Limites da autonomia desportiva

16.08.2007
Fernando Abrão
Decisão sobre o art. 59 do Código Civil suscita discussão sobre a atuação dos clubes e o papel do Estado

 
Após quase quatro anos desde o início de sua tramitação, foi publicada no dia 1º de junho de 2007 a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.045, acerca da aplicabilidade (ou não) do art. 59 do Código Civil aos clubes de futebol, que atribui à assembléia geral dos clubes a eleição e destituição de administradores, a aprovação de contas e as alterações de estatuto.

Nela, pretendia o PDT (autor da ação), assistido pelos clubes – representados pelo Sindicato das Associações de Futebol Profissional e Administração do Desporto e Ligas (Sindafebol) – que o STF desse a chamada “interpretação conforme” ao art. 59 do Código Civil, excluindo de sua incidência as entidades dirigentes e associações esportivas, considerando-se a garantia contida no inciso I do art. 217 do texto constitucional.

Embora contasse com o voto do ministro relator Celso de Mello, pela improcedência da Adin, o resultado final foi a declaração da prejudicialidade da mesma, ante a alteração sofrida pelo dispositivo legal (art. 59 do CC) antes da conclusão de seu julgamento pelo STF.

Com isso, segue aberto o debate sobre a aplicabilidade ou não de tal dispositivo aos clubes de futebol (organizados em sua imensa maioria, sob a forma de associações civis, regidas, justamente, pelo Código Civil).

Como até aqui as decisões sobre o tema são proferidas em ações que praticam o chamado controle incidental (indireto) da constitucionalidade de uma norma, os posicionamentos adotados são diversos e seus efeitos se restringem às partes envolvidas (geralmente são ações entre clube e associados).

Nesse sentido, somente a manifestação do STF eliminaria qualquer dúvida sobre o tema, já que as decisões proferidas nas Adin´s possuem efeito erga omnes (contra todos), consoante o disposto no art. 102, § 2º da CF/88.

Interessante notar que, durante a manifestação de seu voto, o Exmo. Ministro Relator – reconhecidamente um dos mais sábios civilistas integrantes daquela Suprema Corte – manteve produtivo debate com os demais integrantes daquela Suprema Corte, mostrando que a discussão no STF promete novos desdobramentos, com defensores de ambas as correntes.

Defendendo a constitucionalidade do art. 59 do Código Civil em relação aos clubes de futebol, o ministro Celso de Mello constrói seu técnico raciocínio de modo claro e conciso, tecendo diversas considerações sobre o tema, merecendo destaque inicial a diferenciação entre autonomia e soberania:

“É preciso enfatizar, bem por isso, mesmo tratando-se de organização e funcionamento de associações civis e de entidades desportivas, que o conceito de autonomia, que supõe o exercício de um poder essencialmente subordinado a diretrizes gerais que lhe condicionam a pratica, não se confunde com anotação de soberania, que representa uma prerrogativa incontrastável, impregnada de caráter absoluto”.

Em seguida, ressalta a obrigatoriedade de subordinação das entidades desportivas às chamadas “normas estruturantes”:

“Isso significa que entidades autônomas, como as organizações desportivas, qualificam-se como instituições juridicamente subordinadas às normas estruturantes editadas pelo Estado, que representam, nesse contexto, verdadeiros arquétipos no processo de configuração institucional de tais entes”.

E completa o entendimento:

“A legislação estatal, nesse contexto, define modelos hipotéticos abstratos que encerram verdadeiros arquétipos delimitadores do espaço em que as entidades privadas, inclusive as de caráter desportivo, podem atuar com relativa margem de liberdade”.

Por fim, conclui que:

“A norma inscrita no art. 59 e em seu parágrafo único do Código Civil qualifica-se, portanto, como matriz determinante da própria ação normativa atribuída, em sede estatutária, às entidades privadas em geral, cuja autonomia – por supor o exercício de determinada prerrogativa nos precisos limites traçados pelo ordenamento estatal – permite-lhes agir com relativo grau de liberdade decisória, sem que se veja, em tal comportamento estatal, qualquer ofensa ao princípio fundado no art. 217, I da Constituição da República”.

