A NECESSIDADE DE PROFISSIONALIZAÇÃO DA JUSTIÇA DESPORTIVA

Níkolas Salvador Bottós[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][i]

Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

A Justiça Desportiva surge no Brasil em 1942, pós intervenção estatal nos esportes, feita pelo Estado Novo via Decreto-Lei nº. 3.199/1941. Diante da ausência de tribunais disciplinares desportivos, e com inspiração na vizinha Argentina, o antigo Conselho Nacional de Desportos editou a Resolução nº. 4/42, que obrigou a criação de tribunais penais mantidos pelas federações estaduais.

Com o passar dos anos, os antigos tribunais penais evoluíram para Tribunais de Justiça Desportiva, com composição plural e abarcando princípios constitucionais, como a ampla defesa, o contraditório e o duplo-grau de jurisdição. Também por força constitucional, foi reconhecida a sua autonomia e a sua função social, embora de natureza privada e sem ligação com o Poder Judiciário[1].

No presente, a Justiça Desportiva é regulada pela Lei nº. 9.615/98, a Lei Pelé, no Capítulo VII, bem como pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva, em redação dada pela Resolução CNE nº. 29/2009, que garantem a independência e autonomia dos órgãos integrantes, bem como a obrigação de manutenção pelas entidades de administração de desporto regionais e nacionais.

Embora reconheça a função de membro de Tribunal Jusdesportivo como de relevante interesse público, inclusive com abono de faltas no caso de ser exercida por servidor público, toda a legislação inerente ao tema é omissa com relação à remuneração e profissionalização destes.

Aos membros, somente é exigido que possua notório saber jurídico e conduta ilibada[2], o que, na prática, auxilia no trabalho de preenchimento das vagas necessárias para a operacionalização de um Tribunal Jusdesportivo, mas, por outro lado, impacta em decisões rasas e, até mesmo, com flagrantes nulidades, desconectadas do ordenamento jurídico brasileiro. Este último resultado, inclusive, é uma das maiores críticas à Justiça Desportiva atual.

De fato, há uma necessidade premente de qualificação dos membros da Justiça Desportiva. Há também uma escassez de cursos de extensão e pós-graduação sobre o tema, ao passo que ainda engatinha a inclusão da matéria de Direito Desportivo na grade curricular dos cursos de graduação em Direito no Brasil. A demanda, ao que parece, ainda é pequena. Afinal, quem vai investir em cursos para uma função voluntária?

Pois então, a atuação do membro de Tribunal da Justiça Desportiva é totalmente voluntária. Salvo raríssimas exceções, como no Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Catarinense de Futebol, onde o Presidente e o Procurador-Geral possuem uma ajuda de custo mensal, os membros apenas recebem valores à título de ressarcimento de gastos, que não são suficientes na maioria das vezes. Nos Tribunais junto às Confederações e Ligas mais rentáveis, ainda há o pagamento do deslocamento e da hospedagem para as sessões. Noutros, sessões exclusivamente virtuais e sem qualquer tipo de remuneração e/ou ressarcimento pelas horas de trabalho cedidas em prol do Esporte.

De todos os atores do Esporte Brasileiro, o membro do Tribunal de Justiça Desportiva é o único não remunerado, mesmo exercendo um papel relevante para a manutenção do Sistema Brasileiro do Desporto. Muito além de mero órgão de aplicação de penas, os Tribunais de Justiça Desportiva atuam como auxiliares das entidades de administração do desporto na imposição do cumprimento dos regulamentos, gerais e específicos, de competições.

Podemos mirar nossos países vizinhos, onde os Tribunais não são tão organizados como no Brasil. Não é raro ver distúrbios, tumultos, lançamento de objetos em partidas de futebol de campeonatos Sul-Americanos, inclusive nos organizados pela CONMEBOL, ao passo que aqui no Brasil, tal prática diminuiu drasticamente por conta das pesadas penas e multas aplicadas pela Justiça Desportiva.

Ainda, por força de lei, somente após decisão definitiva da Justiça Desportiva, é que as entidades de administração do desporto e de prática desportiva podem aplicar sanções de suspensão e desfiliação ou desvinculação[3].

Temas relevantes, como integridade e manutenção do jogo limpo, seja com o combate à manipulação de resultados ou a antidopagem, este último sob competência da Justiça Desportiva Antidopagem – JAD[4]; combate à homofobia, xenofobia, racismo, sexismo; combate à violência nos estádios; entre tantos outros temas atuais, são resolvidos em processos junto aos Tribunais de Justiça Desportiva.

Mesmo assim, o membro do Tribunal de Justiça Desportiva ainda é tratado como um voluntário. É cobrado, e muito, pela imprensa e pelos apaixonados torcedores, quando uma decisão não lhes é agradável. E em pouquíssimas vezes, vê seu trabalho ser valorizado. Por isso, os bons auditores e procuradores acabam virando advogados especializados no tema, diretores jurídicos de entidades de administração do desporto e de prática desportiva. Ficam os apaixonados, os já estabilizados financeiramente, os iniciantes e, infelizmente, aqueles que não tem outra oportunidade melhor.

