Desmistificando a Lei Pelé

Obra: A Nova Gestão do Futebol – Capítulo 3.
CARLOS MIGUEL AIDAR

 
Sob a desculpa de apresentar à opinião pública uma resposta às denúncias de corrupção no sistema formado por bingos e casas de apostas – cuja autorização de funcionamento é atribuição do Ministério do Turismo e dos Esportes -, o governo federal baixou uma série de medidas provisórias (MPs) que abriram, mais adiante, fendas na base da nova legislação esportiva do país proporcionada pela Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, a chamada Lei Pelé.
O resultado de um trabalho elaborado após anos de debates na sociedade civil – Congresso, universidades, sindicatos, atletas, entidades – foi atropelado por uma questão regulatória menor. Sob o argumento de defender a micropolítica, feriu-se a macropolítica.
Nas primeiras edições da MP nº 1.926, de 22 de outubro de 1999, o Ministério Público foi alijado do artigo 18, os contratos de trabalho chegaram aos seis anos e qualquer ingerência externa no clube gerava punição administrativa desportiva e inabilitação aos benefícios da lei.
As máquinas de bingo realmente acabaram sendo proibidas, o que dava ares de honorabilidade à contravenção apresentada como motivo de toda mudança legal imposta pelas MPs.
Surge, então, em 14 de julho de 2000, a Lei n. 9.981. O bingo da MP permanece.
Tal transformação não teve o mérito de tratar com o mesmo cuidado a evolução da cultura esportiva como parte de um tempo de novas competências e responsabilidades, o que fora antecipado na Constituição de 1998.
O texto da Lei nº 9.981 é retrógrado por vários motivos. O art. 3º passa a ignorar o “instituto do semiprofissional”, mecanismo de formação de atletas, os quais agora passam a ser tratados de forma unificada, como praticantes amadores. Estes, entre 14 e 20 anos, podem receber incentivos materiais e patrocínio, perdem o seguro de acidentes, o contrato de trabalho e os benefícios de seguridade social.
A grande inovação da Lei Pelé, quando da sua publicação, foi a extinção do passe. Em relação às entidades de prática desportiva formadoras de atletas esta inovação causou enormes prejuízos, uma vez que não poderiam mais ser titulares do passe dos novos talentos formados em suas categorias de base.
A Lei n.º 9.981 não tratou desta questão. Por outro lado, a Medida Provisória nº 2.141, de 23 de março de 2001 (reeditada seis vezes – atualmente sob nº 2.193-6, de 23 de agosto de 2001) estipulou alguns benefícios às entidades de prática desportiva formadoras de atleta. Ao regular a matéria, a MP nº 2.193-6 determina que as entidades formadoras terão o direito de assinar com o atleta, a partir de dezesseis anos de idade, o primeiro contrato de trabalho profissional, cujo prazo não poderá ser superior a cinco anos. E mais, extinguiu a exigência de o clube, na sociedade com o investidor, deter ao menos 51% do capital da empresa resultante.
O texto original da Lei Pelé não tratava do limite etário mínimo para realização do contrato de trabalho, estipulando apenas que este deveria ter duração máxima de dois anos.
Em relação à alteração do art. 28, §2º da Lei Pelé, através da MP nº 2.193-6, por sua vez dispõe que o vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva tem natureza acessória em relação ao vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais, com o término da vigência do contrato de trabalho. Salvo exceção prevista no § 3º, inciso II, do art. 29.
Deve-se destacar ainda que apenas a entidade de prática desportiva que, comprovadamente, firmar o primeiro contrato de trabalho com o atleta por ela profissionalizado, terá o direito de exigir, do novo empregador, indenização de formação (inciso I) e/ou de promoção (inciso II), consoante mudança do artigo 29 da Lei Pelé, proferida pela supramencionada MP. A primeira indenização refere-se a cessão do atleta durante a vigência do primeiro contrato, não podendo exceder duzentas vezes o montante da remuneração anual, impossibilitada a cobrança cumulativa de cláusula penal. Já a indenização de promoção trata da nova contratação do atleta, no prazo de seis meses após o término do primeiro contrato, não podendo exceder a cento e cinqüenta vezes o montante de remuneração anual, desde que a entidade formadora continue pagando os salários do atleta enquanto não firmado novo vínculo contratual.
