A FIFA E A NOVA REGULAÇÃO DO TRABALHO DOS AGENTES: QUESTIONANDO AS PROPOSIÇÕES DE REFORMA

Leonardo de Oliveira Maximo¹

Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

A janela de transferências do verão europeu de 2016 assistiu a uma transação que ficou célebre por mais de um motivo. Numa operação que atingiu a (até então) inédita monta de 89,3 milhões de libras esterlinas, o jogador Paul Pogba migrava do italiano Juventus para o inglês Manchester United, e firmava-se como a mais cara aquisição já realizada por um clube britânico. Todavia, outra cifra envolvida no negócio contribuiu para sua polêmica notoriedade: a comissão de 41,3 milhões de libras pagas ao agente do atleta, Mino Raiola, por sua participação na operação².

Todo o universo de profissionais e interessados nos bastidores futebolísticos reagiu, de uma forma ou de outra, a este fato. Houve aqueles que celebrassem a astúcia e competência de Raiola, ao passo que muitos bradavam contra sua comissão, que correspondeu a quase metade da avença. De fato, o astronômico valor percebido pelo agente italiano reacendeu uma discussão que se manifesta com frequência na seara dos negócios desportivos: os empresários de futebol ganham dinheiro demais? Sua remuneração é justa? Sua atividade é predatória ao sistema como um todo?

Estas perguntas constituem consternação habitual da FIFA, que tem, ao longo dos últimos anos, vertido sua atenção às dinâmicas regulatórias da atuação dos profissionais de agenciamento/intermediação. Cite-se, a esse respeito, a drástica alteração realizada pela entidade em 2015, quando decidiu extinguir sua relação direta com os até então agentes FIFA e criar, por meio dos Regulations on Working with Intermediaries, a novel sistemática de trabalho dos intermediários. Tal novo método de trabalho foi chamado, pelo mercado em geral, de desregulamentação da profissão.

Não obstante, meros cinco anos após a referida desregulamentação, a FIFA muda novamente de orientação e publica em seu site, em 22.01.2020, um anúncio formal acerca de uma série de novas diretrizes que estabelecerá para o trabalho dos agentes³. Segundo a entidade, “O objetivo geral aqui é melhorar a transparência, proteger o bem-estar do jogador, aumentar a estabilidade contratual e também elevar os padrões profissionais e éticos. Ou seja, eliminar ou pelo menos reduzir as práticas abusivas e excessivas que infelizmente existem no futebol.”[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]

As mutações regulatórias foram elencadas com clareza por Filipe Orsolini Pinto de Souza, em excelente artigo publicado nesta coluna em maio/2020[5], e são as seguintes, na lição do eminente doutrinador:

  • Estabelecimento de teto para as comissões dos agentes (sobre os quais nos deteremos a seguir);
  • Retorno do sistema obrigatório de licenciamento de agentes, com medidas educacionais e de desenvolvimento profissional continuado;
  • Limitação à múltipla representação para evitar conflito de interesses (cabendo exceção somente quando um mesmo agente representar clube comprador e atleta);
  • Realização do pagamento de comissões por meio do FIFA Clearing House (câmara de compensação);
  • Criação de um efetivo sistema de resolução de disputas entre agentes, jogadores e clubes.

As propostas anunciadas acabam de ser convertidas em texto regulamentar, ainda não divulgado, que tinha previsão de publicação oficial no corrente mês de setembro/2020. Todavia, não há data exata estabelecida para tal apresentação, especialmente em função da pandemia de COVID-19, que certamente abalou inúmeros planejamentos da FIFA. A entidade vem frisando que a elaboração do novo regulamento se deu em consonância com todos os interessados do mundo do futebol – dentre eles, representantes dos agentes.

Dentre as alterações anunciadas, certamente a mais controversa refere-se à limitação à remuneração dos agentes, com imposição dos seguintes limites máximos obrigatórios:

  • agente atuando pelo clube vendedor: comissão de 10% sobre o montante pago a título de transfer fee;
  • agente atuando pelo clube comprador: comissão equivalente a 3% do salário contratual do jogador;
  • agente representando o jogador: comissão equivalente a 3% do salário contratual do jogador.

No único cenário permitido de dupla representação (ou seja, com o agente representando tanto jogador quanto para o clube comprador), o limite das comissões será definido em 6%, correspondendo à soma de duas comissões de 3% do salário do atleta.

Em resposta às propostas anunciadas, a Associação de Agentes de Futebol (instituição sediada na Grã-Bretanha) observou que “não podemos aceitar quaisquer regulamentos que estabeleçam um limite para nossos honorários ou restrinjam nossa liberdade de agir por qualquer parte em uma transação” e classificou os regulamentos de “ilegais e anticompetitivos” [6]. Diversas outras entidades já se manifestaram no sentido de que, caso seja necessário, recorrerão a órgãos judiciais, especialmente no continente europeu, para questionar juridicamente a validade dos regulamentos.

