A JUSTIÇA DESPORTIVA DISCUTIDA NAS RODAS POPULARES

Wanderson Martins Rocha¹

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)

É fato que nossa sociedade tem mudado muito e com os avanços da tecnologia, a rapidez na divulgação das informações deixou de lado o desconhecimento e a ignorância e a cada dia forma opiniões nas mais variadas áreas, até mesmo naquelas que antes eram reservadas para poucos.

O conteúdo das discussões nas mesas de bares, filas de bancos, pontos de ônibus, já não é mais o mesmo, atualmente com a mencionada evolução tecnológica passou-se a debater as tão afastadas decisões judiciais  e a sociedade se familiarizou com expressões como: julgamentos em 1ª e 2ª instância, embargos de declaração, habeas corpus, cumprimento de pena, presunção de inocência e nomes como Marcos, Fux, Gilmar e Lewandowski (não aquele jogador do Bayern de Munique), que hoje fazem parte da seleção do Supremo Tribunal Federal e passaram a ser conhecidos por todas as classes sociais.

Já o futebol, por ser uma paixão nacional, sempre teve  apaixonados que gostavam de comentar, discutir e dar suas opiniões sobre os nomes dos jogadores escalados, esquemas táticos, erros de arbitragens que agora se aventuram a discutir e opinar também no campo jurídico, e não me refiro a lei do impedimento, mas sim sobre as decisões dos Tribunais Desportivos.

A mídia especializada, passou a divulgar manchetes sobre súmulas dos jogos, sobre os relatórios dos árbitros, dando destaque a eventuais  infrações disciplinares relatadas, antes mesmo das denúncias, inclusive sobre as penas aplicáveis ao caso, dando assim, inflamando as discussões independentemente do posterior resultado dos julgamentos.

Para colaborar com os “botequeiros” trago um resumo do procedimento que é adotado pela Justiça Desportiva. 

Para não fugir do embasamento legal inicio informando que a Constituição Federal traz em seu artigo 217 que “é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais”. E no que tange a Justiça Desportiva transcrevo os §§ 1º e 2º de referido dispositivo.

“§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.”

O artigo 217 da CF é a base de todo o desporto nacional, e, por interpretação reversa, cria uma Justiça especializada, não estatal e não vinculada ao Poder Judiciário, determinando que sua competência é para processar e julgar ações relativas à disciplina e às competições desportivas.

Antes de adentrarmos ao procedimento, devo-lhes informar que a Justiça Desportiva, conta com alto grau de eficácia e eficiência, é célere, especializada e obedece com rigor os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

É bem semelhante a Justiça comum e composta por auditores (juízes), por procuradores (ministério público), denunciado (réu), secretaria e auxiliares administrativos, obedecendo a diversos princípios basilares de um Estado Democrático de Direito.

Lembrando que na Justiça Desportiva o denunciado poderá ser o atleta, clube, treinadores, médicos, membros de comissão técnica, dirigente, árbitros, assistentes de arbitragem e demais pessoas e entidades envolvidas.

Um processo na Justiça Desportiva tem seu início, na maioria dos casos, por meio da análise da súmula do jogo e do relatório dos árbitros, que são os documentos enviados à procuradoria contendo todas as ocorrências da partida, a serem analisados pelo procurador, que após a constatação de alguma infração disciplinar deve oferecer a denúncia.

As infrações disciplinares estão elencadas no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), bem como, no Regulamento da Competição de cada modalidade esportiva, previsões que cumuladas resultam na infração disciplinar punível pela Justiça Desportiva.

Oferecida a denúncia, o denunciado será intimado a comparecer a sessão de julgamento, na qual será dada a oportunidade de apresentar defesa e provas dos atos que lhe são imputados.

Apresentada ou não a defesa, os auditores, após analisar todo o processo, irão julgar e se for o caso adequar a infração cometida à punição prevista no CBJD.

Da decisão proferida pelos auditores cabe recurso, que conforme o caso, poderá ser interposto tanto pela Procuradoria quando pelo Denunciado, ou até mesmo por ambos.

Todas as decisões deverão ser motivas, justificadas e amplamente divulgadas, conforme preconiza a Lei nº 10.671/2003, mais conhecida como Estatuto do Torcedor. 

Bem resumido, é praticamente isso que acontece na maioria dos julgamentos perante a Justiça Desportiva. Simples assim!!!

Narrados dessa forma, vemos pouca margem para grandes e acaloradas discussões, no entanto, os debates ocorridos nas “rodinhas”, têm por base, muitas vezes o conhecimento somente daquilo é divulgado, e convenhamos, a divulgação do simples não “vende” e para chamar a atenção dos expectadores as notícias são dadas da forma que num primeiro momento imaginamos que o denunciado será abolido do esporte.

Com a publicação da decisão do Tribunal podemos ficar surpresos, pois nem sempre a pena aplicada será exatamente da forma que foi discutida, pois o denunciado foi punido apenas com 02 (duas) partidas de suspensão e não com 12 (doze) como imaginávamos.

