Filipe Orsolini Pinto de Souza¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)
No último dia 04/11/2019, a FIFA divulgou a decisão² proferida pelo Players’ Status Committee em 25/09/2019, no caso envolvendo a transferência do jogador argentino Emiliano Raul Sala do FC Nantes, da França, para o Cardiff City FC, do País de Gales, pelo valor de EUR 17.000.000,00.
Como se sabe, o futebolista foi vítima fatal de um acidente aéreo no Canal da Mancha, justamente quando deixava a cidade francesa para se juntar ao novo clube, em 21 de janeiro de 2019, o que trouxe bastante expectativa acerca da decisão.
Dois dias antes do ocorrido, FC Nantes e Cardiff City FC tinham assinado o Contrato de Transferência envolvendo o jogador argentino, sendo que os EUR 17.000.000,00 pactuados seriam pagos em três parcelas, a primeira no valor de EUR 6.000.000,00, no prazo de 05 dias após o registro do jogador pelo Cardiff City FC, a segunda no valor de EUR 6.000.000,00, em 01/01/2020, e a terceira no valor de EUR 5.000.000,00, em 01/01/2021. Os clubes ainda pactuaram que o Cardiff City FC pagaria ao FC Nantes “bônus de promoção”, vinculado aos resultados da equipe galesa na Premier League das temporadas de 2018/2019, 2019/2020 e 2020/2021.
Na ocasião do falecimento de Emiliano Sala, o Contrato de Transferência já havia sido assinado entre os clubes, mas os valores pactuados ainda não eram devidos, pois ainda vincendos.
O Cardiff City FC se posicionou no sentido de não efetuar o pagamento da primeira parcela vinculada ao registro do jogador e o FC Nantes, por se julgar no direito de recebê-la, também as parcelas vincendas e o bônus de promoção, procurou o FIFA Players’ Status Committee, em 26/02/2019, para pleitear os respectivos pagamentos, além das demais sanções aplicáveis.
Na opinião do FC Nantes, as condições contratualmente previstas para a conclusão da operação tinham sido cumpridas e, portanto, o preço de transferência seria devido.
O clube francês esclareceu que Emiliano Sala havia sido aprovado pelo Cardiff City FC nos exames médicos realizados em 18/01/2019, ensejando a rescisão do contrato de trabalho mantido entre a equipe francesa e o jogador argentino, com o devido registro na Liga de Futebol Profissional, da França, em 19/01/2019.
Na mesma data da rescisão, o Cardiff City FC tinha anunciado oficialmente a assinatura do contrato de trabalho com Emiliano Sala, que efetivou seu registro junto a Associação de Futebol do País de Gales, no dia 21/01/2019.
Entre discussões preliminares sobre a competência para julgar o caso, o Cardiff City FC pleiteou que o procedimento fosse suspenso até o relatório final da agência de investigação de acidentes aéreos, a conclusão das apurações criminais relativas ao acidente aéreo e a conclusão das ações civis eventualmente movidas pelo clube galês relacionadas a organização do voo contratado para transportar o jogador argentino.
Ao enfrentar o mérito, propriamente, o Cardiff City FC alegou a invalidade do Contrato de Transferência e a responsabilidade do FC Nantes pela trágica ocorrência.
No que diz respeito a validade do Contrato de Transferência, a equipe galesa alegou que não houve expedição válida de Certificado de Transferência Internacional – CTI do jogador e que não teria concluído o Contrato de Trabalho com Emiliano Sala. Segundo o Cardiff City FC, o Contrato de Trabalho que havia assinado com o jogador em 18/01/2019 tinha sido considerado inválido pela Premier League, de acordo com seus regulamentos, e, portanto, não registrado, afastando as obrigações financeiras da transferência.
Sobre a responsabilidade do FC Nantes pelas circunstâncias que culminaram no acidente aéreo, os galeses alegaram que o voo foi organizado pelo agente do jogador por ordem do clube francês e, se existiam irregularidades em relação às licenças da empresa contratada, os responsáveis pela contratação deveriam responder pelas consequências financeiras derivadas, inclusive o preço da transferência do jogador vitimado.
Ao iniciar as suas considerações sobre o litígio, o Players’ Status Committee fez questão de enfatizar que a disputa entre o FC Nantes e o Cardiff City FC envolve circunstâncias trágicas, que vitimou um jovem talentoso, e que isso seria observado ao longo da tramitação, a despeito da existência de um contrato assinado. No mesmo sentido, a decisão, expressamente, lamenta que os clubes envolvidos não puderam resolver amigavelmente as pendências, justamente em um caso tão sensível.