Enriquecendo o debate iniciado pelo exmo. ministro relator, manifestaram-se também os demais ministros, destacando-se o ministro César Peluzo:

“E o art. 217 a mim parece, com o devido respeito, proíbe que o Estado intervenha na organização de associação desportiva, isso é, trata-se de norma protetiva contra ato concreto de intervenção estatal, não contra o poder de legislar sobre formas gerais de associação. Essa parece-me ser a diferença”.

Nessa linha, o ministro Carlos Britto:

“… a Constituição, quando isola uma instituição, uma associação, uma entidade, o faz para prestigiar… Das associações privadas, apenas estas: partidos políticos, cooperativas, universidades privadas e sindicatos. Porém, é preciso conciliar estas normas protetivas, de modo especial, de tais instituições assim destacadas com o art. 22, inciso I, que habilita a União a legislar sobre direito civil e o art. 24, IX, que fala de “desporto”. É preciso interpretação conciliadora”.

E o ministro Gilmar Mendes:

“Essas normas mínimas estatutárias, a formação das sociedades, e tudo o mais, é condição de exercício da liberdade de associação, ironicamente. Por isso, isto aqui é um princípio de caráter institucional; há uma garantia institucional forte. Quer dizer, se nós não conhecermos qual é o tipo de sociedade, a rigor, não se consegue exercer a liberdade de associação”.

Confirmando a polêmica sobre o tema, a divergência ficou por conta do ministro Marco Aurélio:

“Mas os temas… do artigo 59 dizem respeito ao funcionamento… até quanto à escolha dos dirigentes, então, não há intervenção?”.

Acompanhou o entendimento do ministro Marco Aurélio o Ministro Sepúlveda Pertence:

“Volto ao mestre Moreira Alves: seriam necessários dois dispositivos da Constituição para dar a essas entidades a mesma autonomia que o sistema outorga a qualquer associação, a de reger-se num espaço deixado pela Lei?”.

E se a divergência sobre o tema – não finalizada com o arquivamento da Adin – é uma realidade dentro do próprio STF, nos meios acadêmicos se mostra ainda mais acentuada, com juristas de peso pendendo para ambos os lados.

De plano, transcrevemos a manifestação de Ives Gandra da Silva Martins Filho, que defende a inaplicabilidade do dispositivo legal em questão aos clubes:

“Estou convencido de que o Código Civil, no que diz respeito aos artigos 58 e 59, não se aplica às entidades desportivas, que, por força de norma especial de lei suprema, gozam de autonomia quanto a sua organização e funcionamento. O artigo 59 do novo diploma estabelece… eleição direta às associações em geral, sendo, portanto, norma aplicável às demais associações, que não gozam de forma e estatutos próprios, com autonomia ampla, conforme determina a Constituição para as eleições esportivas”.

E prossegue o festejado constitucionalista:

“Admitir que o constituinte tivesse outorgado às entidades desportivas autonomia para “organização” e “funcionamento” rigorosamente igual àquela que a lei ordinária atribui a todas as entidades civis seria passar-lhe um atestado de incongruência – o que, como homenagem à inteligência do legislador supremo, não posso admitir”.

Na mesma linha, posiciona-se Carlos Miguel Aidar:

“Deveriam as entidades esportivas adaptar seus documentos societários ao novo regramento até o último 11 de janeiro? Definitivamente a resposta é não.”

E fundamenta seu entendimento da seguinte forma:

“O questionamento refere-se ao teor dos artigos 59, 2.031 e 2.033 do novo código. No meu entender, os três artigos do Código Civil não se aplicam às entidades de prática desportiva, que gozam de autonomia peculiar conferida pela Constituição Federal, para definir sua organização e funcionamento”.

Defendendo posição oposta, mas enfatizando o maior alcance de tal dispositivo na esfera desportiva, Álvaro Mello Filho entende que:

“Autonomia não quer dizer anárquica inexistência de normas, nem significa independência e insubordinação às normas gerais fixadas na legislação desportiva e indispensáveis àquele mínimo de coerência reclamada pelo próprio sistema desportivo nacional, sob pena de trazer nefastas conseqüências para o desporto brasileiro… A autonomia sub examen não é um fim em si mesmo, mas um meio de dotar as entidades desportivas de instrumentos legais capazes de possibilitar uma plástica organização e um flexível mecanismo funcional que permitam o eficiente alcance de seus objetivos, e isto envolve, necessariamente, uma profunda revisão do excesso de leis e amarras burocráticas que cerceiam e tolhem o gerenciamento desportivo das entidades desportivas”.

