Eduardo Carlezzo*
1. Introdução.
2. O Caso Bosman.
3. A legislação brasileira.
4. O Mercosul.
5. Conclusões.
1. Introdução.
A primeira vista, os três temas elencados como título deste texto causam uma certa apreensão, eis que poder-se-ia indagar que ligação haveria entre a lei que estabelece normas gerais sobre o desporto, o Caso Bosman (o que é o Caso Bosman?) e o Mercosul. Para interligarmos as mesmas, no escopo de tornar mais compreensíveis as idéias perfilhadas nestas linhas, cumpre que façamos uma análise em separado de cada um dos temas propostos para que ao final possamos conjugá-los e chegarmos a um ponto comum.
2. O Caso Bosman.
O chamado caso Bosman, de grande repercussão na seara futebolística européia, principalmente no que tange aos países comunitários, teve como seu protagonista o jogador de futebol Jean-Marc Bosman, de nacionalidade belga. Este jogava desde 1988 pelo Royal Club Liégeois SA (RCL), clube da primeira divisão daquele país, tendo um contrato que se expirava em 30 de junho de 1990 e que lhe garantia um renda mensal de 120.000 BFR. Em 21 de abril de 1990, o RCL propôs ao citado jogador um renovação contratual por mais uma temporada. Todavia, a proposta apresentada reduzia o salário percebido por Bosman, que agora seria de 30.000 BFR. Não concordando com a proposta apresentada pelo clube belga, Bosman foi inscrito na lista de transferências, tendo sido fixado o valor de 11.743.000 francos belgas (BFR) como quantia a ser paga pelo clube interessado em adquirir o “passe” do jogador.
Como não houve o interesse de nenhum clube em pagar o valor estipulado para a transferência de Bosman, este estabeleceu contatos com o clube francês Dunquerque, da segunda divisão daquele país, tendo fechado um contrato que lhe garantiria um saldo mensal de 100.000 BFR, mais uma “prima de contratación” de 900.000 BFR.
Em 27 de julho celebrou-se também um contrato de entre o clube belga RCL e o clube francês Dunquerque no qual estipulava-se a transferência temporal, pelo prazo de 1 ano, mediante o pagamento por este último clube de uma compensação de 1.200.000 BFR que seriam exigíveis quando da recepção pela federação francesa de futebol do certificado de transferência expedido pela federação belga. No mesmo contrato concedia-se ao Dunquerque a opção de adquirir definitivamente o vínculo do jogador mediante o pagamento de 4.800.000 BFR.
Como não houve a expedição do citado certificado de transferência, e por duvidar da capacidade financeira do Dunquerque, os contratos acabaram tornando-se sem efeito. Destarte, em 31 de julho de 1990, o RCL suspendeu Bosman, impedindo-lhe de jogar aquela temporada. Por tal razão, o jogador ingressou, em 8 de agosto de 1990, com uma ação junto a um Tribunal de 1ª Instância de Liège, contra o RCL, requerendo, dentro outros pleitos, que os demandados ficassem proibidos de obstacularizar a sua liberdade de contratação.
Durante o trâmite processual, outras organizações, tais como FIFA e UEFA, passaram a integrar a demanda. Desta maneira, o Tribunal de 1ª instância de Liège, em 11 de unho de 1992, declarou a admissibilidade das ações propostas por Bosman contra a RCL, a URBSFA e a UEFA, determinado a inaplicabilidade das normas relativas à transferências e às cláusulas de nacionalidade, sancionando o comportamento destas três organizações.
Por conseguinte, por conta das questões prejudiciais suscitadas, formulou-se ao Tribunal de Justiça da Comunidade Européia duas indagações, das quais citamos tão somente a primeira, eis que a segunda foge ao escopo do tema proposto. Assim, indagou o Tribunal belga: “Os artigos 48, 85 e 86 do Tratado de Roma de 25 de Março de 1957 devem ser interpretados no sentido de que proíbem: a) que um clube de futebol exija e receba o pagamento de um montante em dinheiro pela contratação, por um novo clube empregador, de um dos seus jogadores cujo contrato tenha chegado ao seu termo?”.
