Wladimyr Camargos
Os atos de selvageria que irromperam na última rodada do Campeonato Brasileiro chocaram a todos e obrigam a sociedade a refletir seriamente sobre o tema. Porém, há reações as mais disparatadas possíveis, muitas delas tendentes a resolver o problema de maneiras simplistas, dentre elas a de se realizar partidas sem a presença de público.A mesma possibilidade de se disputar um campeonato de futebol sem torcedor seria a de se ministrar uma aula sem alunos, exibir um filme sem espectador ou realizar uma eleição sem eleitor. Afinal, como dizia Carlos Drummond de Andrade: “A partida de futebol é mais disputada por torcedores do que por atletas no campo”
Os atos de violência no futebol são antigos e complexos e não se resolvem com soluções prêt-à-porter. O estádio é um microcosmo da vida fora dele. Se há profundas divisões econômicas na sociedade, nas arenas os torcedores mais abastados se acomodam em camarotes, enquanto que os menos aquinhoados se espremem nas arquibancadas de concreto. Aos últimos, o preço do ingresso faz parte de sua “cesta básica”. Estão todas as semanas nos jogos e têm no estádio um local de socialização, procurando se organizar para seguir seu clube, dedicando bom tempo de suas vidas à torcida.
Mário Filho já havia entendido este fenômeno em meados do século 20. Em seu livro O Negro do Futebol Brasileiro demonstrou como as classes populares foram aos poucos tomando para si o espetáculo bretão, antes restrito apenas aos jovens brancos e ricos. O futebol passou a ser a principal diversão dos pobres. Naturalmente, assim como ocorreu em outros países, os aficionados pelos times se avolumaram e buscaram se organizar. As agremiações de torcedores passaram protagonizar o grande espetáculo plástico e sonoro que ocorre desde então nas arquibancadas.
Ocorre que, justamente por ser um espelho da sociedade, o estádio passou a receber gente que faz da violência a forma de manifestar contraditoriamente sua paixão pelo clube. Coletivamente tende a ser mais corajosa e violenta. A multidão e o anonimato servem como névoa para encobrir seus atos de fúria.
Seria o caso de combater, então, as torcidas organizadas? Elas são um fenômeno social e toda medida voltada a sua proibição, além de ter resultado em inocuidade, possibilitou apenas a clandestinidade necessária ao agir às sombras daqueles que nelas se escoram para praticar atos de violência.
O futebol é coisa do povo e dele não pode ser tirado, mas há que se entender que aqueles que são um risco à segurança de todos devem ser afastados do estádio. Se não os casos de prisão para as condutas mais graves, a imposição da restrição do direito de ir à praça esportiva. O Estatuto do Torcedor já possibilita isso desde 2010. Mas há que se perguntar: o afastamento judicial do torcedor violento das arenas esportivas é medida real em nosso País? A resposta é negativa, exceto em raros casos. Ao juiz é possível afastar o torcedor por até três anos dos estádios. Contudo, não se controla a pena de “banimento” nas catracas dos estádios, onde não há identificação dos torcedores. O infrator volta facilmente para a arena.
Apesar de todos os esforços atuais do Ministério do Esporte para realizar o cadastramento dos torcedores organizados, é preciso ampliar as medidas, ainda que se saiba não serem panaceias. A primeira seria a criação de Juizados do Torcedor, funcionando conforme a definição de “justiça comunitária”, como já ocorre em Pernambuco. Ali, o torcedor afastado dos estádios é obrigado a comparecer ao Juizado no horário das partidas para realizar cursos profissionalizantes e participar de atividades na área dos direitos humanos.
Entretanto, esta atividade só se torna efetiva se, ao mesmo tempo, houver controle eletrônico de entrada de torcedores nos estádios. Isso demanda o credenciamento de todas as pessoas que pretendem frequentá-los, indistintamente. Caso contrário, o torcedor que deixa de comparecer ao local determinado pelo juiz poderá muito bem estar na arquibancada praticando atos de violência. Em se cadastrando apenas as torcidas organizadas, aqueles torcedores que estejam impedidos poderão simplesmente escolher outro portão de acesso onde não se realiza o controle eletrônico e se confundir novamente no seio da massa. O risco continua latente.
Ainda assim, não haverá qualquer possibilidade de avançar na construção da cultura de paz se as próprias torcidas organizadas continuarem a se apresentar com uma simbologia que remete à violência. Do mesmo modo, se as forças de segurança insistem em tratar os torcedores em geral como inimigos a serem combatidos, sua conduta continuará a ser de um combatente que revida violência com mais violência.
Aos clubes e seus dirigentes, a responsabilidade de não fomentarem núcleos de torcedores que se pautam pela violência. Já seria um bom início redefinir a prática de distribuição de ingressos e não repassar à Justiça Desportiva uma responsabilidade pelo controle da violência extracampo que não é dela.
Fechar os portões à torcida é punir apenas quem faz do futebol seu momento de alegria. É sufocar quem ama verdadeiramente seu clube e faz do estádio um templo de exaltação à grande arte brasileira.
Wladimyr Camargos é advogado,
professor de Direito Desportivo da Faculdade de
Direito da UFG, membro da Academia Nacional de
Direito Desportivo e sócio-benemérito do
Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Fonte: O Popular