TAD, “versão 3.0”: os recursos

Em Outubro de 2008 desloquei-me a Madrid, para assistir, no Auditório do Comité Olímpico Espanhol, a uma cerimónia que evocava a passagem do 10.º aniversário da criação do “Tribunal Espanhol de Arbitragem Desportiva”. Lembro-me como se fosse hoje, nas várias intervenções houve um ponto convergente: a necessidade de se atribuir mais competências àquele tribunal. Lamentava-se, em particular, não existirem muitos casos ao longo de uma década. Mas essa parca jurisprudência tinha uma explicação evidente para todos: a ausência de competência do tribunal para dirimir litígios relativos a actos e omissões das federações desportivas no exercício dos seus poderes públicos.

Um ensinamento, portanto, para Portugal, numa altura em que, sob o impulso do Comité Olímpico de Portugal, já trabalhava uma “Comissão Instaladora do Tribunal Arbitral do Desporto”, num contexto em que as federações desportivas também exercem determinados poderes de natureza pública, em razão do estatuto de utilidade pública desportiva que lhes é concedido pelo Estado.

Haveria, portanto, que gizar uma solução para Portugal, que evitasse um cenário como o de Espanha, que não apenas ficar resignado ou considerar, como cheguei a ler, ser forçoso que, a existir um Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) em Portugal, este não poderia apreciar os “conflitos disciplinares”, assim ficando de fora “uma boa fatia dos conflitos desportivos”, um dos “seus mais relevantes espaços de intervenção.” Não: em minha opinião, o caminho correcto a seguir não seria o de, à nascença, “cortar as pernas” ao TAD, fazendo crer lamentar esse facto, tido por inevitável. Pelo contrário: indicado, seria, penso, agir e, no quadro da lei, tentar encontrar forma de sujeitar tal tipo de conflitos – que envolvessem actos administrativos – ao domínio da arbitragem no desporto.

O tempo passou muito lento. O projecto da referida comissão instaladora aguardou uns anos, por um simples retorno, “esquecido” numa gaveta. Depois houve ainda espaço para duas novas comissões emergirem e produzirem trabalho. Até que mudou o Governo e chegaram ao Parlamento duas propostas, do Governo e do Partido Socialista. Sem prejuízo de algumas diferenças de fundo, essas duas propostas convergiram numa solução fundamental: a previsão de arbitragem necessária em matéria de actos e omissões das federações desportivas com natureza pública, excluindo-se o recurso para os tribunais estatais. Foi a (única) via encontrada, com consulta prévia a diversos juristas de diferente proveniência.

A verdade é que o Tribunal Constitucional (TC), sob o impulso do Senhor Presidente da República, por duas vezes, ora em sede de fiscalização preventiva ora em sede de fiscalização sucessiva da constitucionalidade, considerou inconstitucionais as soluções apresentadas pelo Parlamento: a primeira, de irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões do TAD proferidas no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária; a segunda, que já consagrava, ainda que a título excepcional, um mecanismo de reexame da decisão arbitral perante um órgão judicial do Estado – o recurso de revista junto do Supremo Tribunal Administrativo (STA).

Num Estado de Direito democrático há que respeitar as decisões dos órgãos de soberania. Mas isso não nos impede de discordar: achei muito restritiva a visão do TC.

Revejo-me, em absoluto, no voto de vencido declarado no primeiro acórdão pela Juíza Maria João Antunes, segundo a qual “o direito de acesso aos tribunais (…) não é garantido apenas através do acesso aos tribunais do Estado.”. Mais declarou que a Constituição da República Portuguesa “prevê a existência de tribunais arbitrais como uma categoria de tribunais, que se constituem precisamente para exercer a função jurisdicional”. Assim, “tutela jurisdicional não significa o mesmo que tutela judicial”. Ou seja, os tribunais junto dos quais se deve garantir aos cidadãos o “acesso ao direito e aos tribunais”, não são apenas os tribunais estaduais. Mais a mais quando, como o TAD, surgem “em virtude de um ato legislativo e não como resultado de um negócio jurídico privado”, logo como são criados como “marca da criação estadual”. Note-se ainda, já no segundo acórdão, a “Declaração de voto” da Juíza Maria de Fátima Mata-Mouros, em particular a seguinte passagem: “A instituição da arbitragem visa confiar a julgadores especialmente habilitados o julgamento de litígios referentes a matérias que, pela sua própria natureza, requerem conhecimentos técnicos especiais. Assim, a sujeição da apreciação da matéria de facto, confiada a árbitros especializados, ao subsequente controlo pelos tribunais comuns, além de, em teoria, nada poder acrescentar à qualidade da decisão, frustra a própria razão de ser da instituição da arbitragem.”…

Mas a vida é o que é e o Direito também. Só que se a vida – de todos e de cada um – tem uma história, o mesmo se diga do Direito. E a história, os antecedentes, os percursos, explicam muita coisa. Nesse sentido, sempre que “olharmos” a lei que rege o TAD, temos dois caminhos a seguir, se quisermos ser coerentes, verdadeiros e consequentes: ou concordamos com os efeitos (queridos) dos dois acórdãos do TC, e assim não lamentamos a morosidade nem os custos financeiros associados; ou não concordamos, e temos legitimidade para criticar a versão final do diploma.

Da minha parte sempre fui contra uma ideia de “reserva de jurisdição estadual em matéria de justiça desportiva” e, não ignorando a diferença entre arbitragem necessária e arbitragem voluntária, entendo que uma arbitragem que implique novos graus de jurisdição, reexames, recursos sobre o mérito do que é decidido é uma arbitragem totalmente descaracterizada. Porque perde uma das suas vantagens maiores: a celeridade. E, sobretudo, porque se queremos a arbitragem como alternativa aos tribunais estatais não devemos mantê-la umbilicalmente ligada … aos tribunais estatais. É uma opinião, vale o que vale, mas é a minha. Sei que não é única. Mas também reconheço que o TC decidiu sempre por esmagadora maioria e, insisto, devemos todo(s) o respeito às suas decisões.

Dito isto, caro leitor, sou contra a solução que a lei acabou por acolher: (i) as decisões dos colégios arbitrais do TAD proferidas em arbitragem necessária são recorríveis para o Tribunal Central Administrativo (TCA) do Sul, salvo se as partes acordarem recorrer para a câmara de recurso do TAD, renunciando expressamente ao recurso da decisão que vier a ser proferida; (ii) no caso de as partes optarem pela câmara de recurso do TAD, a decisão desta é susceptível de recurso para o STA quando esteja em contradição, quanto à mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação ou regulamentação, com acórdão proferido pelo TCA ou pelo STA.

Fonte: sabado.pt

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *