem abrange, portanto, todos os elementos percebidos pelos sentidos humanos e, como todo direito, apresenta uma determinada natureza jurídica, retratada na lição do saudoso Professor Antônio Carlos Bittar:
“Reveste (o direito de imagem) de todas as características comuns aos direitos da personalidade. Destaca-se, no entanto, dos demais, pelo aspecto da disponibilidade, que, com respeito a esse direito, assume dimensões de relevo, em função da prática consagrada de uso de imagem humana em publicidade, para efeito de divulgação de entidades, de produtos ou de serviços postos à disposição do público consumidor”.12
Trata-se, assim, de um direito personalíssimo e independente, protegido constitucionalmente como bem jurídico autônomo, capaz de determinar por si conduta que implique a disciplina de determinada norma jurídica.
No que se refere ao aspecto da disponibilidade do direito de imagem, ressaltado pelo ilustre Professor Bittar, lembre-se que os contratos de licença de uso de imagem devem ser interpretados de forma restritiva e apresentar condições bastante detalhadas que especifiquem exatamente o que está sendo autorizado e o que se reserva à esfera pessoal e indisponível de seu titular, pelo fato de se tratar de direito personalíssimo.
Diante disso, cabe esclarecer que é equivocado o uso da expressa cessão de direito de imagem, tão comum na mídia, sendo recomendável a utilização do termo licença de uso, como explica Roubier em síntese merecedora de fiel transcrição:

“Por ora dizemos apenas que na licença ocorre simplesmente a concessão do exercício do direito de exploração, enquanto direito propriamente dito permanece nas mãos de seu titular, que não pretendeu dispor do mesmo. É isto que permite distinguir a licença da cessão: através da cessão ocorre o abandono, em todo ou em parte, do próprio direito privativo; na licença existe a simples concessão do exercício do direito e dela resulta que o titular do registro conserva para si, em princípio, o direito de exploração.”13
A licença de uso da imagem pode ser objeto de contrato entre pessoas físicas ou jurídicas. Nada impede, todavia, como se verifica na prática, que determinadas pessoas jurídicas representem a pessoa física, comercializando a licença de utilização da imagem. O sujeito do contrato, no entanto, não altera sua natureza jurídica, que é civil, pois firmada livremente pelos interessados. As partes, no ajuste de vontade, dispõem sobre o tipo e os meios de divulgação consentida, os limites impostos à quantidade de divulgação e a determinação de tempo de exposição da imagem, bem como se a referida licença é exclusiva ou não.

O contrato de licença de imagem firmado entre a entidade desportiva e o atleta profissional autoriza a vinculação da imagem deste ao clube, seja em fotos oficias, seja em promoções ou eventos. Da mesma forma a entidade desportiva poderá simplesmente não utilizar a imagem do atleta, reservando-se o direito de eventualmente aproveitá-la ou de impedir que terceiros a utilizem.
No caso específico dos clubes de futebol, os contratos de licença de imagem revestem-se de especial importância devido à exposição pública a que o atleta é submetido e a direta vinculação entre sua imagem de jogador profissional e o clube que defende, seja concedendo entrevistas, seja treinando e jogando com as cores, o escudo e a camisa do clube.

