Thomaz Sousa Lima Mattos de Paiva¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)
Desde os primórdios do esporte nos moldes em que conhecemos, o doping (ou dopagem), dentro do sentido etimológico da palavra, vem sendo fundamentado através da fraude em se obter vantagem em detrimento aos demais participantes, utilizando-se de substâncias consideradas proibidas para a prática esportiva. Na língua inglesa, o ato de se dopar foi consolidado no verbo “to cheat”, que significa trapaça, fraude, enganação.
Em função da ofensa aos bens jurídicos protegidos do esporte, insculpidos na Carta Olímpica pela prática do doping, o combate a este modelo de fraude desportiva teve o seu ápice quando da inclusão no Código Mundial Antidoping de 2015 elaborado pela WADA² (CMAD), do conceito que caracteriza o ato de se dopar intencionalmente, dentro da premissa da trapaça e obtenção de vantagem ilícita. Diz o CMAD de 2015, em seu artigo 10.2.3:
10.2.3 No contexto dos Artigos 10.2 e 10.3, o termo “intencional” é usado para identificar os Atletas que trapaceiam. O termo, portanto, requer que o Atleta ou outra Pessoa envolvida em um comportamento que sabia que constituía uma violação de regra antidopagem, ou sabia que havia um risco significativo que a conduta pudesse constituir ou resultar em uma violação de regra antidopagem e claramente desconsiderou este risco. ³
Tal definição “a priori”, enquadrou de forma apropriada a questão, objetivando assima ampliação do combate ao doping no esporte, buscando ainda fragmentar e destruir todo o establishment que se perpetua ao redor da fraude, que não se resume tão somente a um atleta fraudador. Com essa nova abordagem e percepção dos organismos antidoping, intensificaram-se as ações fora do âmbito esportivo, tendo uma participação mais efetiva do lawenforcement para a descoberta de esquemas de fraude envolvendo técnicos, patrocinadores, dirigentes e até mesmo de países que deram suporte a estes propósitos com o único objetivo defraudar as competições[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4].
Não obstante a tudo isso, os anos posteriores ao Código de 2015 ainda demonstraram a necessidade de um maior incremento ao combate a este establishment pernicioso que ainda vige nos dias de hoje. Todavia, na revisão do referido diploma acontecida agora em 2019 e que entrará em vigor em 1º de janeiro de 2021, os Stakeholders signatários do CMAD promoveram mais uma vez uma mudança em seu artigo 10.2.3, desconstruindo o termo “intencional” e excluindo a identificação da intencionalidade com os atletas que trapaceiam. Não satisfeitos, ainda retiraram a vinculação do termo “intencional” das outras violações previstas no artigo 10.3, como era expresso no Código anterior, in verbis:
10.2.3. Conforme usado no Artigo 10.2, o termo “intencional” tem como objetivo identificar os Atletas ou outras Pessoas que se envolvem em conduta que sabiam constituir uma violação da regra antidopagem ou que sabiam que havia um risco significativo de que a conduta pudesse constituir ou resultam em uma violação da regra antidopagem e desconsideram manifestamente esse risco.[5]
No meu entendimento, tal exclusão fere de forma indelével os princípios norteadores do combate à fraude consubstanciada pelo doping no esporte, visto que relativiza as infrações e descaracteriza a conduta trapaceira e fraudulenta. O cerne da cultura do antidoping deve se permear pela exclusão dos verdadeiros fraudadores do mundo esportivo. Tão somente aumentar a gama de infrações com o intuito de caracterizar fatos considerados erroneamente como casos de “doping” não intencionais e involuntários foge a essa premissa.
É ainda ressabido que, a aplicabilidade do Princípio da Common Law da Responsabilidade Estrita Esportiva (Strictliability) como base legal para a definição dos casos de doping juntamente com os exames analíticos, atingem de forma generalizada os casos não intencionais, privando vários atletas não fraudadores de exercerem suas competências, em desacordo aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que regulam as infrações de natureza desportivas.
Ao descontextualizar a fraude, torna-se a conduta infracional grave e intencional como um descumprimento ordinário da regra antidoping e fragiliza a característica conceitual da fraude insculpida quando da instituição do combate ao doping no meio esportivo. Por outro lado, tal concepção tão somente alimenta uma indústria antidoping criada pela WADA baseada no padrão analítico de testes em detrimento aos trabalhos de inteligência e lawenforcement.