A primeira questão posta à exame pelo Tribunal de Justiça, refere-se a possibilidade de que o art. 48 do Tratado se oponha a aplicação das normas adotadas por associações desportivas quando da transferência de jogadores, as quais fundamentam-se na necessidade de uma compensação financeira caso um clube de um Estado membro queira contratar os serviços de um jogador profissional de futebol de outro Estado membro, quando do término do contrato deste, compensação esta chamada de formación o promoción.
Enfrentando o tema proposto, declara a Corte que a necessidade de pagamento de uma compensação financeira que os clubes empregadores estão obrigados a pagar para contratar um jogador proveniente de outro clube está a afetar diretamente as possibilidades deste para encontrar um emprego, bem como suas respectivas condições. Assim, conclui que o art. 48 do Tratado se aplica as regulamentações adotadas por associações desportivas como a URBSFA, a FIFA e a UEFA, o que, por conseguinte, acarreta as mesmas a obrigação de observar, em caso de transferência, a desnecessidade de pagamento de indenização por um clube a outro quando o contrato do jogador já tenha terminado.
O primeiro consectário lógico desta decisão, e também o mais importante, é que quando atingido o termo final do contrato de um jogador de futebol profissional com o seu clube, e sendo esse jogador cidadão de um dos Estados-membros da União Européia, o clube antigo não pode impedir o jogador de assinar um novo contrato com outro clube noutro Estado-membro, de modo que o clube cedente não poderá mais exigir uma compensação financeira em caso de transferência do jogador.
Por óbvio que esta decisão desagradou clubes, federações e confederações, mas, mesmo assim, fora observada em todas as negociações envolvendo na transferência de jogadores.
3. A legislação brasileira.
A Lei 9.615, de 24 de março de 1998, mais conhecida como Lei Pelé, que teve o escopo de condensar normas gerais sobre o desporto, introduziu algumas mudanças significativas no futebol, dentre as quais, sem dúvida alguma, sobrepõe-se o § 2º do art. 28, o qual, em uma simples locução, revoluciona o futebol brasileiro. Isto porque o citado parágrafo estabelece que “o vínculo desportivo do atleta com a entidade contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo de emprego …”. Em outras palavras, significa a extinção do instituto do passe, consagrado pela Lei 6.354/76, cabendo esclarecer, todavia, que a “morte” do passe, por expressa disposição legal (art. 93 da Lei 9.615/98), deu-se a partir de 26 de março de 2001.
O passe, na definição do art. 11 da lei nº 6.354/76, é “a importância devida por um empregador a outro, pela cessão do atleta durante a vigência do contrato ou depois de seu término, observadas as normas desportivas vigentes”. A FIFA, no art. 14 do seu Regulamento de Transferência de Jogadores de Futebol, em disposição similar, declara que “cuando un jugador no-aficionado concluya un contrato con un nuevo club, su antiguo club tendrá derecho a una indemnización de promoción y/o formación”. Esta indenização de formação ou promoção nada mais é do que a aquisição, mediante pagamento de uma quantia, do vínculo desportivo do atleta.
Nos contratos firmados sob a égide da inexistência do vínculo desportivo, não existe mais a possibilidade do clube, ao final do contrato, negociar o atleta recebendo do clube contratante uma indenização pelo pagamento do passe. Poderá o clube apenas, da mesma forma como ocorre no futebol europeu, receber indenização no caso de rescisão antecipada do contrato, pelo jogador, mediante o pagamento da cláusula de rescisão previamente fixada no contrato, nos termos do § 3º do art. 28.
Não querendo adentrar na controvérsia sobre com quem está razão quanto a extinção ou não do vínculo desportivo, pois boas razões existem para ambos os lados (clubes e jogadores), cabe-nos consignar, previamente, uma questão causará muita celeuma, que é a referente a redação do art. 93, alterada pela Lei 9.981/00, a qual determina a observância dos direitos adquiridos decorrentes dos contratos de trabalho e vínculo desportivos profissionais pactuados com base na legislação anterior. Isto quer dizer, como já manifestaram-se alguns juristas, que mesmo atingindo-se o término do contrato, se este tivesse sido firmado sob a tutela da legislação anterior (que previa a existência do passe) o clube tem o direito adquirido sobre o mesmo, podendo então requerer indenização pela transferência do jogador. Trata-se, sem dúvida, de matéria extremamente polêmica, que será decidida pelos nossos tribunais, mas que já rendeu um primeiro exemplo, que é o caso do jogador Ronaldinho, ex-atleta do Grêmio e hoje tentando via Poder Judiciário a declaração da inexistência de qualquer vínculo desportivo com o Grêmio.
4. O Mercosul.
e se notar, mercado dos s blocos, cujo escopo é o fortalecimento para uma maior e melhor competição No art. 1º da Tratado de Assunção lê-se que o mesmo implica na “livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre países …”. Pois bem, muito embora que não esteja expresso no corpo do tratado um paradigma de livre circulação de trabalhadores entre os Estados componentes do Mercosul, muitas pessoas identificaram na livre circulação de fatores produtivos um supedâneo para tal lacuna, de modo que aptos estaríamos para lançarmos as bases, tendo como pano de fundo o modelo comunitário europeu, para uma ampla mobilidade dos fatores de produção (trabalhadores) dentro do Mercosul.
Na seara do Direito Desportivo, que a que nos interessa, a confirmação de tal regra por óbvio traria grande repercussões, principalmente quanto aos jogadores de futebol. Isto porque, admitindo-se a possibilidade de trabalho em qualquer do países do Mercosul, sem qualquer vínculo que os afete (respeitando-se, é claro, as bases contratuais), teríamos a possibilidade de um jogador argentino, encerrado o seu contrato, transferir-se a qualquer clube do Brasil sem qualquer ônus de transferência para este e vice-versa. E ainda, utilizando este exemplo, o jogador não seria taxado como estrangeiro, de modo que estaria fora da cota de três jogadores provenientes de outras nacionalidades que os clubes brasileiros podem ter em seu elenco.
5. Conclusões.
Não obstante as freqüentes comparações com o direito comunitário europeu, cumpre consignar que tal modelo é dotado de caráter supranacional, com instituições que proferem decisões com reflexos diretos e imediatos nos Estados membros, como é o caso do Tribunal de Justiça de Luxemburgo, órgão responsável pela decisão que entendeu contrária ao Tratado de Roma a obrigatoriedade de pagamento de indenização, quando findo o contrato, para a contratação dos serviços de um jogador de futebol. O Mercosul, ao contrário, fundamentando em um modelo integracionista, não possui um órgão com um caráter de “Poder Judiciário Supranacional” apto a interpretar as regras do Tratado de Assunção, tornando suas sentenças obrigatórias e vinculantes aos respectivos ordenamentos nacionais dos países signatários. Muito embora exista um Sistema de Solução de Controvérsias, tendo como último estágio a arbitragem, o mesmo ainda está longe de ditar uma linha interpretativa e vinculativa do Tratado de Assunção tal qual ocorre na CE.
Assim, sob o prisma integracionista do Mercosul, devemos dizer que o Brasil deu um passo bastante importante no sentido de tornar viável a livre circulação de trabalhadores entre os Estados membros, eis que hoje já é possível a qualquer jogador de futebol brasileiro, encerrado o contrato com um clube nacional, transferir-se livremente a qualquer país do Mercosul, respeitadas as peculiaridades de seus ordenamentos internos.
*Acadêmico de Direito – 9º Semestre – URICER – Erechim/RS.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.