De fato, a FIFA não se deu ao trabalho de explanar, em momento algum, como chegou aos malsinados 3%. Não há qualquer elucidação, por parte da entidade, sobre o raciocínio empreendido para arbitrar tal percentual. Cumpre notar que, em caso de vultosas transações – que são a minoria absoluta das operações realizadas –, 3% do montante envolvido pode até traduzir-se em remuneração elevada para o agente. Mas na grande parte dos negócios cotidianos de transferência, que ocorrem em faixas monetárias muito mais modestas, os referidos 3% representarão um ganho pouquíssimo significativo, o que provavelmente fará com que inúmeros agentes deixem a profissão, por não encontrar nela uma fonte sustentável de subsistência.

Assim, se o objetivo da FIFA era coibir injustiças como a que muitos consideraram ocorrer no episódio Raiola/Pogba, parece-nos que o que se verificará será exatamente o oposto: um fortalecimento dos agentes de maior poderio econômico, envolvidos em grandes transações – pois lograrão sobreviver com comissões de 3% -, concomitante com o desaparecimento dos agentes de atuação mais módica, que não mais extrairão da profissão seu sustento.

Sobre a possibilidade de questionamento judicial dos novos regulamentos, passemos à seguinte análise: o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) já apreciou, no passado, o papel das associações desportivas no estabelecimento de regras relativas à organização do desporto ou à prestação de serviços acessórios a ele, como a atividade dos agentes. Analisou também a compatibilidade da regulação sobre tais serviços com os conceitos relevantes do Direito da Concorrência europeu, especialmente aqueles insculpidos nos artigos 101 e 102 do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Ao fazê-lo, o citado tribunal confirmou a aplicabilidade da legislação comunitária do continente aos regulamentos das associações desportivas.

Para avaliar se as medidas de associações como a FIFA violam potencialmente o artigo 101 (1) do TFUE[7], deve-se estabelecer-se cumulativamente que:

  • as regras vigentes da FIFA constituem uma decisão de uma associação de associações;
  • tais regras podem afetar transações entre os Estados-membros da União Europeia;
  • tais regras têm por objetivo ou efeito impedir, restringir ou abalar a concorrência no mercado interno do continente.

A FIFA já foi considerada pelos tribunais europeus como uma associação de associações, e seus regulamentos podem ser considerados como decisões[8].

Em termos do tipo de regra trazido pelas associações desportivas que seria justificável/aceitável, o TJUE já esclareceu que são permitidas regulamentações intimamente relacionadas à organização de eventos desportivos nos aspectos concernentes à justa competição (por exemplo, relativas ao doping).

Nesse sentido, decidiu-se que, mesmo que certas regras antidopagem sejam concebidas como uma decisão de uma associação de associações limitadora da liberdade de ação das partes – logo, sujeitas ao Direito da Concorrência europeu -, ainda assim não constituem necessariamente uma restrição concorrencial nos termos do artigo 101 do TFUE. Isso porque tais restrições são justificadas por um objetivo legítimo[9], indispensável a garantir a organização e conduta adequada de esportes competitivos. Em um caso célebre do TJUE acerca da atividade dos agentes, entendeu-se que as regras estabelecidas para a profissão justificavam-se na medida em que pretendiam “elevar os padrões profissionais e éticos para a ocupação dos agentes dos jogadores, de forma a proteger os atletas, que têm uma carreira curta” [10].

O segundo ângulo a observar em termos de Direito da Concorrência europeu diz respeito ao possível abuso de posição dominante nos termos do artigo 102 do TFUE[11]. Para que o referido artigo seja violado,

  • a FIFA deve ser considerada uma organização que detém posição dominante no mercado interno;
  • as regras em questão devem afetar as transações entre os Estados-membros da União Europeia;
  • é necessário estabelecer um abuso da alegada posição dominante da FIFA.

No que concerne ao artigo 102 do TFUE, a 1ª instância do TJUE já decidiu que a FIFA, sendo uma organização que rege centenas de associações internacionais de futebol, detém de fato posição dominante no mercado dos serviços dos agentes. No entanto, considerou que os regulamentos da entidade não impõem restrições quantitativas ao acesso dos agentes à profissão que sejam hábeis a ferir a concorrência. O entendimento do tribunal é que as restrições são apenas qualitativas e justificáveis. Logo, os regulamentos não constituiriam abuso da posição dominante da FIFA na hipótese vertente.

A questão é: estas mesmas conclusões ainda seriam válidas em relação aos novos regulamentos, especialmente à limitação aos percentuais de comissão? O TJUE já deliberou, no passado, que o exame da substância de regulações do desporto à luz do Direito concorrencial europeu deve ser examinado caso a caso[12]. Decidiu também que a análise do teor dos regulamentos levará em consideração o contexto geral e a legitimidade de seus objetivos, assim como se os efeitos da regulação são indispensáveis à consecução dos objetivos da entidade e proporcionais aos mesmos.

