16.08.2007
Seleção brasileira da Copa América reuniu somente atletas vinculados a empresários
Álvaro Melo Filho
Intolerantes e retóricos críticos da CBF, sempre pródigos em argumentos desarrazoados e juízos estigmatizantes, têm acusado a entidade dirigente do futebol brasileiro de “privilegiar o modelo exportador de pé-de-obra que há mais de uma década caracteriza o futebol brasileiro”, atribuindo-lhe a responsabilidade maior pela crise do desporto-identidade do Brasil. Contudo, à evidência, os malefícios foram trazidos e implantados pela Lei Pelé (Lei nº 9.615/98), urdida e aprovada com lastro em razões ocultas e inconfessados interesses, cada vez mais visíveis e escancarados. Por exemplo, todos os atletas da seleção brasileira na Copa América 2007, sem exceção, foram “prisioneiros” de empresários neste processo que alguém já denominou de “canibalismo desportivo”.
Antes da Lei Pelé o “passe” dos atletas profissionais pertencia aos clubes. Depois da deletéria lex sportiva, a “posse” dos atletas, de fato, passou para agentes e empresários, ou, como averba Ives Gandra Martins “a nova lei simplesmente tirou os jogadores dos clubes e os repassou para os empresários”. E os clubes que sempre foram celeiros de craques transfiguraram-se, na maioria dos casos, em “laranjas” dos empresários. Com efeito, com poucas exceções, estes agentes atuam como “atravessadores desportivos”, quer dizer, autênticos “senhores feudais” dos atletas, “apropriando-se” deles como se fossem “res” e induzindo-os a “mercenarização” desportiva motivada por contratos em dólares ou euros.
Referindo-se ao empresário desportivo o acatado jurista português João Leal Amado assinala que se trata “de uma profissão de reputação algo duvidosa: práticas especulativas, falta de transparência e de escrúpulos, parasitismo, comportamentos atentatórios a ética desportiva, dinheiro fácil…”. Demais disso, constantemente, os agentes desportivos estão a motivar a quebra contratual pelos atletas na medida em que não “levam vantagem” econômica, caso os contratos de trabalho profissional desportivos sejam integralmente cumpridos. A propósito, ressalta Albino Mendes Baptista que “o empresário é muitas vezes o mais forte adversário do pacta sunt servanda, princípio que gostam muito pouco, porque nada lhes adianta, enquanto que rupturas ante tempus, com a conseqüente outorga de novos contratos com clubes terceiros, gerarão circulação de dinheiro e, portanto, lucro para a sua atividade”.
Com supedâneo em sua experiência vivenciada na Fifa, o advogado e ex-Diretor do Departamento de Transferências de Jogadores do ente internacional G. Monteneri já advertiu que “the direction of capital flows in professional football has considerable changed. Instead of circulating between clubs, more and more money ended up in agents pockets”. Reponte-se, nesse passo, que a riqueza gerada no futebol não pode escoar-se para um “ralo” fora dele, pois antes, deve servir para nele reinvestir, hipótese rara e até inconcebível pela maioria dos agentes de futebol. E mais, se um clube paga e tem direitos sobre o atleta, deve ser ele a usufruir deles, e não os outros.
Desse modo, para que o futebol brasileiro não continue a sofrer dilapidação em decorrência da atuação corrosiva dos agentes de jogadores, urge aprovar-se uma normatização rigorosa, inclusive, pela falta reiterada de transparência detectada em tais atividades que acabam, muitas vezes, servindo de “biombo” para encobrir fraudes fiscais e lavagem de dinheiro.
Observe-se, por relevante, que antes da Lei Pelé e na vigência da Lei nº 6.354/76, quando da venda do passe, o atleta tinha “direito a parcela de, no mínimo, 15% (quinze por cento) do montante do passe, devidos e pagos pelo empregador cedente” (art. 13, § 2º). Atualmente, os “direitos federativos” (um neologismo criado após o fim do passe para determinar quem teria a propriedade do atleta, como lembra o jurista desportivo Luis Felipe Santoro) decorrem do registro do contrato de trabalho desportivo atleta/clube na entidade desportiva diretiva da modalidade respectiva gerando um vínculo desportivo. E, na praxis, tais direitos federativos passaram a ser negociados e materializados sob a nomenclatura de “direitos econômicos”, ou, mais precisamente, pela via do contrato de “cesión de beneficios económicos futuros derivados de la venta o préstamo de los derechos federativos de los futbolistas” para usar definição consagrada no Derecho Deportivo alienígena.