De plano, foram rejeitadas as arguições preliminares do Cardiff City FC em relação à incompetência do Players’ Status Committee, bem como indeferido o pedido de suspensão do feito até a conclusão das apurações civis e criminais, por não se relacionarem com a disputa contratual apresentada.
Passando ao mérito, o Players’ Status Committee reitera a sua sensibilidade em relação ao caso, que, a despeito do trágico acidente aéreo, envolve natureza puramente contratual, razão pela qual quaisquer decisões sobre responsabilidade civil ou criminal devem ser tomadas pelas autoridades competentes, sem influenciar as responsabilidades advindas do Contrato de Transferência celebrado entre as partes, ao menos por ocasião deste julgamento. Em outras palavras, todas as questões relativas ao acidente aéreo, incluindo a contratação da empresa responsável pelo voo, são irrelevantes para análise do pacto subscrito pelos envolvidos, os seus direitos e deveres.
A outra objeção trazida pelos galeses a ser dirimida pelo Players’ Status Committee se relaciona a validade do contrato de transferência. O Cardiff City FC afirma ser inválido, enquanto o FC Nantes exige o seu cumprimento.
Sobre o tema, o Players’ Status Committee reconhece que a sua validade estaria vinculada ao preenchimento de quatro requisitos, a saber, a aprovação do atleta nos exames médicos, a rescisão do contrato de trabalho por comum acordo entre o clube francês e o jogador argentino, o registro da referida rescisão na Liga de Futebol Profissional, da França, e, a questão mais controvertida, a efetivação do registro do jogador pelo Cardiff City FC com a expedição do CTI.
Embora o Cardiff City FC tenha alegado que o registro do jogador teria sido recusado pela Associação de Futebol do País de Gales e, por isso, o CTI não teria sido emitido, o Players’ Status Committee concluiu que os galeses sempre agiram com intenção de registrar o atleta argentino, mas isso não se aperfeiçoou por uma omissão do próprio clube, ou melhor, a negativa de registro se deu em razão de equívoco do Cardiff City FC ao apresentar os documentos à sua federação.
Não poderia, portanto, uma questão formal e doméstica entre clube e federação constituir óbice ao exercício de um direito de terceiros, no caso o FC Nantes, previsto em contrato.
Além disso, a transferência de Emiliano Sala da Federação Francesa de Futebol para a Associação de Futebol do País de Gales foi concluída na plataforma do Transfer Matching System – TMS às 17:30, do dia 21/01/2019, não restando qualquer dúvida acerca da validade do Contrato de Transferência celebrado entre as partes.
Enfrentados todos os argumentos invocados pelas partes, o Players’ Status Committee, lastreado no pacta sunt servanda, determina que o Cardiff City FC pague a primeira parcela devida ao FC Nantes, no valor de EUR 6.000.000,00, acrescida de juros de 5% ao ano, desde o seu vencimento, após 05 dias do registro do atleta pelo clube galês, sob pena das sanções regulamentares previstas. Sobre as parcelas vincendas e os bônus pactuados, o Players’ Status Committee entendeu que não poderia se manifestar, por ainda não estarem vencidos.
Por derradeiro, o Players’ Status Committee esclareceu que as custas seriam fixadas em CHF 25.000,00, de acordo com as regras procedimentais, mas, em razão das trágicas circunstâncias da disputa, optou, excepcionalmente e por unanimidade, por afastar a cobrança.
Da decisão, cabe recurso à Corte Arbitral do Esporte.
Embora as perspectivas indicassem que a FIFA se basearia nas condições contratualmente estabelecidas para decidir a disputa entre FC Nantes, da França, e o Cardiff City FC, do País de Gales, naturalmente que havia bastante expectativa em torno da decisão, justamente por envolver o trágico acidente aéreo que vitimou o argentino Emiliano Raul Sala e exigir, naturalmente, habilidade e sensibilidade dos julgadores.
¹ Mestre em Direito Desportivo Internacional pelo Instituto Superior de Derecho y Economia – ISDE (Espanha), Pós-Graduado em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP, Pós-Graduado em Direito Empresarial pela FGV, graduado pela FACAMP – Faculdades de Campinas, Participante do Programa de Negociação da Harvard Law SchoolExecutiveEducation, Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB Subsecção Campinas/SP, membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Seção São Paulo, Conselheiro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, membro do ISDE Sports Law Alumni e Membro da AssociationInternationaledesAvocatsdu Football – AIAF. Advogado Sócio de Brocchi e Souza Sociedade de Advogados.
² https://resources.fifa.com/image/upload/player-emiliano-sala.pdf?cloudid=zz1mucunt6ydvrzqrqdw