A cláusula penal, outra novidade da Lei nº 9.981, cria uma forma disfarçada do passe, o que, na prática, mantém a imposição unilateral do clube sobre o futuro profissional de cada atleta. Ao multiplicarem-se os preceitos dos §§ 3º e 6º do art. 28, a multa será uma multiplicação do valor do salário por até 100 vezes, nos casos de remuneração maior que 10 salários mínimos, e até 10 vezes para os menos aquinhoados. Entretanto, nos contratos de três a 11 meses de duração, o valor anual é inexistente, da mesma forma que para os de cinco anos a multiplicação será por apenas 20% do valor.
Também extingui-se da relação o princípio do art. 920 do Código Civil, que rege que a multa não deve exceder o valor da obrigação principal.
Na proporcionalidade da aplicação do preceito “multa versus tempo decorrido” ainda é mais acentuada a relação, pois o previsto no art. 924 do Código Civil traduz o equilíbrio. Na Lei nº 9.981, os redutores variam de 10 a 80%, tornando a operação matemática de difícil operacionalidade tendo em vista a redação utilizada.
Da forma como está, o texto legal parte da premissa de que o atleta será sempre o causador da rescisão. Por isso, na realidade, corremos o risco de que as indenizações sejam objeto de batalhas jurídicas longas.
Mas a alteração que mais tira o modelo modernizador da Lei Pelé é tratar como amadores os atletas de modalidades esportivas diferentes do futebol. Por isso, somente na exceção a profissionalização vai acontecer nessas modalidades – o que acontecerá quando um estrangeiro forçar a isonomia para o restante do elenco.
Os clubes ainda terão de tomar um cuidado especial, pois o não registro profissional dos atletas tem na Lei nº 9.981 um entendimento enganoso, quando o texto “é livre o exercício de qualquer ofício ou profissão” é trocado por “é opcional o exercício da profissão de atleta”.
O art. 27, que trata da “administração da prática profissional por atividade comercial”, a qual rendeu divisas consideráveis para o país em poucos meses ao atrair capital investidor para os clubes de futebol, perdeu sentido com o novo texto da Lei nº 9.981.
A MP nº 2193-6, ao regular o art. 46-A da Lei Pelé, estabeleceu que as entidades de administração do desporto e as de prática desportiva envolvidas em quaisquer competições de atletas profissionais, independentemente da forma jurídica adotada, com ou sem finalidade lucrativa, são obrigadas a elaborar e publicar as demonstrações contábeis e balanços patrimoniais, de cada exercício, devidamente auditados por auditoria independente. O parágrafo único do mencionado dispositivo, dispõe sobre as conseqüências da violação do artigo em tela, sem prejuízo da aplicação das penalidades previstas na legislação tributária, trabalhista, previdenciária, cambial, e das conseqüentes responsabilidades civil e criminal.
Ainda em relação à MP nº 2193-6, deve-se destacar a complementação do artigo 50 da Lei Pelé, com a inserção da faculdade das ligas em constituir seus próprios órgãos judicantes desportivos, com atuação restrita às suas competições.
Voltamos aos princípios da Lei Esportiva de 1976, da época do regime militar. A obrigatoriedade da transformação dos clubes em empresas virou opção.
As possibilidades que se abriram com o clube-empresa, na busca de uma administração mais profissional e transparente, voltada para o resultado, abrindo oportunidades de negócios com mídia, licenciamento, merchandising etc, tornaram-se mais estreitas, e, com isso, também ficou limitada a capacidade de multiplicação de renda e emprego nesse setor.
Enfim, mudaram para pior.
O presente Memorando foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

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