3. Da relação entre os contratos
Feitas todas essas considerações, podemos afirmar que os contratos de trabalho e de licença de uso de imagem são absolutamente independentes: o primeiro, tem natureza de relação de emprego, ligado à existência dos requisitos do art. 3º da CLT e envolve a força de trabalho do atleta; o segundo, natureza civil, dispondo sobre a utilização da imagem do atleta pela entidade desportiva. Um estabelece condições de trabalho, como remuneração, duração do contrato, obrigações disciplinares; o outro, os limites e as conseqüências da utilização da imagem do atleta.
Por serem contratos independentes, estão totalmente desvinculados. Assim, o valore pago a título de licença para o uso da imagem não constitui salário e não é base para incidência de contribuição de INSS, FGTS e pagamento de férias e 13º salário ao atleta empregado. Da mesma forma, os valores creditados a titulo de licença de uso, não podem ser utilizados para cálculo da remuneração anual no momento da fixação da cláusula penal por rescisão ou descumprimento contratual. Em contrapartida, a indenização da referida cláusula penal não se aplica para o caso de rescisão apenas do contrato de licença de uso de imagem, que tem multa rescisória limitada ao valor do contrato, nos termos do artigo 920 do vigente Código Civil brasileiro.
Outra questão que se coloca com freqüência envolve a existência ou não de limite para o montante aceito como valor do contrato de licença de imagem, vez que sua valoração nem sempre é objetiva. O problema se agrava ainda mais quando o valor do salário do atleta é baixo, cogitando-se da utilização do contrato de licença como uma forma legal de pagar o salário do empregado sem os respectivos encargos. Neste caso, embora sejam contratos independentes, é evidente que se constatado o intuito fraudulento do contrato de licença de imagem, ele será anulado a partir do disposto nos artigos 9º e 444 da CLT, com todas as repercussões decorrentes.
Recomenda-se que o valor pago pelo uso da imagem reflita corretamente o valor de mercado e que esse possa ser demonstrado pelo clube, caso sua validade seja eventualmente questionada. Atualmente já existem critérios objetivos para definição desses valores, que podem ser observados com relativa segurança14.
Uma última questão intrigante e de bastante atualidade refere-se aos efeitos da extinção do contrato de trabalho em momento diverso do prazo de vigência do contrato de licença de imagem, seja porque foram pactuados com duração diversa, seja porque houve rescisão antecipada do contrato de trabalho.
Sobre isso, devemos lembrar que os contratos são autônomos e como tal, um não interfere na validade nem na vigência do outro. Assim, a extinção do contrato de trabalho não rescinde o contrato de licença, exceto se o último contiver, como se recomenda, cláusula com condição resolutiva para a hipótese de extinção da relação de emprego. Afastado esse caso, a rescisão do contrato de trabalho implica na rescisão do contrato de licença de uso de imagem e, se a parte interessada desejar rescindi-lo também, deverá arcar com a respectiva multa pactuada. Mais complicado será o caso em que o valor previsto para a multa, por ser tão alto, venha a impossibilitar o pagamento pelo atleta, impedindo que ele continue atuando em outro clube, enquanto está com seus direitos de imagem cedidos ao antigo empregador.
Neste caso, constatado que o valor da cláusula extrapola o razoável e impede o continuidade do trabalho do atleta em outro clube, o Poder Judiciário poderia, com fundamento no art. 5º, XIII da CF/88, declarar sem efeito o contrato na hipótese deste, momentaneamente, estar impedindo a realização do trabalho pelo atleta, sem prejuízo da indenização correspondente devida à parte lesada. O afastamento também da indenização por esse fundamento, somente seria admissível em situações extremas e excepcionais, pois, como regra, os contratos são independentes.

Por tudo isso, sugerimos que o contrato de licença seja feito de forma escrita, por profissional especializado, apresentando regras claras e objetivas que especifiquem os meios de divulgação consentida, os limites impostos à quantidade de divulgação, a determinação de tempo de exposição da imagem, informando se a referida licença é exclusiva ou não. Por fim, recomendamos que o contrato vincule expressamente sua vigência ao contrato de trabalho, evitando assim, problemas futuros.

(*) Carlos Eduardo Ambiel é advogado do escritório Felsberg e Associados, mestrando em Direito do Trabalho pela USP e professor de Direito do Trabalho da FAAP.
(*) Walter Godoy dos Santos Júnior é advogado do escritório Felsberg e Associados, especializado em propriedade intelectual.

