A BOLA, AS CRIANÇAS E UM SONHO

Cristiano Augusto Rodrigues Possídio¹

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)

O saudoso Gonzaguinha, um dos grandes poetas do país, certa vez musicou que ficava “com a pureza das respostas das crianças; é a vida! É bonita e é bonita”!

Pureza! Eis uma palavra que reflete muito bem a imagem que se deve possuir das crianças; e toda pureza deve ser protegida. Uma pessoa pura não carrega em si ódio ou as maldades tão comuns aos homens; e se um dia ela passa a odiar ou se torna um ser humano vil, provavelmente foi porque alguém a ensinou a ser assim.

Mandela, do alto da sua conhecida sabedoria, certa vez disse, ao se referir sobre preconceitos diversos que:

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.  

As palavras de Mandela soam como um sopro incontestável acerca da necessidade de proteção das crianças pelo Estado, sociedade e família, especialmente na passagem para adolescência e depois para a fase adulta, quando estão ávidas pelo conhecimento, embora muitas vezes nem se deem conta disso.

É preciso ensinar as crianças a amar e a oportunidade de aprender um ofício é – sim – um ato de amor, desde que protegidas, inclusive, da exploração do trabalho infantil e com respeito às suas limitações e vulnerabilidades. Desde que se o faça com responsabilidade e com verdadeiro espírito de aprendizado e transmissão de conhecimentos, potencializando valores como respeito, dignidade, igualdade, fraternidade e exercício responsável da cidadania!

Como ensinar crianças que nascem em guetos, favelas e subúrbios a amar? Como ensiná-las se não têm acesso a bens essenciais como saúde, saneamento e educação? Como ensiná-las a amar se o amor muitas vezes passa ao largo do seu ambiente familiar e da comunidade em que vivem por uma série de motivos, a exemplo da fome e miséria de seus pais que também não tiveram acesso a um mercado de trabalho digno?

É muito difícil!

Mas o esporte sempre foi e é uma grande ferramenta utilizada como agente transformador, não apenas porque pode vir a ser rentável e dar a esse jovem uma atividade profissional concreta e digna no vôlei, atletismo, natação, basquete, futebol etc.; porém, principalmente porque mantém acesa a capacidade de sonhar no contexto da prática de uma modalidade esportiva na qual o jovem se liberta – até mesmo dos fantasmas da pobreza.

A realidade vivida no Brasil é muito cruel e a esmagadora maioria dos atletas profissionais do país, especialmente no âmbito do futebol, saíram das camadas mais marginalizadas da população, geralmente a partir das oportunidades de formação em escolinhas diversas ou diretamente nos clubes. O problema das oportunidades, todavia é a realidade, muitas vezes vilipendiada pela ganância de quem explora a atividade de formação e que pensa, tão-somente, no “faturamento” com a negociação de direitos econômicos lá adiante, quando o jovem se tornar atleta profissional.

A dificuldade, dentro dessa lógica capitalista impiedosa é exatamente encontrar equilíbrio sem descuidar, nem um milímetro, do espectro protetivo dessa relação jurídica extremamente sensível e especial, especialmente para separar o joio do trigo; os

projetos sérios, daqueles que, na prática, exploram as crianças e adolescentes com mero objetivo lucrativo. 

É preciso mirar essa realidade com responsabilidade para permitir aos jovens menores o direito de sonhar (a ser um jogador de futebol, por exemplo) e, ao mesmo tempo, protegê-los de toda e qualquer forma de exploração e exposição, inclusive, riscos de tragédias como a que lamentavelmente vitimou 10 adolescentes no CT do CR Flamengo (Ninho do Urubu) no ano de 2019.

A atenção dos órgãos de fiscalização, inclusive, Conselhos Tutelares e Ministério Público deve ser prioritária, porém considerando as condições, capacidade e compromisso na execução do projeto por cada entidade formadora. Instalações, corpo de profissionais, frequência escolar, acompanhamento psicológico e convivência familiar são essenciais e se realizados de maneira concreta e correta dará a esse jovem muito mais do que sua família terá oportunidade de oferecer e o Estado propiciar ao longo dos anos.

Na verdade, muitos desses jovens, ao se tornarem profissionais, invertem a ordem das coisas e, desde cedo, trazem eles a seus pais e familiares mais conforto e proteção –  como verdadeiros arrimos de família.  