Defensor da compatibilidade entre o inciso 217, I da CF/88 e as disposições do código civil acerca das associações civis, o civilista Felipe Legrazie Ezabella, ao discorrer sobre a aplicação prática dos artigos do Código Civil em relação aos clubes de futebol, sustenta que:

“A Assembléia Geral é um órgão obrigatório de qualquer associação, exercendo o poder legislativo na instituição. O artigo 59 disciplina a competência privativa desse órgão que é a de destituir os administradores e alterar o Estatuto. Já o parágrafo único desse artigo estabelece que, para essas deliberações, deve-se fazer uma convocação específica, cujo quorum e os critérios serão os estabelecidos no estatuto. Deve-se frisar que em razão do advérbio “privativamente” contido no caput do artigo 59, essas normas são cogentes, ou seja, qualquer disposição estatutária que estabeleça forma diferente para essa decisão será nula”.

Adepto da mesma corrente doutrinária, Marcilio Krieger sustenta que:

“Autonomia desportiva é o princípio segundo o qual as pessoas físicas e jurídicas têm a faculdade e liberdade de se organizarem para a prática desportiva (Lei geral sobre Desportos, art. 2º, II) sem a interferência estatal no seu funcionamento (Constituição Federal, art. 5º, XVII e XVIII), desde que respeitado o princípio da soberania (Constituição Federal, art. 1º, I, c/c LGSD, art. 2º, II)”.

E prossegue:

“A autonomia de que dispõem as entidades divergentes e as associações brasileiras cinge-se, portanto, à sua organização (sociedade com ou sem fins econômicos, p.ex.) e funcionamento, voltados para a prática desportiva. Quanto aos demais aspectos de suas atividades… as entidades devem obedecer ao regramento decorrente do Direito Positivo Pátrio aplicável a cada caso”.

Como se vê, a discussão doutrinária em questão parece mesmo longe de seu término. Evidentemente pretendemos aqui manifestar nosso entendimento sobre o assunto. Mas antes, necessário tecer algumas considerações prévias.

Os clubes de futebol (entidades de prática desportiva) são as pessoas jurídicas de direito privado, organizadas em sua imensa maioria sob a forma de associação civil (espécie de pessoa jurídica).

Embora dotadas de direitos e deveres peculiares à sua própria natureza, nos termos do parágrafo único do art. 13 da Lei nº 9.615/98 (a Lei Pelé), as regras gerais sobre a constituição e funcionamento de qualquer associação civil são fixadas pelo Código Civil.

O diploma em comento foi instituído pela Lei n.º 10.406/02, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Poder Executivo, observando-se rigorosamente o rito determinado pela Constituição Federal para a elaboração das leis.

Nesse sentido, destacamos que, segundo a própria Constituição Federal, somente a União (competência privativa) poderá legislar sobre Direito Civil:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

De acordo com o dicionário eletrônico Houaiss, disponível no site UOL, “legislar” significa:

1 – fazer, elaborar leis (sobre, contra, em); legiferar.

Indubitável, portanto, a conclusão de que a criação de leis de natureza civil – fontes incontestáveis de direitos e obrigações – é ato conferido exclusivamente à União, no exercício de sua soberania, na medida em que somente tal ente federativo possui autorização constitucional para praticar tal ato.

É nesse momento que surge o conflito com o disposto no art. 217, I da CF/88:

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

Embora o Estado tenha o dever de fomentar a prática desportiva, não poderá fazê-lo de forma que promova qualquer intervenção na organização e funcionamento das entidades de direção e de prática do desporto.