Vê-se, do exposto, que há pouca dúvida de que o Direito da Concorrência europeu é aplicável aos regulamentos FIFA sobre os agentes, uma vez que estes terão impacto direto nas condições das transações no mercado interno do continente[13]. O fato de a entidade propor a aplicação de limites compulsórios às comissões levanta a questão de se saber em que medida tais disposições são compatíveis com os artigos 101 e 102 do TFUE, o que somente poderá ser verificado uma vez que os regulamentos sejam efetivamente publicados, e uma vez que sejam questionados perante o TJUE.

O clima atual, porém, indica grande inclinação para tanto por parte de entidades representativas dos agentes, tais como a European Football Agents Association (EFAA), organização supranacional fundada em 2007, que reúne 18 associações em todo o mundo e conta com estrelas como Jonathan Barnett e Jorge Mendes entre seus membros. AEFAA argumenta que a severidade do limite, aliada à ânsia dos clubes em contratar os melhores jogadores, apenas encorajará o mercado a desenvolver medidas cada vez mais elaboradas para contornar as novas regras[14] – quer a FIFA queria, quer não.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.


¹Advogado. Especialista em Direito de Empresa, Direito dos Contratos e Direito Desportivo. Mestre em Marketing for Global Business (London School of Business and Finance). Sócio Fundador da Movement Football Management. Chief Commercial Officer da E-Flix. Coordenador da Pós Graduação em Negócios do Esporte e Direito Desportivo do CEDIN. Coordenador regional do IBDD em MG. Membro do Conselho da IBA Académie du Sport. Palestrante convidado da Harvard Extension School (EUA) e da Université Jean Moulin (França).

²LAWTON, Matt. Mino Raiola insists his £41m cut from Paul Pogba’s move from Juventus to Manchester United was clean. The Daily Mail, Londres, 10.05.2017. Disponível em: < https://www.dailymail.co.uk/sport/football/article-4493678/Mino-Raiola-insists-41m-Paul-Pogba-cut-clean.html >. Acesso em: 09.09.2020.

³Reform proposals concerning football agents’ regulations. FIFA, 2020. Disponível em: < https://www.fifa.com/who-we-are/news/reform-proposals-concerning-football-agents-regulations>. Acesso em: 05.09.2020

[4] Op cit

[5] SOUZA, Filipe Orsolini Pinto de.A FIFA e o retorno dos agentes. Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, São Paulo, 14.05.2020. Disponível em: < https://ibdd.com.br/a-fifa-e-o-retorno-dos-agentes/>. Acesso em: 10.09.2020

[6] PANJA, Tariq. Agent group solicits donations to sue FIFA over transfer limits. The New York Times, Nova Iorque, 27.09.2019. Disponível em: < https://www.nytimes.com/2019/09/27/sports/fifa-agents-transfer-window.html >. Acesso em: 10.09.2020.

[7] “Art 101(1): All agreements between undertakings, decisions by associations of undertakings and concerted practices which may affect trade between Member States and which have as their object or effect the prevention, restriction or distortion of competition within the internal market””

[8] ANTONOV, Giorgi. Is FIFA fixing the prices of intermediaries? An EU competition law analysisAssler Insternational Sports Law Blog, 2015. Disponível em: < https://www.asser.nl/SportsLaw/Blog/post/the-new-fifa-regulations-for-intermediaries-and-the-recommended-maximum-remuneration-an-eu-competition-law-analysis-by-georgi-antonov-asser-institute >. Acesso em: 09.09.2020.

[9] Judgement of the Court – Meca/Medina. InfoCuria, 2006. Disponível em: < http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=57022&doclang=en >. Acesso em: 06.09.2020

[10] MARMAYOU, Jean-Michel. EU law and principles applied to FIFA regulations. International sports law and policy bulletin, 2015 (1), SLPC, pp.71-107, 2015. Disponível em: < https://hal-amu.archives-ouvertes.fr/hal-01310573/document >. Acesso em: 07.09.2020

[11] “Art 102: Any abuse by one or more undertakings of a dominant position within the internal market or in a substantial part of it shall be prohibited as incompatible with the internal market in so far as it may affect trade between Member States”

[12] Op. Cit

[13] CRONIN, Ben. Will Fifa’s cap on commissions curb agent ‘excesses’? Sport Business, 2020. Disponível em: < https://www.sportbusiness.com/2020/02/will-fifas-commission-cap-curb-agent-excesses/>. Acesso em: 04.09.2020.

[14] WAUTERS, Jasper. The FIFA reform package on football agents: ready for regulation or looking for litigation?

 White &Case, 2020. Disponível em: < https://www.whitecase.com/publications/alert/fifa-reform-package-football-agents-ready-regulation-or-looking-litigation>. Acesso em: 03.09.2020.

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