A disciplina dos árbitros desportivos
por José Manuel Chabert – Jurista
Em 3 de Agosto de 1999 foi publicada a Lei nº 112/99 que aprova o novo regime disciplinar das federações desportivas.
Tal diploma, actualmente muito debatido na comunicação social, contém um conjunto de normas que visam sancionar, em particular, certos comportamentos dos árbitros, nomeadamente de futebol, por forma a garantir a verdade e transparência das competições desportivas que dirigem.
A APAF, associação representativa dos árbitros de futebol, tem vindo a insurgir-se contra este diploma, alegando, em suma, que o mesmo levanta a suspeição sobre os árbitros e esquece os demais agentes desportivos, pelo que pretende que a referida Lei seja urgentemente revista.
A nosso ver, toda esta discussão repousa sobre alguns equívocos que importa clarificar, por forma a que fique claro, para todos, o que aqui está verdadeiramente em causa.
Em primeiro lugar, convirá salientar que não é exacto que o legislador só tenha em vista os árbitros quando pretende combater a corrupção no fenómeno desportivo.
Com efeito, a corrupção na arbitragem é sancionada a dois níveis: no plano penal e no plano disciplinar.
No plano penal estabelece o Decreto-Lei nº 390/91, de 10 de Outubro que o árbitro que solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, que não lhe sejam devidas, como contrapartida de acto ou omissão destinados a alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva, será punido com pena de prisão até quatro anos. E, acrescenta o mesmo diploma, que incorre na mesma pena o dirigente, treinador ou outro agente desportivo que pratique aqueles actos.
Ou seja: em termos de sancionamento penal, a lei é exactamente igual, quer se trate de árbitros, quer de dirigentes ou treinadores, quer de qualquer outro agente desportivo.
Em termos de sancionamento disciplinar, por seu turno, as coisas passam-se exactamente da mesma forma.
Com efeito, o art.º 7º da Lei nº 112/99, de 3 de Agosto, veio estabelecer que os árbitros ou juízes que solicitem ou aceitem, para si ou para terceiros, directa ou indirectamente, quaisquer presentes, empréstimos, vantagens ou, em geral, quaisquer ofertas susceptíveis, pela sua natureza ou valor, de pôr em causa a credibilidade das funções que exercem, serão punidos com a pena de suspensão do exercício de todas as funções desportivas, por um período a fixar entre dois e dez anos. E incorrem, exactamente na mesma pena, os dirigentes, ou outros agentes desportivos que participem, ou declarem ter participado, em actos de corrupção da arbitragem.
Onde está, então, a diferença de tratamento entre os árbitros e os demais agentes desportivos que está na base da contestação à Lei nº 122/99?
Está no registo de interesses.
Para se alcançar a verdadeira dimensão do problema é preciso ter presente que o legislador tinha bem presente, entre outros, dois aspectos deste combate à corrupção na arbitragem.
O primeiro tem que ver com a circunstância de que, a haver corrupção, é sobretudo nas competições profissionais que ela se poderá manifestar com mais facilidade. É aí, mais do que em qualquer outro tipo de competições, que os interesses económicos são mais elevados; é aí que circula muito mais dinheiro; é aí que os clubes participantes têm mais interesses.
Basta recordar que, nos termos da lei, são competições profissionais, em Portugal, as das duas primeiras divisões nacionais de futebol (campeonato gerido pela Liga Profissional de Futebol) e a primeira divisão nacional do basquetebol (campeonato igualmente gerido pela Liga de Basquetebol).
O segundo aspecto, tem que ver com a circunstância de que nem sempre é fácil provar enriquecimentos ilícitos por parte dos árbitros, sendo do conhecimento público as muitas e encapotadas formas de favorecer um árbitro.
Por isso, o legislador lançou mão do “registo de interesses”, ou seja, obrigou os árbitros, que participem em competições profissionais, a declarar e inscrever, em livro próprio, existente nas respectivas federações, o seu património, bem como todas as situações profissionais e patrimoniais relevantes, registo esse que deve ser anualmente renovado e através do qual se poderá acompanhar a evolução da respectiva situação. E acrescentou que, se se vierem a verificar falsidades nesse registo, o árbitro em causa seria suspenso entre um a cinco anos.
Ora bem: é precisamente contra este registo, o denominado registo de interesses, que se levantaram os árbitros.
E o facto é significativo. Com efeito, assim se ficou a saber qual das normas, ou melhor, quais dos mecanismos postos de pé para combater a corrupção na arbitragem, mais incomoda os visados!
Percebe-se que este registo de interesses tenha sido consagrado apenas para os árbitros – e apenas contra os que actuam nas competições profissionais.
É que é preciso não escamotear a questão. De todos os agentes desportivos (árbitros, praticantes, treinadores, dirigentes, etc…), o único grupo que está em condições de ser um habitual protagonista em situações de corrupção, o único de cuja actuação dependem, semanalmente, os resultados desportivos, é precisamente o dos árbitros. São eles que dirigem os jogos, são eles que podem influenciar os resultados, são eles que o podem fazer com regularidade e são, portanto, eles, que os clubes procuram normalmente aliciar.
Numa palavra: os árbitros exercem, no quadro do fenómeno desportivo, específicas funções de autoridade, pelo que há que acautelar a transparência das suas actuações.
E não faz qualquer sentido sustentar que, uma vez que qualquer agente desportivo pode ser corrompido, todos os agentes desportivos deveriam ser obrigados ao registo de interesses.
Por esta lógica, em vez de se obrigarem os políticos (membros do Governo, deputados) a declararem o seu património (como actualmente se faz), dever-se-iam obrigar todos os cidadãos portugueses a fazê-lo, com o argumento de que se não pode lançar suspeitas sobre os políticos e qualquer cidadão também pode ser agente (activo ou passivo) de corrupção.
Quem não deve, não teme. E o que temem os árbitros portugueses?