Tratou o constituinte originário de reforçar o entendimento que já vinha esposado no artigo 5º da Carta Magna, possivelmente em razão dos seguidos anos de intervenção do Estado no desporto:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

A mesma ênfase dada à autonomia organizacional das entidades de direção e prática do desporto se repete em diversas outras formas de associação que sofreram a intervenção direta do Estado ao longo do tempo. Como exemplo, citamos os sindicatos, os partidos políticos e as universidades:

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;

No caso das entidades sindicais, o constituinte originário foi ainda mais enfático, ao dispor que seria vedada qualquer interferência ou intervenção na organização sindical, ressalvando aquela que disser respeito ao registro das mesmas no órgão competente.

Também aqui, a forte intervenção estatal na vida das entidades sindicais levou o constituinte originário a repetir a proteção já contida no art. 5º da Magna Carta, mostrando sua especial preocupação (ainda que desnecessária) com tal proteção.

Da mesma forma os partidos políticos foram agraciados com mais uma reiteração da proteção (inserida no art. 5º) que devem gozar contra a intervenção estatal em sua organização e funcionamento, observados os parâmetros inseridos no texto constitucional:

Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:

§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.

§ 2º – Os partidos políticos, após adquirirem personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral.

Por fim, destacamos que as universidades também mereceram especial atenção quanto à já existente proteção (art. 5º) que devem gozar contra a intervenção estatal em sua organização e funcionamento, observados os parâmetros inseridos no texto constitucional:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Em todas as hipóteses mencionadas, o próprio texto constitucional que expressa as garantias também traz alguns limites para a sua aplicação, que devem ser somados aos outros limites existentes na constituição, que deve ser interpretada de modo sistemático e teleológico.
Luis Roberto Barroso ensina que as normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao seu espírito e à sua finalidade:

“Chama-se teleológico o método interpretativo que procura revelar o fim da norma, o valor ou bem jurídico visado pelo ordenamento com a edição de dado preceito”.

E segundo o ilustre constitucionalista, a interpretação teleológica divide com o método sistemático a primazia no processo interpretativo:

“Uma norma constitucional, vista isoladamente, pode fazer pouco sentido ou mesmo estar em contradição com outra… A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçãm as instituições e as normas jurídicas”.

Nesse sentido, a opinião de André Ramos Tavares, ao discorrer sobre a autonomia universitária estabelece que:

“Como lembra o professor Celso Ribeiro Bastos a propósito do tema, “O conceito de autonomia universitária, mencionado pelo art. 207 da Constituição (…) deve ser interpretado em consonância com os princípios constitucionais, é dizer, em harmonia com o corpo no qual se insere”.

Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Jr. asseveram que a interpretação do texto constitucional deve ser feita levando-se em conta alguns princípios auxiliares da atividade da interpretação constitucional, merecendo nosso destaque o princípio da unidade da Constituição:

“O princípio da unidade indica que a Constituição é um sistema integrado por diversas normas, reciprocamente implicadas, que, dessa feita, devem se compreendidas na sua harmoniosa globalidade… O princípio em pauta preconiza, em suma, que a Constituição deve ser interpretada de maneira globalizante, de modo a resguardá-la de eventuais antinomias”.

E também o princípio da proporcionalidade:

“O princípio da proporcionalidade é aquele que orienta o intérprete na busca da justa medida de cada instituto jurídico… Importa a aplicação razoável da norma, adequando-se, como dito, os meios aos fins perseguidos”.

É nesse sentido que, trazendo tais ensinamentos para o caso ora tratado, servimo-nos do entendimento dos festejados constitucionalistas acima citados para afirmar que:

“A Constituição atribuiu autonomia para as entidades desportivas dirigentes e associações quanto a sua organização e funcionamento… tais prerrogativas não traduzem, porém, poderes ilimitados. A Constituição e as leis não podem ser contrapostas”.

Nem se fale que a obediência às disposições do Código Civil possa afrontar também o direto de associação, cujo exercício, Celso Bastos e Ives Gandra Martins, sustentam que:

“… o direito de associação é daqueles que podem ser tidos nitidamente como de natureza negativa, é dizer: o Estado o satisfaz, não interferindo na formação das organizações, quer para proibi-las, quer para dificultar seu funcionamento, que ainda para determinar sua dissolução”.