O presente Memorando foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

(1) A Legislação do desporto brasileira foi profundamente inovada com a promulgação da Lei nº 8672/1993 (Lei Zico), posteriormente substituída pela Lei nº 9615/1998 (lei Pelé) que, com pouco mais de três anos de vigência, já foi alterada pela Lei nº 9981/2000 e pela Medida Provisória nº 2.141 de 23.03.2001.
(2) A palavra trabalho está sendo utilizada, neste caso, em seu contexto genérico, representando toda e qualquer atividade humana produtiva, sem relação com o vínculo de emprego descrito no art. 3º da CLT.
(3) O parágrafo único do art. 507 da CLT, já revogado, referia-se a profissão de artistas de teatro e congêneres. Para alguns autores, como Nélio Reis (in Contratos Especiais de Trabalho. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1955, pág. 306) a expressão congêneres incluía também os atletas profissionais de futebol.
(4) Os aeronautas são regidos pela Lei nº 7183/1984; os vendedores pracistas e viajantes pela Lei nº 3.207/1957; os atletas profissionais pela Lei nº 9615/98.
(5) Art. 34 da Lei nº 9615/1998.
(6) Redação dada pela Medida Provisória 2141 de 23.03.01.
(7) Constituem hipóteses para formalização de contrato a termo: a) a realização de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo; b) atividades empresariais de caráter transitório; c) contratos de experiência.
(8) Ao permitir a prorrogação do contrato determinado uma única vez, o artigo 451 da CLT, permite a manutenção do contrato original por um novo período certo de tempo, desde que não haja alteração das condições pactuadas, quando estaremos diante de mera renovação que, por princípio, transformaria o contrato determinado automaticamente em contrato por prazo indeterminado.
(9) Art. 30 da Lei nº 9615/98.
(10) Art. 31, § 3º da Lei nº 9615/98.
(11) Moraes, Walter – Direito à Própria Imagem, RT V.443.
(12) Bittar, Carlos Alberto – Os direitos da personalidade, Editora Forense Universitária, 3ª edição, revisada e atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar.
(13) Roubier, Paul. Le Droit de la Propriété Industrielle, 1952, p.143 (tradução livre).
(14) Para apuração do valor da imagem do atleta podem ser utilizados critérios objetivos ligados à performance e ao seu reconhecimento junto ao público, bem como subjetivos relacionados à conduta moral e a disciplina do atleta.
RELAÇÃO ENTRE CONTRATO DE TRABALHO E CONTRATO DE LICENÇA DE USO DE IMAGEM(*)

A ciência que estuda a aplicação das regras do direito ao desporto no Brasil é embrionária se comparada às demais disciplinas jurídicas, tradicionalmente presentes nos tribunais e nas principais cadeiras das faculdades brasileiras. Falta-nos, por isso, a natural evolução doutrinária dos institutos e a acomodação das diversas correntes hermenêuticas em torno de uma jurisprudência reiterada e pacífica, especificamente para o desporto.
A incipiente produção legislativa ao longo da história e a falta de tradição no estudo científico desse ramo da ciência jurídica, somada à recente deflagração de seguidas alterações na legislação1 , fez surgir um campo muito amplo de interpretação e discussão, materializado pela avalanche de notícias, entrevistas e opiniões completamente desencontradas que, diariamente, são veiculas pela imprensa, principalmente quando se trata da relação entre clubes e atletas profissionais de futebol.
Esse ambiente fez surgir uma situação de incerteza que não se coaduna com o sentido de harmonia e desenvolvimento almejado para o desporto no nosso país, demandando dos profissionais do direito uma contribuição mais técnica e ativa na construção de conceitos sólidos e eficientes para serem aplicados a essas relações.