Evidencia-se hoje que o padrão analítico de testes é tão somente uma parte do processo para a identificação de um caso de doping intencional e vem se demonstrando, ao longo dos anos, ineficaz para detecção dos reais fraudadores do esporte, como se depreende de vários acontecimentos e pesquisas realizadas pelo mundo[6], não obstante o desenvolvimento tecnológico dos meios de detecção laboratoriais. Conforme se tem demonstrado nos fatos recentes noticiados amplamente pelos meios de comunicação, os casos não analíticos foram a principal fonte de detecção de casos de doping intencionais e fraudulentos (Lance Armstrong, Rússia, IAAF e outros).
Assim, quanto mais se combate a fraude através de ações de inteligência (whistleblowers e outras) em parceria com o poder público nas investigações, mais efetivas são as medidas de repressão, uma vez que tais ações minam de forma eficaz o elo mais forte de uma corrente poderosa que controla o doping no mundo esportivo, onde os atletas são, em sua grande maioria, cordeiros capitaneados por lobos poderosos.
Não se pode dizer, no entanto, que o CMAD de 2021[7] não trouxe mudanças salutares e desejáveis ao meio esportivo. Considero louvável o tratamento mais humanizado e adequado aos casos involuntários e acidentais, assim como aqueles relacionados com as drogas de abuso, dando ênfase maior ao caráter didático e educacional das sanções.
Buscou-se ainda adotar uma abordagem mais eficiente no sentido de ampliar a cultura antidoping no mundo esportivo, com incentivos e deveres atribuídos aos stakeholders objetivando uma maior difusão dos aspectos educacionais do combate ao doping. Contudo, a ausência injustificada do conceito da fraude no CMAD de 2021 foi notada e sentida especialmente pelos atletas, não tendo nem mesmo a inclusão no Código de condições agravantes para sanções de condutas infracionais intencionais o poder de supri-la.
Em conclusão, entendo, salvo melhor juízo, que a definição da fraude desportiva positivamente inserida no CMAD é princípio pétreo e fundamental para fortalecer e consolidar os objetivos precípuos de proteção ao esporte limpo, transmitindo assim a mensagem de que a erradicação do doping passa pelo efetivo combate à trapaça e a seus perpetradores, separando assim, de forma peremptória, os casos intencionais dos não intencionais.
Com a perda do contexto da fraude, o conceito acima se esvai, ficando ainda prejudicada a compreensão, também ausente no CMAD, do entendimento que considero mais importante em termos de aplicabilidade de Direitos Humanos para casos de infrações não intencionais: Não mais tratar os atletas relacionados com estes casos como “dopados”, posto que definitivamente não se enquadram a esta malsinada tipificação, não merecendo, portanto, um tratamento tão prejudicial à sua carreira e vida pessoal.
¹ Advogado especializado em casos de doping no esporte, Consultor da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) para assuntos de doping, Conselheiro do IBDD.
² World Anti-doping Agency
³ 10.2.3 As used in Articles 10.2 and 10.3, the term “intentional” is meant to identify those athletes who cheat. The term, therefore, requires that the athlete or other Person engaged in conduct which he or she knew constituted an anti-doping rule violation or knew that there was a significant risk that the conduct might constitute or result in an anti-doping rule violation and manifestly disregarded that risk. (World Anti-doping Code 2015 – English version)
[4]Vide o escândalo do esquema de doping na Rússia e todas as suas consequências. Sugestão de leitura: Artigo: “O Caso Rússia e as Incertezas do Esporte na Área de Dopagem – Todos Tem Uma Parcela de Responsabilidade” – Revista Brasileira de Direito Desportivo – IBDD – vol. 28, 2016, Ed. Magister.
[5]Tradução livre. Texto original:10.2.3. As used in Article 10.2, the term “intentional” is meant to identify those Athletes or other Persons who engage in conduct which they knew constituted an anti-doping rule violation or knew that there was a significant risk that the conduct might constitute or result in an anti-doping rule violation and manifestly disregarded that risk.
[6]https://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/mais-de-40-dos-atletas-sob-sigilo-admitem-usar-doping-testes-flagram-2.ghtml
[7]https://www.wada-ama.org/sites/default/files/resources/files/2021_code.pdf
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