Entretanto, reforçando a relatividade de tal direito, prosseguem do desenvolvimento do pensamento acima esposado:

“A Constituição não diz que as associações hão de ser personalizadas. Do ponto de vista jurídico, contudo, quer-nos parecer que esse é um elemento imprescindível à sua constituição, uma vez que, sem a capacidade jurídica para contrair obrigações e ser sujeito passivo de deveres, será praticamente impossível que a organização atinja as suas finalidades”.

Logo, a opção dos interessados pela aquisição de personalidade jurídica – já que, como visto, o exercício do direito de associação independe da aquisição da personalidade jurídica – deve sim ser condicionada à observância dos parâmetros previstos no Código Civil.

Nesse contexto, embora disponham de maior margem de liberdade que as pessoas jurídicas de direito público – que somente podem fazer ou deixar de fazer aquilo que a lei lhes autoriza expressamente (princípio da legalidade da administração pública – artigo 37 “caput” da CF/88), parece-nos inegável que as pessoas jurídicas de direito privado submeter-se-ão ao princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II, da CF/88 e que preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo salvo em virtude da lei:

Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – …

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Destarte, a autonomia conferida às entidades de organização e prática do esporte é sim relativizada por diversos outros princípios e normas que integram o texto constitucional.

O inciso I do art. 217 da Constituição da República deve ser lido em conjunto com os demais dispositivos constitucionais acima transcritos, na busca do equilíbrio desta com as demais normas constitucionais ora tratadas (interpretação sistemática) e na busca da revelação do real significado que encerra (interpretação teleológica).

É dessa leitura conjunta, que emerge o fundamento constitucional pela incidência das normas do Código Civil também nas associações civis de natureza desportiva.

Na mesma linha, o pensamento de Carzola Prieto:

“La autonomía del deporte moderno no puede de ninguna manera ser absoluta. (…) el creciente impacto social del hecho deportivo aconseja al Estado tomar en sus manos la ordenación, aunque sob sea externa, de muchas de sus manifestaciones. En tal sentido, hoy en día, aún los países que gozan de un asociacionismo de tradición y raigambre que asume un protagonismo destacado en la gestación deportiva, otorgan al deporte una autonomía relativa y en ningún caso absoluta”.

Parece-nos que a grande dificuldade decorre da busca da fina sintonia entre a liberdade de organização e funcionamento assegurada pela Carta Magna às entidades desportivas e o respeito ao ordenamento jurídico de natureza cogente.

Embora a Constituição Federal assegure a plena liberdade de associação (para fins lícitos), conferindo expressamente às entidades desportivas a autonomia para decidir sobre a sua organização e funcionamento, a defendida “inviolabilidade” de tal liberdade parece ser objeto de equivocada interpretação, autorizando-se, em nome da independência administrativa, o desrespeito às normas de natureza pública.

Em verdade, tratou a Constituição Federal de assegurar o livre exercício da liberdade de organização e funcionamento das entidades desportivas – condição essencial para o desenvolvimento do desporto – limitando-o, contudo, através de diversos outros dispositivos constitucionais componentes do mesmo sistema e conferindo ao Estado, a prerrogativa de – no exercício de sua soberania – fixar normas de natureza cogente a serem respeitadas inclusive por quem vier a gozar de privilegiada autonomia.

O exercício superveniente deste poder soberano conferido ao Estado – o de legislar sobre certas matérias – não resulta na sustentada afronta ao princípio da autonomia, eis que, a ausência de normatização de determinada matéria é conseqüência da vontade do Estado, que pode perfeitamente optar por exercer tal competência previamente conferida – decorrente de sua reconhecida soberania – quando assim lhe convier.

Trata-se de um fenômeno constitucional classificado por Canotilho como restrição de direitos não autorizada expressamente pela constituição:

“… a doutrina fala em restrições não expressamente autorizadas pela Constituição… estamos perante os casos mais difíceis quer em sede de legitimidade constitucional (justificação) quer no plano da modelação concreta do âmbito da proteção e do conteúdo juridicamente garantido. De qualquer modo, aqui também podem existir mediações restritivas. Não se compreenderia, por exemplo, que o direto de manifestação, embora consagrado no texto constitucional sem quaisquer restrições constitucionais diretas e sem autorização de lei restritiva, não pudesse ser restringido por lei, proibindo-se desde logo, as manifestações violentas e com armas”.