É bem verdade, se bem aproveitada, a Justiça Desportiva é uma excelente porta para o Direito Desportivo. Uma grande formadora de novos operadores. Um celeiro de talentos, inclusive na gestão desportiva em geral. Mas, juntos destes grandes nomes que surgem, por vezes aparecem alguns que, novamente infelizmente, não tem condição alguma de julgar temas que podem impactar na vida de milhões, na continuidade da prática desportiva de clubes e atletas, no andamento de competições, na geração de emprego e renda de um setor bilionário.

Exemplo claro é a Justiça Desportiva Antidopagem – JAD, cuja legislação proíbe a remuneração, ao mesmo tempo que cria uma série de restrições para seus membros, que julgarão processos, em sua maioria complexos, podendo aplicar penas de até 30 anos de suspensão. Esses auditores são voluntários, abnegados, que, não raro, decidem se um atleta vai ou não ao Jogos Olímpicos.

Com muita tristeza, vemos uma proposta de Nova Lei Geral do Esporte ser aprovada no Senado sem que a Justiça Desportiva tenha sido tratada com a atenção que merece. Até mesmo o artigo 55 da Lei Pelé, que tratava do reconhecimento da relevância pública da função de membro de Tribunal de Justiça Desportiva foi suprimido na nova redação. Esperamos que tal aberração seja corrigida na Câmara dos Deputados, antes da aprovação final.

Faltou também criar regras mais específicas para o ingresso dos membros nos Tribunais de Justiça Desportiva, com análise de currículo, com necessidade de comprovação de experiência e, se não é interessante cobrar o registro profissional junto à Ordem dos Advogados do Brasil ou o bacharelado em Direito, ao menos criar formas de comprovação do tal “notório saber jurídico”. E, ainda, faltou discutir a remuneração dos membros dos Tribunais, algo omisso tanto na legislação vigente quanto na proposta vindoura.

Fato, independe de regulação legislativa a remuneração dos membros de Tribunal de Justiça Desportiva. A legislação é clara ao conceder autonomia aos órgãos da Justiça Desportiva[5] e obrigar às entidades de administração do desporto e às ligas o seu custeio[6]. Neste sentido, bastaria uma decisão do próprio Tribunal, i.e. na redação do seu Regimento Interno, para criar a remuneração dos seus membros. Por força legal, como dito, as entidades de administração do desporto e as ligas estariam obrigadas a custear.

Entretanto, sabemos que a prática é diferente da teoria. Nem todas as entidades de administração do desporto tem condições de custear um Tribunal de Justiça Desportiva. Noutro passo, nem todos os esportes tem uma demanda que justifique o custeio de um Tribunal de Justiça Desportiva. Neste sentido, uma medida contemplada na proposta da Nova Lei Geral do Esporte é salutar: a possibilidade de um Tribunal de Justiça Desportiva para mais de uma entidade de administração do desporto.

Tal situação, embora agora tenha previsão na redação, nunca foi proibida por lei. Inclusive, no estado de Santa Catarina, há o Tribunal de Justiça Desportiva do Sistema Catarinense do Desporto, mantido pela Fundação Catarinense de Esportes – FESPORTE, entidade pública de administração do desporto. O TJD catarinense, além de atuar nas competições estaduais do calendário oficial da FESPORTE, possui convênio com diversas Federações catarinenses, entre elas a de Vôlei, a de Basquete e a de Futsal.

E como financiar este investimento extra no Esporte? Simples. Os Tribunais de Justiça Desportiva aplicam, entre outras sanções, multas aos infratores. Somente o Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, ligado à Confederação Brasileira de Futebol – CBF, em 2018, atingiu a marca de 1 milhão de Reais em multas aplicadas[7]. Além disso, não se tratariam de remunerações nababescas. Algo que, ao menos, propiciasse ao membro da Justiça Desportiva se dedicar ainda mais à função e pudesse ser um ressarcimento pelo tempo despendido, obviamente, pagos por atuação, via Jetom.

A remuneração obrigaria uma melhor seleção dos membros. Exigiria um melhor preparo. E possibilitaria uma cobrança mais assertiva da assiduidade, da celeridade na produção de denúncias, acórdãos e pareceres, e do esmero no julgamento dos processos. Somente assim, com medidas de valorização da Justiça Desportiva e de seus membros, poderemos caminhar rumo ao profissionalismo de tão relevante função.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.


[1] Art. 217, da CRFB.

[2] Art. 55, §4º da Lei 9.615/1998 – Lei Pelé.

[3] Art. 48, §2º da Lei 9.615/1998 – Lei Pelé.

[4] Art. 55-A e seguintes da Lei 9.615/1998 – Lei Pelé.

[5] Arts. 50 e 52 da Lei 9.615/1998 – Lei Pelé; e Art. 3º da Resolução CNE 29/2009 – Código Brasileiro de Justiça Desportiva.

[6] Art. 50, §4º da Lei 9.615/1998 – Lei Pelé.

[7] https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2018/11/vinculado-a-cbf-stjd-supera-r-1-milhao-em-multas-apenas-em-2018.shtml


[i] Membro Filiado e Colunista do IBDD. Advogado militante no STJD do Futebol. Presidente do STJD do Basquete. Sub-Procurador Geral do STJD da Liga Nacional de Futsal. Procurador do STJD do Paraquedismo. Auditor da Comissão Disciplinar do STJD do Judô e do STJD do Ciclismo.

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