Para facilitar o entendimento, exemplifico utilizando uma hipotética jogada de uma partida de futebol. Vamos imaginar que numa disputa de bola o jogador A, atinge o com braço no rosto de seu adversário, que fica no chão, sendo necessário inclusive intervenção médica e após poucos cuidados volta normalmente ao jogo.

O jogador A é excluído da partida (recebe cartão vermelho) e a ocorrência é registrada na súmula e relatada no relatório do árbitro.

Obviamente o ocorrido será amplamente discutido nas mídias e programas especializados e o escopo da discussão será que o jogador A, agrediu seu adversário, foi expulso da partida e por isso pode ficar suspenso por até 12 (doze) jogos.

E assim, nosso assunto da semana para os programas de TVs, rádios, cafés, almoços, botecos etc, está garantido.

Passados alguns dias – sim alguns dias, a justiça desportiva prestigia a celeridade que a Constituição Federal exige – recebemos a notícia que o jogador A, aquele que ficamos dias e dias divulgando que ele seria suspenso por vários jogos, que era maldoso, que agrediu seu companheiro de profissão, foi julgado e após o recurso pegou uma suspensão de apenas 2 (duas) partidas, gerando assim, novas e acaloradas discussões e dessa vez inclusive, lamentavelmente, colocando em dúvida a idoneidade dos julgadores.

Essa disparidade pode acontecer e acontece, porque o fato relatado pode ter várias interpretações e seu enquadramento legal pode ser feito em diferentes artigos do CBJD, que variam suas penas conforme o caso.

Vejamos:

Atingir com o braço no rosto do adversário, pode ser interpretada como:

Agressão!!!

Art. 254-A. Praticar agressão física durante a partida, prova ou equivalente.

PENA: suspensão de quatro a doze partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de trinta a cento e oitenta dias, se praticada por qualquer outra pessoanatural submetida a este Código.

§ 1º Constituem exemplos da infração prevista neste artigo, sem prejuízo de outros:

I – desferir dolosamente soco, cotovelada, cabeçada ou golpes similares emoutrem, de forma contundente ou assumindo o risco de causar dano ou lesão ao atingido;

II – desferir chutes ou pontapés, desvinculados da disputa de jogo, de formacontundente ou assumindo o risco de causar dano ou lesão ao atingido

Jogada Violenta!!!

Art. 254. Praticar jogada violenta:

PENA:suspensão de uma a seis partidas, provas ou equivalentes.

§ 1º Constituem exemplos da infração prevista neste artigo, sem prejuízo deoutros:

I – qualquer ação cujo emprego da força seja incompatível com o padrãorazoavelmente esperado para a respectiva modalidade;

II – a atuação temerária ou imprudente na disputa da jogada, ainda que sem aintenção de causar dano ao adversário.

Prática de ato desleal ou hostil!!!

Art. 250. Praticar ato desleal ou hostil durante a partida, prova ou equivalente.

PENA: suspensão de uma a três partidas, provas ou equivalentes, se praticada poratleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de quinze a sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código.

§ 1º Constituem exemplos da infração prevista neste artigo, sem prejuízo de outros:

I – impedir de qualquer forma, em contrariedade às regras de disputa do jogo,uma oportunidade clara de gol, pontuação ou equivalente;

II – empurrar acintosamente o companheiro ou adversário, fora da disputa dajogada.

§ 2º É facultado ao órgão judicante substituir a pena de suspensão pela de advertência se a infração for de pequena gravidade.

Logicamente que vários fatores serão levados em consideração na hora do julgamento, mas é plenamente factível que um atleta apenado nas “rodinhas” com 12 (doze) partidas de suspensão, por agredir o adversário, ao final do julgamento na Justiça Especializada ser condenado a apenas 2 (dois) partidas de suspensão, por ter tido uma atitude desleal ou hostil para com seu adversário.

O exemplo aqui exposto traz à mesa as possibilidades de interpretação e de posicionamentos, que podem ser definidas, após longa e séria instrução probatória, onde todos os envolvidos contribuem com amor e dedicação ao esporte nacional.

Os apaixonados pelos esportes, ao buscarem entender a Justiça Desportiva, poderão assimilar melhor suas decisões e saberão adequá-las ao caso concreto, tendo a certeza que as decisões foram proferidas com impessoalidade, moralidade, celeridade, independência e ainda considerando todos os princípios legalmente exigidos.

Com esse resumo, espero ter trazido às intermináveis discussões, um pouco de embasamento jurídico para que possamos discutir cada vez mais fatos e menos pessoas.

Fica aqui o meu agradecimento a todos que se dedicam a Justiça Desportiva, que por meio de seu conhecimento juris desportivo buscam sempre o melhor para o desporto brasileiro.


¹ Advogado, Sócio da Moises & Rocha Sociedade de Advogados; Coordenador da Comissão de Direito Desportivo da OAB – 102ª Subseção Santo Amaro/SP – Gestão 2016/2018; Presidente do Conselho Fiscal do São Paulo Futebol Clube – Gestão 2017/2019; Auditor e Procurador em Tribunais de Justiça Desportiva;