E justifica seu entendimento:

“…(1) os direitos sem restrições “ex-constituitione” (isto é, estabelecidos pela própria Constituição) e sem reserva de lei restritiva, não podem considerar-se como direitos irrestritos ou irrestringíveis; (2) estão sujeitos aos limites básicos decorrentes da ordem jurídico-constitucional…; (3) estes limites podem (e nalguns casos devem) ser conformados pelo legislador, obedecendo aos princípios e procedimento metódico das leis restritivas”.

Reiterando tal entendimento e justificando a impossibilidade da existência de ensinamento do ministro Gilmar Ferreira Mendes:

“As pessoas, na verdade, partem de uma idéia de liberdade absoluta, que não existe em lugar nenhum. A própria idéia de liberdade de organização e associação pressupõe determinados marcos jurídicos, estabelecidos pela própria legislação civil”.

Como exemplo, destacamos que o direito à autonomia organizacional e funcional não faculta às entidades de prática desportiva mantenedoras de equipe de futebol profissional deixar de recolher à Previdência Social a contribuição previdenciária que lhe è imposta.

Tampouco poderiam os clubes, ao decidirem alterar seu modelo constitutivo (e.g. de associações civis para sociedades limitadas ou anônimas) deixar de observar as normas públicas – de aplicação cogente – atinentes ao novo modelo societário adotado.

Corroborando tal entendimento, a opinião de Eduardo Carlezzo e Luiz Felipe Santoro, diretores do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD):

“É óbvio que tal autonomia não é absoluta, mas permite às entidades de prática desportiva escolherem os meios mais adequados e legais ao atingimento de suas finalidades, já que, conceitualmente, às entidades privadas é lícito fazer tudo aquilo que a lei não proíba, ao contrário dos entes públicos, que devem fazer aquilo que a lei determina”.

Em suma, admitir-se o alcance pretendido pelos defensores da plena autonomia das entidades desportivas é contrariar todos os citados princípios e normas que integram o texto constitucional.

Finalizando esse breve estudo sobre a questão ora tratada, valemo-nos da lição de Canotilho, ao discorrer sobre o princípio do efeito integrador, que deve nortear a leitura e obediência a qualquer texto constitucional:

“… na resolução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política”.

Parece-nos claro que o entendimento pela relativização do princípio da autonomia organizacional e funcional dos clubes de futebol – mediante a admissão da possibilidade da sujeição das entidades desportivas aos dispositivos do Código Civil sobre associações civis – é a medida mais correta no sentido de se alcançar a mencionada integração social, sob pena de se criar uma casta injustificadamente privilegiada, contrariando de forma irremediável o postulado da isonomia, base de nosso estado democrático de direito, bem como o princípio da soberania do Estado (o poder supremo no plano interno).

São essas as razões que nos levam à conclusão de que a obediência dos clubes de futebol, organizados em sua grande maioria sob a forma de associação civil, aos ditames do Código Civil – norma de natureza pública cogente – não fere o princípio da autonomia de organização e funcionamento que possuem, assegurado por nossa Carta Magna, gozando os mesmos, inclusive, de plena liberdade para modificar, quando bem entenderem, seu modelo jurídico constitutivo.

Bibliografia

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TAVARES. André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006.

II – Textos publicados na Internet:

CARLEZZO, Eduardo; SANTORO, Luiz Felipe Guimarães. As entidades de prática desportiva e as novas alterações da legislação. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 147, 30 nov. 2003. Disponível em:http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4416.
Acesso em: 15 de junho de 2007.
AIDAR. Carlos Miguel Castex. Os clubes desportivos e o novo Código Civil. Inteligentia Jurídica, São Paulo, Ano IV: Número 64, outubro de 2006. Disponível em: http://www.inteligentiajuridica.com.br/v3/artigo_visualizar.php?id=562. Acesso em: 22/06/2007.
MARTINS. Ives Gandra da Silva. O Código Civil e as entidades desportivas. Inteligentia Jurídica, São Paulo, Ano IV: Número 64, outubro de 2006. Disponível em: http://www.inteligentiajuridica.com.br/v3/artigo_visualizar.php?id=567. Acesso em 22/06/2007.

* Fernando Abrão é membro do Gedaf

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