Aprofundando a diferença entre “direitos federativos” e “direitos econômicos” note-se que os direitos federativos são privativos dos clubes e só podem ser ostentados por eles perante a respectiva Confederação, proibido a terceiros serem titulares desses direitos. Já os direitos econômicos que derivam dos direitos federativos, de fato, podem ser exercidos tanto pelos clubes, como podem ser adquiridos por empresários ou por empresas que realizam uma operação de risco buscando o lucro futuro quando da transferência dos direitos federativos do atleta para outro clube. Vale dizer, “los derechos económicos, representan el porcentaje que adquiere un tercero (Club, Sociedad o persona física) sobre la utilidad de una futura venta de los derechos federativos”. Esclareça-se que, tais direitos econômicos que correspondem ao conteúdo patrimonial dos direitos federativos, não raro submetem-se a um “fatiamento” ou rateio entre clube (detentor dos direitos federativos) e empresários (detentores dos direitos econômicos), e, por ocasião da cessão onerosa do atleta o empresário (e não mais o jogador) é quem embolsa de 10% a 20% do valor auferido pelo clube de origem. Em suma, os 15% que antes beneficiavam os atletas, hoje, como conseqüência da Lei Pelé, constituem ganho dos empresários.
Diante desse quadro pintado com tintas fortes e negras é importante e urgente fixar limites e estabelecer restrições jurídicas aos contratos e atuação dos agentes de jogadores, tais como:
– impedir ou considerar nulas e de nenhum efeito jurídico a materialização das chamadas cláusulas abusivas ou desproporcionais;
– as licenças concedidas como agente Fifa devem ter duração limitada e sua renovação condicionada a uma avaliação criteriosa e aprovação em outro exame escrito;
– criar uma tabela de honorários dos agentes de jogadores com taxas fixas, acrescidas de valores por horas efetivamente trabalhadas e comprovadas;
– prestar de todas a informações a um órgão central do futebol (nacional e/ou internacional) indicando em cada nova transferência os valores envolvidos, a identificação das pessoas físicas e clubes pagantes e beneficiários, com os correspondentes valores que coube a cada um, para que a transparência passe da retórica para a praxis.
Somente assim poderá pensar-se em extinguir o tráfico milionário de escravos futebolistas negros e brancos, com decorrência, não raro, do conluio entre agentes, “empresários”, treinadores, dirigentes, pais e tutores que se integram numa “trama macabra destinada en muchos casos a potenciar el lucro posible con las ventas o transferencias de jóvens (cada vez más jóvens) promesas del fútbol actual”.
Nesse contexto, é importante concretizar as sugestões que inserimos no PL nº 5.186/05, em tramitação na Câmara Federal, corrigindo os equívocos e danos trazidos pela Lei Pelé. E, no tocante aos empresários, este Projeto de Lei que arquitetamos prevê a nulificação de cláusulas de contratos e instrumentos procuratórios firmados entre agentes e atletas que resultem em vínculo desportivo, que estabeleçam obrigações consideradas abusivas ou desproporcionais, que se atrelem às receitas dos clubes decorrentes das transferências de atletas, que infrinjam princípios da boa-fé desportiva e do fim social do contrato, etc. Ou seja, na lege ferenda proposta procura-se blindar as relações atleta/clube da voragem do mercado, do oportunismo letal e da ação “predatória” de boa parte dos agentes desportivos que nada investem e só objetivam o lucro.
É urgente, então, “virar o jogo” tolhendo a ação nefasta de uma parcela de empresários desportivos geradora do êxodo massivo dos craques para o exterior, muitos deles ainda imberbes e arriscados a ficar “deformados” antes de ser integralmente formados pelos seus clubes de origem. São estes agentes, ainda, os maiores responsáveis por nivelar, por baixo, as competições nacionais hoje disputadas por clubes com jogadores na maioria desconhecidos, ou, quando conhecidos, em fim de carreira. É esse o caminho pavimentado por alguns ditames da Lei Pelé que está ajudando a conduzir o futebol brasileiro rumo às trevas da falência técnica e ao abismo do caos financeiro, impondo-se sua imediata “implosão”, sob pena de não haver salvação.
Adite-se, por derradeiro, que o ilusório e nocivo modelo gerado pela Lei Pelé é hoje sustentáculo de empresários ricos, atletas ciganos e clubes falidos, constituindo-se no maior estelionato jus-desportivo do país, na medida em que prometeu sonhos e entregou apenas pesadelos.
* Álvaro Melo Filho é advogado e professor de Direito. Autor de 40 livros e 160 artigos jurídicos. É membro do Gedaf
Fonte: Universidade do Futebol