Milton Jordão*
O Brasil é o país das leis. Existe legislação para praticamente tudo o que se pode pensar, no entanto, somos surpreendidos diariamente com a necessidade – sempre de última hora – de se produzir mais e mais leis.
A bem da verdade, a nação brasileira tem uma curiosa peculiaridade, a lei, aqui, deve “pegar”. Senão, temos que fazer outra e outra…Atualmente, o Congresso Nacional, insuflado pela opinião publicada, tem optado nestes casos por recorrer, de imediato, às leis de natureza criminal. Ou seja, trocando em miúdos, “parte logo para a porrada”!
E foi assim com o Estatuto do Torcedor!
O diploma nasceu em 2003, fruto de uma comissão que pensou e discutiu amplamente as necessidade reais e o que se impunha para transformar o esporte nacional, em especial o futebol.
Trata-se de belo tratado de direito e deveres dos torcedores, clubes e federações! Não sem razão, motivou-me a estudá-lo com mais afinco e comentá-lo, junto com o amigo Gustavo Souza, resultado em livro publicado pela Editora Lumen Juris.
Pois bem.
O país da bola, embora houvesse produzido um dos corpos de leis mais elogiados e admirados no que tange à proteção do consumidor, em 1990, o CDC, claudicava sobremaneira no trato ao seu mais fiel consumidor: o torcedor. Este, coitado, sem voz (porque nunca quis exercer sua cidadania, diga-se), submetia-se às mais vexatórias e abusivas práticas por parte de entidades de prática desportiva e administração do desporto, apenas, movido, pela paixão e cegueira para ver o seu objeto do amor, o clube, entra em campo.
Um dos ápices destes descalabros ocorreu numa final de campeonato nacional, a Copa João Havelange, onde Vasco x São Caetano, quando parte do alambrado do acanhado estádio de São Januário cedeu, causando ferimentos em vários torcedores e pânico a toda uma nação que assistia ao vivo aquela cena ininmaginável. Foi o ocaso de mais de um século de desrespeito ao torcedor. Curiosamente, aquele foi o ano 2000, o último do século passado.
A centúria seguinte veio precedida de expectativa, era o sonhado século XXI, o futuro. E, com ele, nos primeiros três anos, o sonho de uma nova realidade para o futebol nacional se realizava: nascia o Estatuto do Torcedor.
Neste diploma se conferia ao amante e consumidor de espetáculos esportivos o direito à transparência e publicidade das competições, segurança nos locais onde estes são realizados, disponibilização de transporte público, direito à higiene e qualidade das instalações físicas, bem como dos produtos alimentícios vendidos. Ou seja, conferiu-se o direito ao conforto do torcedor que vai ao estádio, arena ou ginásio.
Todavia, dez anos se passaram e parece, infelizmente, que alguns organizadores de eventos esportivos buscam não cumprir esta lei, ignoram-na solenemente.
E foi isso que se viu durante um jogo válido pelo Campeonato Brasileiro – Série B, com transmissão ao vivo para todo o país por uma das três maiores redes de televisão.
Ainda que se conceda ao ABC, clube mandante, o benefício da dúvida no que concerne à superlotação do estádio Frasqueirão, observou-se que os torcedores foram tratados de forma incondizente com o “status” que adquiriu após o Estatuto do Torcedor. Homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, oprimidos contra alambrados, pessoas em prantos, sem poder respirar, cenas que pensávamos haviam sido sepultadas naquele fatídico ano de 2000.
Parece que o gestor desportivo arriscou vidas, minimamente, por mera desorganização. Sem querer, como li em manifestações, trazer a cupidez para o centro do debate.
É preciso mudar. Não porque o Brasil sediará uma Copa do Mundo. Mas, porque existe a lei. O “basta” foi dito. Mister que aqueles que têm por missão ser guardião da legalidade façam as suas vezes, não hesitem, não caiam na mesmice bem própria do brasileiro de flexibilizar as próprias expressões contidas na lei, resultando no seu descumprimento.
Certamente, no âmbito desportivo, o ABC padecerá, os mais recentes julgados e a consolidada jurisprudência do STJD apontam uma severas sanção a ser aplicada ao alvinegro potiguar. Porém, será insuficiente se os órgão de controle do Poder Executivo e o Ministério Público não assumirem as suas funções e fazer valer o Estatuto do Torcedor. Nem falo em avançar para criminalizações meramente simbólicas, refiro-me a ações concretas, como cobrar a execução de laudos técnicos adequados, interferir no planejamento do jogo, reparar os danos sofridos pelos torcedores, enfim, cobrar um profissionalismo e cuidado com o bem mais precioso do clube, o seu torcedor.
Precisaremos de uma nova tragédia para respeitar o torcedor?
Espero que não.
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(Advogado, Presidente do IDDBA, Procurador do STJD do Futebol e do Basquete, Autor da obra “Comentários ao Estatuto do Torcedor”, pela Ed. Lumen Juris, Mestrando em Direito Desportivo pela Universidade de LLeida/Espanha, Email: [email protected] | Twitter: @miltonjordao).