A tarefa mostra-se complexa quando consideramos que não existe uma ciência autônoma do direito desportivo, exceto no que se refere às regras disciplinares e à organização das competições. Ao contrário, deparamo-nos com fatos relacionados com outros tradicionais ramos do direito, que devem ser simplesmente aplicados às novas situações exigidas pelo esporte.
Com esse propósito que, nos restritos limites do presente estudo, apresentaremos breves considerações sobre a relação entre o contrato de trabalho e o contrato de licença de uso de imagem, buscando respostas para algumas das polêmicas surgidas na matéria. Como metodologia proposta, resgataremos os conceitos clássicos desses tradicionais institutos jurídicos para, então, aplicá-los às peculiaridades do desporto.
1. Do contrato de trabalho do atleta profissional
O atleta que pratica atividade esportiva profissionalmente realiza uma modalidade de trabalho2 . Como tal, tem em sua profissão, direitos e deveres regulados por lei.
O ordenamento brasileiro há muito tempo dispensa tratamento diferenciado para determinadas atividades – chamadas de profissões regulamentadas, que apresentam características diversas das demais3 . São exemplos de profissões regulamentadas, além dos atletas profissionais, os aeronautas, os vendedores pracistas e os artistas, entre outros4.
Cabe frisar que o fato de os trabalhadores de profissões regulamentadas apresentarem características especiais não lhes retira a condição de empregados, sempre que presentes os requisitos do artigo 3º da CLT. Assim, aplica-se aos seus contratos todas as regras da Consolidação das Leis do Trabalho, desde que compatíveis com a lei especial. Além disso, como qualquer trabalhador, têm garantidos os direitos sociais previstos no art. 7-º da CF/88. A única diferença é que, ao lado das condições gerais, observam regras próprias de sua atividade, que devem ser interpretadas de forma harmônica.
Essa é a situação do contrato de trabalho, influenciado por preceitos gerais mas regulado pelas peculiaridades da legislação especial. Nos termos do artigo 442 da CLT, pode o contrato de trabalho ser pactuado de maneira expressa ou tácita, podendo ser escrito ou verbal, prevalecendo sempre a realidade dos fatos sobre a forma. Já a Lei nº 9.615/98, na parte do trabalho do atleta profissional, determina que o contrato deve ser pactuado formalmente, com previsão expressa de remuneração e cláusula penal.
Diante dessa redação, conclui-se que o legislador exige contrato escrito para o atleta profissional, mesmo porque, uma das obrigações do clube será registrar o contrato na respectiva entidade de administração5. No entanto, embora a lei exija o contrato escrito, este não poderá ser condição para o reconhecimento de uma relação de emprego entre atleta e clube, na medida que o ordenamento brasileiro consagra a validade do contrato verbal. O desrespeito à exigência de contrato escrito resulta, nos termos do art. 46-A da Lei nº 9.615/986 , na inelegibilidade dos dirigentes do clube e na aplicação das penalidades trabalhistas. Referida penalidade trabalhista, no caso, seria a aplicação do art. 442 da CLT e o reconhecimento da relação de emprego sempre que estiverem presentes os requisitos do art. 3º da Consolidação, independentemente da existência de contrato formal.
Portanto, a ausência de contrato de trabalho escrito não impede a formação do vínculo de emprego, embora traga uma gama de prejuízos ao clube, suficiente para que se recomende sempre previsão expressa. Sem contrato escrito, os clubes não podem pactuar a cláusula penal para rescisão antecipada dos contratos, seja para transferências nacionais, limitada a cem vezes o montante da remuneração anual pactuada, seja para transferências internacionais.
Outra característica dos contratos de atletas profissionais, que diverge completamente da regra geral da CLT, refere-se à duração dos contratos. A Consolidação, com fundamento no princípio da continuidade, prescreve que os contratos de trabalho tem prazo indeterminado, admitindo sua formalização por prazo certo apenas nas hipóteses expressamente excepcionadas no § 2º, do art. 4437 . Também há uma limitação quanto ao tempo máximo do termo fixado que, nos termos do art. 445 da CLT, nunca poderá ultrapassar dois anos, prorrogável uma única vez8 .
No caso de atletas profissionais a legislação é completamente diversa. A atual redação da Lei nº 9.615/98, introduzida pela Lei nº 9981/00, estabelece que os contratos de trabalho do atleta profissional terão prazo determinado, limitado ao mínimo de três meses e ao máximo de cinco anos9 . Como conseqüência, no parágrafo único do mesmo artigo, a lei afasta a aplicação do art. 455 da CLT, em redação redundante, na medida que apenas reafirma a possibilidade que contratação por prazo superior aos dois anos.
A duração do contrato tem grande relevância no momento da rescisão, pois, se ocorrida em seu termo, nenhuma indenização será devida de uma parte à outra. Nas hipótese de rescisão antecipada a parte culpada será responsabilizada pelo pagamento da indenização prevista na cláusula penal do contrato e, nos casos específicos de rescisão por falta de pagamento de salário, o valor da indenização, por expressa disposição legal10 , será de 50% do valor restante do contrato.
Feitas essas considerações de caráter geral, passemos a análise da natureza jurídica do contrato de licença de uso de imagem, para, finalmente apresentarmos a relação existente entre os dois institutos.