Deve-se cobrar responsabilidade das entidades de prática desportiva e de administração do desporto – esta última, também na fiscalização e certificação dos clubes formadores – exigindo-se o cumprimento dos pressupostos descritos no §2º, do art. 29, da Lei nº 9.615/98, ou seja, alojamento plenamente hígido, seguro e adequado, sobretudo em termos de alimentação, higiene e salubridade, com corpo de profissionais não apenas para a formação técnico-desportiva, porém com estrutura voltada à educação da criança. Não se pode olvidar o ensinamento das noções essenciais de cidadania, respeito ao próximo, ao ambiente em que vivem e a natureza de uma forma geral.

Se isso acontecer, cada jovem que participar desses projetos sairá – como atleta profissional ou não – certamente um ser humano melhor, afinal de contas lhe teria sido ensinado a amar e a bem conviver no plano coletivo e de consciência social!

Na prática, todo projeto sério de divisões de base e escolinhas de futebol deve ser ao mesmo tempo bem recebido e acolhido, porém fiscalizado e cobrado. Trabalhos respeitáveis devem ser exaltados e encarados com um olhar distinto, porquanto as agremiações que se esforçam e cumprem as diretrizes protetivas legais, em verdade acabam preenchendo um hiato deixado pelo Estado, considerando que boa parte dos adolescentes integrados nestes projetos são vulneráveis socialmente e certamente não terão acesso ao acompanhamento escolar, nutricional e psicológico adequados se comparados à estrutura que dispõem no ambiente da formação desportiva.

O desenvolvimento das atividades figura como elemento extremamente necessário no contexto da inclusão social e na própria proteção das crianças contra a violência urbana, tráfico de drogas e evasão escolar, embora eventualmente projetos sérios possam apresentar falhas ou lacunas importantes, daí a necessidade de integração e fiscalização para que tudo seja realizado de modo absolutamente eficaz e seguro.

Deve-se fiscalizar para evitar a exploração e a própria proteção aos jovens, porém sem retirar a importância do aprendizado para a manutenção da capacidade de sonhar e até mesmo fazê-los lidar mais próximos com as realidades decorrentes do mercado de trabalho e as frustrações dele decorrentes, afinal de contas o gargalo do esporte é bem estreito e o ambiente extremamente competitivo.

Ainda que alguns desses jovens não venham praticar futura e profissionalmente o esporte, o acesso à assistência educacional, psicológica, médica e odontológica, assim como nutrição adequada e toda preparação técnico-profissional como a que vem sendo prestada por diversos clubes em projetos sérios pelo país – os que não têm seriedade e os que não oferecem segurança, não podem continuar operando – dará melhor possibilidade de inserção no mercado de trabalho em outras atividades, inclusive, fora do contexto desportivo.

Portanto, as escolinhas não apenas de futebol, porém, de diversas modalidades esportivas, inclusive olímpicas como judô e natação, além dos clubes com projetos de formação desportiva, podem e devem ocupar espaço na vida das crianças em geral, principalmente as mais carentes, propiciando o contato com aprendizado esportivo, integrativo, educacional e recreativo. Com responsabilidade e respeito!

Em épocas estranhas, inclusive de revisionismos históricos de momentos sombrios do passado, não custa finalizar, lembrando as lições de um dos mais renomados e reconhecidos educadores do mundo que sempre cultivou a habilidade de sonhar:

Ai daqueles que pararem com sua capacidade de sonhar, de invejar sua coragem de anunciar e denunciar. Ai daqueles que, em lugar de visitar de vez em quando o amanhã pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e o agora, se atrelarem a um passado de exploração e de rotina” – Paulo Freire

Precisamos de profundo engajamento hoje para encontrar soluções que coloquem os jovens num amanhã ainda mais integrativo, protetivo, participativo e, ao mesmo tempo, inclusivo. Isso certamente refletirá de modo extremamente positivo no nascimento de sucessivas gerações de atletas profissionais responsáveis e virtuosos.

Um sonho possível!


¹Advogado, Especialista em Direito Desportivo, Vice-Presidente do IDDBA – INSTITUTO DE DIREITO DESPORTIVO DA BAHIA, Vice-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-SE, Membro do IBDT – Instituto Baiano de Direito do Trabalho, Membro da Comissão de Direito Desportivo da ABRAT – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ADVOGADOS TRABALHISTAS.