2. Do contrato de licença de uso de imagem
O contrato de licença de uso de imagem tem por objeto a utilização de um bem jurídico, que além de personalíssimo e inalienável, goza de proteção Constitucional, nos termos do art. 5º, incisos V e X, da Magna Carta.

A imagem, nos ensinamentos do eminente Professor Walter Moraes corresponde a “toda expressão formal e sensível da personalidade. Prosseguindo afirma que, “a idéia de imagem não se restringe, portanto, à representação do aspecto visual da pessoa pela arte da pintura, da escultura, do desenho, da fotografia, da figuração caricata ou decorativa, da reprodução em manequins ou máscaras”, compreendendo também “imagem como a de fotografia e da radiodifusão, os gestos, expressões dinâmicas da personalidade”.11
A imagem abrange, portanto, todos os elementos percebidos pelos sentidos humanos e, como todo direito, apresenta uma determinada natureza jurídica, retratada na lição do saudoso Professor Antônio Carlos Bittar:
“Reveste (o direito de imagem) de todas as características comuns aos direitos da personalidade. Destaca-se, no entanto, dos demais, pelo aspecto da disponibilidade, que, com respeito a esse direito, assume dimensões de relevo, em função da prática consagrada de uso de imagem humana em publicidade, para efeito de divulgação de entidades, de produtos ou de serviços postos à disposição do público consumidor”.12
Trata-se, assim, de um direito personalíssimo e independente, protegido constitucionalmente como bem jurídico autônomo, capaz de determinar por si conduta que implique a disciplina de determinada norma jurídica.
No que se refere ao aspecto da disponibilidade do direito de imagem, ressaltado pelo ilustre Professor Bittar, lembre-se que os contratos de licença de uso de imagem devem ser interpretados de forma restritiva e apresentar condições bastante detalhadas que especifiquem exatamente o que está sendo autorizado e o que se reserva à esfera pessoal e indisponível de seu titular, pelo fato de se tratar de direito personalíssimo.
Diante disso, cabe esclarecer que é equivocado o uso da expressa cessão de direito de imagem, tão comum na mídia, sendo recomendável a utilização do termo licença de uso, como explica Roubier em síntese merecedora de fiel transcrição:

“Por ora dizemos apenas que na licença ocorre simplesmente a concessão do exercício do direito de exploração, enquanto direito propriamente dito permanece nas mãos de seu titular, que não pretendeu dispor do mesmo. É isto que permite distinguir a licença da cessão: através da cessão ocorre o abandono, em todo ou em parte, do próprio direito privativo; na licença existe a simples concessão do exercício do direito e dela resulta que o titular do registro conserva para si, em princípio, o direito de exploração.”13
A licença de uso da imagem pode ser objeto de contrato entre pessoas físicas ou jurídicas. Nada impede, todavia, como se verifica na prática, que determinadas pessoas jurídicas representem a pessoa física, comercializando a licença de utilização da imagem. O sujeito do contrato, no entanto, não altera sua natureza jurídica, que é civil, pois firmada livremente pelos interessados. As partes, no ajuste de vontade, dispõem sobre o tipo e os meios de divulgação consentida, os limites impostos à quantidade de divulgação e a determinação de tempo de exposição da imagem, bem como se a referida licença é exclusiva ou não.

O contrato de licença de imagem firmado entre a entidade desportiva e o atleta profissional autoriza a vinculação da imagem deste ao clube, seja em fotos oficias, seja em promoções ou eventos. Da mesma forma a entidade desportiva poderá simplesmente não utilizar a imagem do atleta, reservando-se o direito de eventualmente aproveitá-la ou de impedir que terceiros a utilizem.
No caso específico dos clubes de futebol, os contratos de licença de imagem revestem-se de especial importância devido à exposição pública a que o atleta é submetido e a direta vinculação entre sua imagem de jogador profissional e o clube que defende, seja concedendo entrevistas, seja treinando e jogando com as cores, o escudo e a camisa do clube.

3. Da relação entre os contratos
Feitas todas essas considerações, podemos afirmar que os contratos de trabalho e de licença de uso de imagem são absolutamente independentes: o primeiro, tem natureza de relação de emprego, ligado à existência dos requisitos do art. 3º da CLT e envolve a força de trabalho do atleta; o segundo, natureza civil, dispondo sobre a utilização da imagem do atleta pela entidade desportiva. Um estabelece condições de trabalho, como remuneração, duração do contrato, obrigações disciplinares; o outro, os limites e as conseqüências da utilização da imagem do atleta.
Por serem contratos independentes, estão totalmente desvinculados. Assim, o valore pago a título de licença para o uso da imagem não constitui salário e não é base para incidência de contribuição de INSS, FGTS e pagamento de férias e 13º salário ao atleta empregado. Da mesma forma, os valores creditados a titulo de licença de uso, não podem ser utilizados para cálculo da remuneração anual no momento da fixação da cláusula penal por rescisão ou descumprimento contratual. Em contrapartida, a indenização da referida cláusula penal não se aplica para o caso de rescisão apenas do contrato de licença de uso de imagem, que tem multa rescisória limitada ao valor do contrato, nos termos do artigo 920 do vigente Código Civil brasileiro.
Outra questão que se coloca com freqüência envolve a existência ou não de limite para o montante aceito como valor do contrato de licença de imagem, vez que sua valoração nem sempre é objetiva. O problema se agrava ainda mais quando o valor do salário do atleta é baixo, cogitando-se da utilização do contrato de licença como uma forma legal de pagar o salário do empregado sem os respectivos encargos. Neste caso, embora sejam contratos independentes, é evidente que se constatado o intuito fraudulento do contrato de licença de imagem, ele será anulado a partir do disposto nos artigos 9º e 444 da CLT, com todas as repercussões decorrentes.
Recomenda-se que o valor pago pelo uso da imagem reflita corretamente o valor de mercado e que esse possa ser demonstrado pelo clube, caso sua validade seja eventualmente questionada. Atualmente já existem critérios objetivos para definição desses valores, que podem ser observados com relativa segurança14.
Uma última questão intrigante e de bastante atualidade refere-se aos efeitos da extinção do contrato de trabalho em momento diverso do prazo de vigência do contrato de licença de imagem, seja porque foram pactuados com duração diversa, seja porque houve rescisão antecipada do contrato de trabalho.
Sobre isso, devemos lembrar que os contratos são autônomos e como tal, um não interfere na validade nem na vigência do outro. Assim, a extinção do contrato de trabalho não rescinde o contrato de licença, exceto se o último contiver, como se recomenda, cláusula com condição resolutiva para a hipótese de extinção da relação de emprego. Afastado esse caso, a rescisão do contrato de trabalho implica na rescisão do contrato de licença de uso de imagem e, se a parte interessada desejar rescindi-lo também, deverá arcar com a respectiva multa pactuada. Mais complicado será o caso em que o valor previsto para a multa, por ser tão alto, venha a impossibilitar o pagamento pelo atleta, impedindo que ele continue atuando em outro clube, enquanto está com seus direitos de imagem cedidos ao antigo empregador.
Neste caso, constatado que o valor da cláusula extrapola o razoável e impede o continuidade do trabalho do atleta em outro clube, o Poder Judiciário poderia, com fundamento no art. 5º, XIII da CF/88, declarar sem efeito o contrato na hipótese deste, momentaneamente, estar impedindo a realização do trabalho pelo atleta, sem prejuízo da indenização correspondente devida à parte lesada. O afastamento também da indenização por esse fundamento, somente seria admissível em situações extremas e excepcionais, pois, como regra, os contratos são independentes.

Por tudo isso, sugerimos que o contrato de licença seja feito de forma escrita, por profissional especializado, apresentando regras claras e objetivas que especifiquem os meios de divulgação consentida, os limites impostos à quantidade de divulgação, a determinação de tempo de exposição da imagem, informando se a referida licença é exclusiva ou não. Por fim, recomendamos que o contrato vincule expressamente sua vigência ao contrato de trabalho, evitando assim, problemas futuros.
O presente Memorando foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
(1) A Legislação do desporto brasileira foi profundamente inovada com a promulgação da Lei nº 8672/1993 (Lei Zico), posteriormente substituída pela Lei nº 9615/1998 (lei Pelé) que, com pouco mais de três anos de vigência, já foi alterada pela Lei nº 9981/2000 e pela Medida Provisória nº 2.141 de 23.03.2001.
(2) A palavra trabalho está sendo utilizada, neste caso, em seu contexto genérico, representando toda e qualquer atividade humana produtiva, sem relação com o vínculo de emprego descrito no art. 3º da CLT.
(3) O parágrafo único do art. 507 da CLT, já revogado, referia-se a profissão de artistas de teatro e congêneres. Para alguns autores, como Nélio Reis (in Contratos Especiais de Trabalho. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1955, pág. 306) a expressão congêneres incluía também os atletas profissionais de futebol.
(4) Os aeronautas são regidos pela Lei nº 7183/1984; os vendedores pracistas e viajantes pela Lei nº 3.207/1957; os atletas profissionais pela Lei nº 9615/98.
(5) Art. 34 da Lei nº 9615/1998.
(6) Redação dada pela Medida Provisória 2141 de 23.03.01.
(7) Constituem hipóteses para formalização de contrato a termo: a) a realização de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo; b) atividades empresariais de caráter transitório; c) contratos de experiência.
(8) Ao permitir a prorrogação do contrato determinado uma única vez, o artigo 451 da CLT, permite a manutenção do contrato original por um novo período certo de tempo, desde que não haja alteração das condições pactuadas, quando estaremos diante de mera renovação que, por princípio, transformaria o contrato determinado automaticamente em contrato por prazo indeterminado.
(9) Art. 30 da Lei nº 9615/98.
(10) Art. 31, § 3º da Lei nº 9615/98.
(11) Moraes, Walter – Direito à Própria Imagem, RT V.443.
(12) Bittar, Carlos Alberto – Os direitos da personalidade, Editora Forense Universitária, 3ª edição, revisada e atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar.
(13) Roubier, Paul. Le Droit de la Propriété Industrielle, 1952, p.143 (tradução livre).
(14) Para apuração do valor da imagem do atleta podem ser utilizados critérios objetivos ligados à performance e ao seu reconhecimento junto ao público, bem como subjetivos relacionados à conduta moral e a disciplina do atleta.

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